quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

A forma da deserdação: testamento

Já vimos que a falta de vínculo afetivo e de boa-fé familiar autorizam, em tese, a deserdação do herdeiro necessário pelo autor da herança, por força da aplicação dos princípios, notadamente dos princípios da afetividade e da eticidade.

Resta-nos tratar agora da forma dessa deserdação que, certamente, se dará por via testamentária, a teor do disposto no art. 1.964 do CC[68], verbis: "Somente com expressa declaração de causa pode a deserdação ser ordenada em testamento." (g.n.)

Conforme explica Márcia Maria Menin [69], são requisitos indispensáveis para a configuração da pena de deserdação: a) a validade do testamento; b) a existência de herdeiros necessários; c) a existência de cláusula de deserdação [70]; e d) a prova da existência da causa arguida pelo testador (por meio de ação ordinária, conforme será visto no item 9).

Portanto, para que o testador prive herdeiro necessário de sua metade indisponível, necessitará, no que ora releva salientar, fazer constar por ocasião da facção do testamento, cláusula de deserdação com expressa declaração de causa (i.e., rompimento definitivo do vínculo afetivo e/ou falta de boa-fé familiar).

Nada impede, antes recomenda, que menção expressa também seja feita no testamento acerca do desrespeito ao princípio da afetividade, descrevendo-se as circunstâncias em que se deu o último contato entre o autor da herança e o herdeiro deserdado, bem como de quando datam as últimas notícias suas. Todo e qualquer aspecto que demonstre a má-fé do deserdado, igualmente deverá ser pormenorizado na cédula testamentária [71], pois, conforme dito, a eticidade é princípio norteador do Código Civil de 2002, compreendendo a boa-fé familiar, o que é curial.

Contudo, a deserdação não se opera de pleno direito, não bastando a inserção de cláusula exclusória em testamento para que se retire herdeiro necessário da sucessão [72]. É o que analisaremos a seguir.

AÇÃO ORDINÁRIA DE DESERDAÇÃO: ASPECTOS PROCESSUAIS
A deserdação exige previsão em testamento, com expressa declaração de causa [73]. Portanto, incumbe ao herdeiro instituído, ou àquele a quem aproveite a deserdação, provar a veracidade da causa [74], consoante o disposto no art. 1.965 do CC, verbis: "Ao herdeiro instituído, ou àquele a quem aproveite a deserdação, incumbe provar a veracidade da causa alegada pelo testador."

O parágrafo único do referido artigo ainda prevê: "O direito de provar a causa da deserdação extingue-se no prazo de quatro anos, a contar da data da abertura do testamento." [75](g.n.)

Trata-se evidentemente de prazo decadencial, dentro do qual deverá ser ajuizada a competente ação ordinária de deserdação [76] no juízo do inventário, mas não nos mesmos autos. Apresentado o testamento, efetuado o registro, o juiz determina o arquivamento e seu cumprimento (CPC, art. 1.126). A ação de deserdação deve ser instruída com a certidão do testamento. A ausência do testamento autoriza a extinção do processo (CPC, art. 267, VI). A ação tem eficácia declaratória e produz efeito retroativo a partir da abertura da sucessão. [77] (g.o.)

Dispõem de legitimidade ativa para a demanda os demais herdeiros e quem irá se beneficiar com a exclusão do deserdado. Não se pode excluir a possibilidade de a ação ser proposta pelo inventariante, bem como pelo cônjuge ou companheiro sobreviventes. Também o onerado (CC, art. 1.934, parágrafo único), o testamenteiro e o Ministério Público podem propô-la, pois ambos têm o dever de zelar pelo cumprimento do testamento, onde se encontra a manifestação de vontade do testador de deserdar um herdeiro. [78]

Note-se que as causas de deserdação previstas nos arts. 1.962 e 1.963 CC, aplicam-se apenas aos herdeiros necessários, eis que, tendo eles direito à legítima, é preciso que haja motivo suficientemente grave para que sejam excluídos da herança. Isso não significa, porém, que os demais herdeiros não possam ser deserdados. Para que estes herdeiros (companheiros e colaterais) sejam excluídos do direito à herança, não é preciso invocar nenhuma causa; basta que o testador disponha do seu patrimônio, sem os contemplar (CC, art. 1.850). [79]

Outrossim, Euclides de Oliveira e Sebastião Amorim [80] ressaltam que "essas causas constituem numerus clausus, por isso que não admitem interpretação extensiva, para abrangência de outros atos de ingratidão ou de ofensa à pessoa do autor da herança. Assim, com relação ao abandono do descendente ou do ascendente, não basta que haja esfriamento de relações ou mesmo atos de hostilidade entre esses parentes". (g.n.)

Sucede que, a nosso ver, caso esse "esfriamento de relações" seja de tal magnitude que revele, indubitavelmente, absoluta falta de vínculo afetivo entre ascendentes e descendentes, por período considerável de tempo, abertas estariam as portas da deserdação por quebra de afetividade [81], não por aplicação literal da lei (CC, arts. 1.962 e 1.963), mas sim por aplicação dos princípios, adotando-se a interpretação conforme a Constituição. Veja, finalmente, que sequer haveria qualquer necessidade de alteração da lei, com o fito de implementar a deserdação por falta de afetividade, pois a própria interpretação sistemática do ordenamento jurídico autoriza tal procedimento, desde que declarada a causa pelo testador na cédula testamentária, conforme previsto no art. 1.964 do Código Civil.



 LEMOS PEREIRA, Tarlei. Deserdação por falta de vínculo afetivo e de boa-fé familiar. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3143, 8 fev. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21035/deserdacao-por-falta-de-vinculo-afetivo-e-de-boa-fe-familiar>.

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