quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Enriquecimento sem causa e direito sucessório

Vencidas as noções introdutórias de se avançar rumo ao cerne do artigo que se trata de uma matéria decidida recentemente pelo E. Superior Tribunal de Justiça, a qual trata do termo inicial para cômputo da distribuição dos frutos dos bens da herança que será marcado ou desde a data do falecimento ou após mediante notificação extrajudicial advinda dos demais herdeiros.

O consagrado Areópago ao decidir a questão o fez mediante análise no Recurso Especial, cujo aresto se traz à cognição:
DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. COBRANÇA DE ALUGUEL. HERDEIROS. UTILIZAÇÃO EXCLUSIVA DO IMÓVEL. OPOSIÇÃO NECESSÁRIA. TERMO INICIAL.
- Aquele que ocupa exclusivamente imóvel deixado pelo falecido deverá pagar aos demais herdeiros valores a título de aluguel proporcional, quando demonstrada oposição à sua ocupação exclusiva.
- Nesta hipótese, o termo inicial para o pagamento dos valores deve coincidir com a efetiva oposição, judicial ou extrajudicial, dos demais herdeiros.
Recurso especial parcialmente conhecido e provido[7].
Malgrado ter sido o entendimento vitorioso em apertada votação num primeiro momento, seria de se entender que essa não teria sido a melhor orientação jurídica, sendo nosso entendimento no sentido dos votos vencidos dos Ministros Ari Pargendler e Humberto Gomes de Barros, sempre sob uma ótica de vedação do referido enriquecimento sem causa.

Isso porque o termo inicial para que o herdeiro tenha que fazer o repasse das verbas recebidas que decorrem dos frutos da exploração dos bens então comuns, há de ser o instante da celebração de contrato de aluguel entre o herdeiro isoladamente que representa os demais ou o início da efetiva exploração, nunca dependendo de interpelação (sob pena, mesmo, de caracterização de ilícito penal, nos estritos termos da norma contida no artigo 156 do Código Penal, desde que, obviamente, não se cuide de situação de imunidade penal nos termos do artigo 181 do mesmo estatuto repressivo).

Com a celebração do negócio jurídico há o início da percepção de frutos por parte de um herdeiro, sendo certo que esses valores devem ser agregados junto à herança para formar um todo, um bem imóvel (art. 80, II, CC) e, após, com a colação e o pagamento do ITCMD se verifique a regular distribuição dentro dos quinhões hereditários.

A percepção isolada dos frutos por um herdeiro e a fixação do marco inicial, como o da notificação extrajudicial, gera uma situação que conduz forçosamente ao reconhecimento de enriquecimento sem causa do herdeiro, pois se a herança ainda não foi dividida, há um único bem imóvel, em regime de condomínio, assim a sorte do bem deve ser decidida por todos os herdeiros e os eventuais frutos percebidos devem ser divididos entre todos eles (arts. 1791, § único e 2020, CC).

Sob a perspectiva da relação de co-propriedade tem-se que a admissão de tal fracionamento do dever de repassar os frutos do bem ao montemór quebranta a natureza jurídica da relação entre herdeiros, de ser um condomínio pro indiviso, passando a ser pro diviso com uma condição resolutiva no intercurso (art. 121, CC), donde a obtenção exclusiva dos frutos ficaria em prol do herdeiro beneficiário até que haja a sobrevinda da notificação extrajudicial que poria fim a exclusividade na fruição. 

A vontade do herdeiro superaria o espírito da lei quando optou pelo início da sucessão, ou seja, a morte do herdeiro e o fim da comunhão com a partilha dos bens (art. 2023, CC).

Assim, os demais herdeiros que foram, pela lei, contemplados com o patrimônio do de cujus, desde a data de seu óbito, são obrigados a ver a cisão entre o momento do falecimento e o da notificação extrajudicial, com um herdeiro isoladamente aferindo os alugueis, para depois ocorrer a divisão dos quinhões.

A hipótese de tal ato, não deixa de gerar um certo enriquecimento sem causa, a uma porque não é obrigado a trazer tal bem a colação, pois não se trata de doação ou antecipação da legítima (art. 2002, CC) e a duas por estar dispensado das penas da sonegação (art. 1992, CC), pois os herdeiros conheciam a situação e de boa-fé (art. 113, CC) permitiram a obtenção dos frutos na certeza da futura divisão, desde a data da morte (e isso não deixaria de romper com orientações já cristalizadas do STJ, como, verbi gratia, aquelas contidas nas súmulas nº 43 e 54, que, nitidamente, combatem orientações geradores de tal locupletamento ilícito).

Nesses exatos termos alhures pode-se, aliás, extrair referido conteúdo ao se analisar o voto do Ministro Ari Pargendler ao decidir, no sentido de que:
Aberta a sucessão, domínio e posse transmitem-se aos herdeiros (CC, art. 1.572). A herança é recebida em estado de comunhão pro indiviso, o qual pode, ou não, terminar com a partilha: a) deixa de existir se o patrimônio puder ser dividido entre os herdeiros, cada qual passando a ser proprietário de um ou mais bens; b) subsiste, seja porque não houve a divisão do patrimônio, seja porque este é indivisível – mas muda de natureza, porque passa a ser um estado de comunhão inter vivos, não mais um estado de comunhão hereditária. “O fim da partilha” – ensina Pontes de Miranda – “é tirar todo caráter hereditário da comunhão. A lei tem essa comunhão como transitória, e breve; por isso mesmo, impôs prazos para a abertura e para o encerramento do inventário” (Tratado de Direito Privado, Editor Borsoi, Rio de Janeiro, 1971, 3ª edição, Tomo LX, p. 223). Quid, se a partilha tarda, estando um dos herdeiros na posse e gozo de imóvel sob comunhão hereditária ? Salvo melhor juízo, a resposta depende de saber, primeiro, se o imóvel cabe, ou não, no quinhão do possuidor e, segundo, se ele tem preferência na respectiva partilha. Na espécie, o quinhão hereditário cabe no quantum que deve ser partilhado ao possuidor, e ele tem preferência na adjudicação, tal qual deflui, a contrario sensu, do art. 1.777 do Código Civil e da elaboração doutrinária, in verbis: “A comodidade dos herdeiros há de ser atendida. Os exemplos mais freqüentes são os de vizinhança de prédios herdados e prédios já de propriedade do herdeiro, os de situação do edifício ou apartamento em lugar em que reside ou tem negócios o herdeiro...“ (Pontes de Miranda, op. cit. p. 249). Se o imóvel cabe no quinhão hereditário e o possuidor tem preferência na partilha, não está obrigado a transferir para o espólio os frutos atuais ou potenciais do bem, nem pode lançar os respectivos encargos à conta da herança (v.g., despesas condominiais, taxas e impostos); se prevalecesse a solução adotada nas instâncias ordinárias, ter-se-ia o resultado insólito de o proprietário pagar aluguel. O desate da lide, evidentemente, seria outro se o quinhão hereditário fosse menor do que o bem ocupado pelo herdeiro, porque este teria então de carrear ao espólio os respectivos frutos, sob pena de enriquecimento sem causa.
No mesmo sentido confiram-se os acórdãos abaixo mencionados:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO VISANDO À DECLARAÇÃO DO DIREITO A PERCEPÇÃO DE FRUTOS DO IMÓVEL, LOCALIZADO EM JACAREPAGUÁ E AO PAGAMENTO DE TAXA DE OCUPAÇÃO, EM RAZÃO DO USO EXCLUSIVO DA PROPRIEDADE COMUM, DECORRENTE, NO CASO, DE HERANÇA AINDA NÃO PARTILHADA
SENTENÇA QUE REJEITANDO A PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE ATIVA, JULGANDO PROCEDENTE EM PARTE O PEDIDO FORMULADO PELAS AUTORAS NA INICIAL, PARA CONDENAR OS RÉUS AO PAGAMENTO DO VALOR REFERENTE À TAXA DE OCUPAÇÃO PELA UTILIZAÇÃO DA PROPRIEDADE, DE ACORDO COM O VALOR A SER APURADO EM LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA POR ARBITRAMENTO. CABE DESTACAR QUE A TRANSMISSÃO DA PROPRIEDADE DOS BENS CAUSA MORTIS ATENDE AO DROIT DE SAISINE, SENDO INSTAURADO CONDOMÍNIO SOBRE A HERANÇA DIANTE DA IMEDIATA TRANSMISSÃO DA POSSE E DA PROPRIEDADE DO IMÓVEL. RECURSO CONHECIDO PARA DAR PARCIAL PROVIMENTO PARA QUE O PAGAMENTO REFERENTE À TAXA DE OCUPAÇÃO DO IMÓVEL SEJA EFETUADO EM FAVOR DO ESPÓLIO DE SÉRGIO MATTOSO DE BRITO, DESDE O FALECIMENTO[8].
ESPOLIO CONDOMINIO TAXA DE OCUPACAO FIXACAO DO VALOR CORRECAO MONETARIA BENS DE ESPÓLIO. UTILIZAÇÃO POR ALGUNS DOS CONDÔMINOS. DIREITO DOS DEMAIS AO RECEBIMENTO PERCENTUAL DO VALOR DA TAXA DE OCUPAÇÃO.
Estando o bem do espólio na posse de alguns herdeiros, os demais têm direito ao pagamento mensal de metade da taxa de ocupação. Não se leva em consideração as casas construídas pelos herdeiros, após os óbitos dos autores da herança. A correção monetária deve ser contada só a partir da data do laudo que fixou o valor. Recurso parcialmente provido[9].
IMOVEL EM CONDOMINIO CO-PROPRIEDADE RESPONSABILIDADE PELO USO INDEVIDO ALEGACAO NAO PROVADA COBRANCA INDEVIDA APELAÇAO CÍVEL. INDENIZAÇÃO. UTILIZAÇÃO EXCLUSIVA DE UM CONDÔMINO EM PREJUÍZO DOS DEMAIS. AUSÊNCIA DE PROVA.
Demonstrado nos autos que o condômino não se utiliza com exclusividade dos imóveis dos quais é co-proprietário, que não estão alugados e nem mesmo têm condições de habitabilidade, a cobrança de parte dos locativos ou de renda presumível constitui, enriquecimento indevido, mormente quando anteriormente foi pactuada a venda dos bens para inclusão no monte da herança. RECURSO IMPROVIDO[10].
Acredita-se, portanto, modestamente, que a solução adequada ao caso vertente seria, no sentido de ter o herdeiro de trazer para os autos os valores obtidos, por exemplo, por ter celebrado o contrato de aluguel nos termos da facti specie contida no art. 2020, CC para que houvesse de repartir os valores em questão, ou, noutro passo, admitir-se a ação para ressarcimento fundada em enriquecimento sem causa, caso a partilha já tivesse se findado no período de 3 anos (art. 206, § 3º, IV, CC), ou caso entendesse melhor, o interessado poderia anular a partilha amparado no art. 2027, sob o argumento de que houve dolo (art. 145, CC), e, assim por diante.

No entanto, como se exporá, linhas adiante, na conclusão do presente singelo artigo, com a ótica do Magistrado que administra um Ofício Judicial, se compreende o escopo preconizado pela nova orientação, a qual não deixa de trazer, em torno de si, uma preocupação com a questão da efetividade e a própria tempestividade (art. 5º, LXXVIII, CR, com a redação que lhe foi conferida pelo advento da EC nº 45/04 – a conhecida “Reforma do Poder Judiciário”) da jurisdição estatal.


SILVA, Júlio César Ballerini. O enriquecimento ilícito e o princípio da saisine na utilização exclusiva de imóvel da herança por herdeiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3149, 14 fev. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21086/o-enriquecimento-ilicito-e-o-principio-da-saisine-na-utilizacao-exclusiva-de-imovel-da-heranca-por-herdeiro>.

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