sábado, 17 de setembro de 2011

Legitimação para agir em tema de interesse metaindividual (Pedro da Silva Dinamarco)

Legitimidade para agir é, na síntese de Liebman, a “pertinência subjetiva da ação, isto é, a identidade entre quem a propôs e aquele que, relativamente à lesão de um direito próprio (que afirma existente), poderá pretender para si o provimento de tutela jurisdicional pedido com referência àquele que foi chamado em juízo”[1].

Essa é a legitimidade ordinária, que difere da extraordinária, onde em situações excepcionais a lei autoriza que o substituto processual defenda em nome próprio direito alheio[2].

Na verdade, as soluções do processo civil sempre visaram apenas à tutela individual, dos sujeitos processuais. Essa situação gerava uma grande dificuldade para a defesa dos direitos grupais, na medida em que ninguém tinha legitimidade para postular sua proteção, por pertencer a todos. Mesmo os interesses individuais de centenas ou milhares de pessoas tinham que ser sempre discutidos individualmente, ou quando muito em litisconsórcio.

Ou seja, “a concepção tradicional do processo civil não deixava espaço para a proteção dos direitos difusos. O processo era visto apenas como um assunto entre duas partes, que se destinava à solução de uma controvérsia entre essas mesmas partes a respeito de seus próprios interesses. Direitos que pertencessem a um grupo, ao público em geral ou a um seguimento do público não se enquadravam bem nesse esquema”[3].

Assim, a legitimidade ad causam era um dos quatro pontos[4] da dificuldade real existente no caminho em direção ao acesso à justiça em relação aos interesses coletivos, ou, em outras palavras, o “ponto sensível” ou  “tendão de Aquiles” desta matéria.

Mas o processo civil do mundo ocidental vem abandonando essa visão individualista e ampliando a legitimidade para as ações coletivas.

O Brasil aderiu a essa tendência internacional. Como se sabe, nos termos do art. 5º da Lei da Ação Civil Pública, combinado com o art. 82 do Código de Defesa do Consumidor, os legitimados para propor a ação civil pública são, em tese: (a) Ministério Público; (b) União, (c) Estados-membros, (d) Distrito-Federal, (e) Municípios, (f) autarquias, (g) empresas públicas, (h) fundações, (i) sociedades de economia mista, (j) entes públicos, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa do consumidor e (k) associações constituídas há pelo menos um ano (salvo casos de manifesto interesse social), que inclua em seu objetivo social a proteção daquele bem que seja objeto do processo. Fora esses sujeitos taxativamente enumerados, nenhum outro poderá ajuizar a ação civil pública, independentemente da relevância do interesse em discussão.

A legitimidade no direito brasileiro tem predominantemente como representantes organismos públicos e os que podem representar são taxativamente indicados, ou mais precisamente, inequivocamente mencionados, pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor, sem que se ofereça margem de dúvida para a identificação do legitimado[5].

Consigne-se ainda que a doutrina não é pacífica a respeito da natureza da legitimidade do Ministério Público, das associações e das demais pessoas autorizadas por lei para ajuizar a ação coletiva.

Muitos afirmam tratar-se de legitimação ordinária autônoma[6], outros entendem que a legitimidade seria anômala[7].

Entretanto, parece mais adequado dizer que se trata de legitimidade extraordinária ou substituição processual. Afinal, ninguém nega que o interesse em jogo não seja do próprio autor da demanda coletiva. O interesse poderá pertencer a pessoas determinadas ou indetermináveis, mas sempre pertencerá a terceiros que não fazem parte da relação processual. E é isso que importa para caracterizar a legitimidade como extraordinária, pois alguém será substituto processual sempre que a lei autorizar essa pessoa a ajuizar uma demanda em nome próprio para defender direito alheio, conforme previsão genérica do art. 6º do Código de Processo Civil. E mais precisamente: a legitimidade extraordinária nas ações coletivas é autônoma, concorrente e disjuntiva.


[1] Cf. Manual de direito processual civil, v. I, n. 74, p. 159.
[2] Liebman afirmava que esse substituto processual também agiria por um interesse legítimo próprio (Manual..., n. 74, p. 160). Donaldo Armelin, em obra de 1.979, filiou-se a essa afirmação.
[3] Cf. Mauro Cappelletti e Bryant Garth, Acesso à justiça, pp. 49-50.
[4] Eram quatro os pontos (ou dificuldades reais) nos quais seria necessária uma profunda reforma do processo civil tradicional, a fim de garantir um novo canal de acesso ao Judiciário: legitimidade ativa; garantias processuais (contraditório e ampla defesa) dos ausentes; efeitos da decisão (efeitos secundum eventum litis); e tipo de provimento e de sanção que se pode obter do juiz.
[5] Cf. Arruda Alvim, Manual..., p. 350-351.
[6] Segundo Thereza Alvim, “o membro do Ministério Público (e os outros legitimados) atua por força de lei e de suas funções, mas, além disso a legitimação lhe é própria, eis que a lide não diz respeito à somatória dos direitos individuais, mas aos direitos difusos, coletivos propriamente ditos e individuais homogêneos, pelo que se denomina essa legitimação de autônoma” (O direito processual de estar em juízo, p. 84). Ainda para ela, “a legitimação para o processo será extraordinária se não houver coincidência entre aquele que tem ou a respeito de quem se faz afirmação de direito e o que age no processo, como parte, por ter legitimação processual (capacidade de estar em juízo específica para aquele processo)” (op. cit., p. 83). E conclui que a legitimidade extraordinária estaria entre os pressupostos processuais, nunca entre as condições da ação, como normalmente tratado (p. 84). Também para Nelson Nery Junior e Rosa Maria Nery, como os titulares dos direitos difusos e coletivos seriam indetermináveis ou indeterminados, sua defesa judicial seria realizada por meio de “legitimação autônoma para a condução do processo”, estando superada a dicotomia clássica entre legitimidade ordinária e extraordinária. Essa classificação corresponderia à legitimidade ordinária e seria válida apenas para os interesses difusos e coletivos. A defesa de interesse individual homogêneo seria feita por um substituto processual (Código de Processo Civil comentado, notas 10 e 13 ao art. 6º do CPC, p. 389). Paulo Cezar Carneiro Pinheiro também assume posição semelhante, afirmando tratar-se sempre de legitimidade ordinária, por referir-se a defesa de interesse público e direito social, que interessariam diretamente à própria sociedade, não importando se há interesses patrimoniais de pessoas ou grupos (O Ministério Público no processo civil e penal..., n. 2.9, pp. 23-24).
[7] Cf. Marino Pazzaglini Filho, Márcio Fernando Elias Rosa e Waldo Fazzio Júnior, Improbidade administrativa..., n. 9.5, p. 209. A opinião desses autores está baseada na de Carlos Alberto de Salles, in “A legitimação do Ministério Público para a defesa de direitos e garantias constitucionais”, apresentada como dissertação de mestrado no Largo São Francisco, em 1.992.

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