domingo, 15 de janeiro de 2012

A boa-fé objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil de 2002

Em face dos novos contornos alicerçados pela boa-fé objetiva no Direito Privado, após a entrada em vigor do Código Civil de 2002 (artigos 113, 187 e 422), faz-se necessário, empreender-se esforço hermenêutico, para determinar com precisão o conteúdo da referida cláusula geral nas relações jurídicas paritárias (abrangidas pelo Código Civil) e não-paritárias (abrangidas pelo Código de Defesa do Consumidor), no sentido de se garantir a aplicabilidade consentânea do princípio, conforme estatuído em seu conceito dogmático.

A boa-fé, antes do advento do Código de Defesa do Consumidor (1990), era utilizada no ordenamento jurídico brasileiro, apenas em sua acepção subjetivista, denotando o estado psicológico, a íntima convicção do agente, ou seja, a intenção do sujeito da relação jurídica. (TEPEDINO; SCHREIBER, 2005, p.217). Era a linha de intelecção do Código Civil de 1916.

Contudo, com o processo de industrialização, a influência do liberalismo econômico, a massificação dos contratos e o surgimento dos contratos de adesão, e por conseqüência, pelo desequilíbrio contratual gerado nas contratações (FIUZA, 2006, p.406), o Estado vê-se forçado a intervir nas relações privadas para prover maior segurança aos contratantes e equilíbrio aos contratos, por meio de um efetivo papel intervencionista na consecução das finalidades sociais, no sentido de minimizar as desigualdades sociais e econômicas impostas pelo Estado Liberal. (LIMA, 2003, p.51).

Nesse contexto, exsurge o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), aplicável às relações jurídicas de consumo, no intuito coibir abusos, resguardar os consumidores (presumivelmente vulneráveis) e promover o reequilíbrio nas relações contratuais de consumo.

Destarte, a moderna previsão legal da boa-fé objetiva, fundada no § 242 do BGB e no artigo 1.375 do Código Civil Italiano, é inaugurada no Direito Brasileiro, através do artigo 4º, III e 51, IV do Código de Defesa do Consumidor, como um dos princípios retores da Política Nacional das Relações de Consumo esculpida no artigo 4º CDC. (TEPEDINO; SCHREIBER, 2005, p.218-219).

A inserção da boa-fé objetiva nas relações de consumo trouxe novo impulso à jurisprudência pátria, que passou a utilizá-la como instrumento de proteção ao consumidor e de reequilíbrio das relações jurídicas não-paritárias.

Nessa esteira, a aplicação da boa-fé objetiva pelos tribunais pátrios passou a nortear-se por finalidade e funções que tecnicamente não lhe eram próprios, mas, sim, da legislação consumerista, afastando-se dos preceitos fundantes do conceito de boa-fé objetiva. (TEPEDINO; SCHREIBER, 2005, p.220; GAMA, 2008, p.102). Isto porque, em sua gênese no Direito Germânico, não se tratava de um preceito protetivo, "mas de uma sujeição de ambas as partes contratuais, e em igual medida, aos padrões objetivos de lealdade e colaboração para os fins contratuais." (TEPEDINO; SCHREIBER, 2005, p.220).

Porém, com o advento do Código Civil de 2002, nova aplicabilidade da cláusula geral da boa-fé objetiva foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro, com o objetivo de regular as relações jurídicas paritárias, independentemente, da vulnerabilidade de uma das partes, pois, indubitavelmente, não havia desequilíbrio contratual a ser sanado.

Não há dúvida de que a noção de boa-fé objetiva, prevista pelo Código Civil, é a mesma que, em 1990, se pretendeu incorporar ao Código de Defesa do Consumidor – qual seja, a de uma cláusula geral de lealdade e colaboração para o alcance dos fins contratuais –, mas difere profundamente daquela versão protetiva da boa-fé que os tribunais brasileiros aplicaram e continuam aplicando às relações de consumo. De fato, a noção de boa-fé não tem ontologicamente esse caráter protetivo. E em relações paritárias, como as que são tuteladas pelo Código Civil, não faz sentido atribuir uma função reequilibradora à boa-fé, pela simples razão de que, a princípio, não há, nestas relações, desequilíbrio a corrigir.
[...] não havendo, nestas relações, uma definição apriorística de que parte se deve proteger, torna-se necessário, para se chegar à solução adequada, preencher o conteúdo da boa-fé objetiva, não bastando mais a sua simples invocação vazia de qualquer consideração concreta. Ao contrário do que ocorre nas relações de consumo, nas relações paritárias a insistência nesta concepção excessivamente vaga e puramente ética da boa-fé objetiva traz o risco de sua absoluta falta de efetividade na solução dos conflitos de interesses. (TEPEDINO; SCHREIBER, 2005, p.221-222).
Nesse sentido, a boa-fé objetiva preconizada no artigo 422 do Código Civil ganha contornos distintos da que, aprioristicamente, foi consagrada na jurisprudência brasileira anterior ao Código Civil de 2002, qual seja: proteção dos consumidores, devido à desigualdade das partes contratantes, visando ao reequilíbrio contratual.

Destarte, nas relações jurídicas paritárias reguladas pelo Código Civil, a boa-fé objetiva visa não a proteger uma das partes, mas, a exigir de ambas as partes, uma atuação honesta e leal, conforme os valores e preceitos consagrados pelo ordenamento civil-constitucional, impondo funções e deveres de conduta, decorrentes da própria natureza do vínculo assumido, que são condicionados e limitados pela função social e econômica do negócio jurídico celebrado. (TEPEDINO; SCHREIBER, 2005, p.225-226 e 228).

Deste modo, há nítido campo de atuação distinto da boa-fé objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil de 2002, evidenciando-se que, o ordenamento jurídico objetiva com o princípio supra "assegurar que as partes colaborarão mutuamente para a consecução dos fins perseguidos com o contrato" (TEPEDINO; SCHREIBER, 2005, p.226), sendo necessário para tanto, que o intérprete, através da hermenêutica, preencha o conteúdo da referida cláusula geral, seja nas relações paritárias ou não-paritárias, no intuito de se determinar os contornos dogmáticos do princípio da boa-fé objetiva, notadamente, suas funções, deveres anexos e limites, viabilizando assim sua aplicação diante do caso concreto.

SILVA, Michael César; MATOS, Vanessa Santiago Fernandes de. Lineamentos do princípio da boa-fé objetiva no Direito Contratual contemporâneo. Uma releitura na perspectiva civil-constitucional. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3118, 14 jan. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20862/lineamentos-do-principio-da-boa-fe-objetiva-no-direito-contratual-contemporaneo>.

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