terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Houaiss e os ciganos: sobre liberdades de expressão e de imprensa

Saiu na Folha de hoje (28/02/12):
Promotoria [sic] vê preconceito em dicionário Houaiss
O Ministério Público Federal quer retirar de circulação exemplares do dicionário Houaiss, sob alegação de que a obra contém referências ‘preconceituosas’ e ‘racistas’ contra ciganos.
Em versões eletrônicas, o Houaiss chega a definir a palavra ‘cigano’ como ‘aquele que faz barganha’, ‘esperto ao negociar’ e ‘apegado ao dinheiro, agiota, sovina’.
A ação, proposta pela Procuradoria em Uberlândia (MG), pede a supressão dos termos e o pagamento, pela editora Objetiva e Instituto Antônio Houaiss, de R$ 200 mil de indenização por dano moral coletivo.
Segundo a Procuradoria, a significação atribuída violaria o artigo 20 da Lei 7.716/89, que tipifica o crime de racismo


Essa matéria é interessante para entendermos como a Justiça lida (ou deveria lidar) com duas normas válidas, mas antagônicas.

Nossa Constituição diz que todos devem ser tratados de forma digna e proíbe qualquer forma de preconceito ou negativa de discriminação. Isso inclui o direito de não ser chamado de “agiota, ou sovina” só por ser cigano.

Mas a mesma Constituição garante as liberdades de expressão e de imprensa. Se eu quiser escrever um texto sem pé nem cabeça, posso. É meu direito falar bobagem (e direito do leitor de não ler meu texto).

Mas o que acontece se eu escrevo um dicionário informando que a palavra ‘cigano’ tem, entre outras conotações, a de velhaco, trapaceiro ou sovina? Estou ferindo a dignidade dos ciganos ou estou apenas expressando minha opinião? Ou estou ferindo a dignidade mas meu direito de expressar minha opinião é mais importante (ou o contrário)? Faz diferença se o texto é informativo (um dicionário), opinativo (um editorial de um jornal) ou ficcional (um romance)?

Por exemplo, se eu digo que alguém de uma determinada religião é pilantra em um romance, eu posso estar simplesmente contando um drama. Eu não estou concordando com isso. Se coloco isso em um dicionário, estou explicando que aquele termo pode ser utilizado naquele contexto em determinado círculos. E se coloco em um editorial, aí sim, estou expressando meu acordo ou desacordo com tal uso.

E o que a Justiça faz ou deveria fazer para resolver a questão?

Se há uma hierarquia entre normas – por exemplo, uma norma está na Constituição e outra em uma lei – não há problema: a que está na norma superior sempre prevalece e a que está abaixo é declarada inconstitucional.

Mas se estão no mesmo nível – como no caso da matéria acima – a Justiça precisa olhar qual decisão causa piores consequências a longo prazo.

Em casos como o acima, a solução mais comum nas democracias é que proteja-se a liberdade de expressão. A razão é simples: quem se sentir ofendido pode sempre processar quem ofendeu, mas o contrário obrigaria os magistrados a passarem a decidir o que a sociedade quer e o que ela não quer, e esse é um papel que não cabe ao Judiciário. A vontade da sociedade é expressa nas eleições do Legislativo e do Executivo. Dos três poderes, o Judiciário é o único que não possui qualquer legitimidade de representação porque os magistrados não são eleitos.

Tente imaginar, por exemplo se o Judiciário se desse a prerrogativa de dizer o que pode ou não ser publicado: ele passaria a ter de ler todos os editoriais de todos os jornais antes da publicação, todos os livros antes de chegarem às bancas, todos os programas de TV antes de irem ao ar etc. Não daria certo.

Mas no caso da matéria acima o problema é mais complicado: o livro já foi publicado e o MP está processando a editora por conta disso. O que fazer nesse caso?

De fato cabe ao MP proteger os direitos difusos, incluindo os das minorias culturais, como os ciganos. Mas há mais um detalhe que a Justiça deve levar em conta antes de dizer que o MP tem razão: a definição do dicionário é meramente informativa ou tem o intuito de ofender?

Se você procurar no dicionário, verá que centenas de termos têm conotações negativas em determinados contextos: negro, crente, judeu, turco, bedel etc. Óbvio que esses usos têm conotações preconceituosas. Mas se a Justiça passa a proibir um dicionário de dizer que em determinados contextos essas palavras têm conotações negativas, ela se dá o direito de dizer o que entra e o que não entra na cultura de um país, e voltamos ao mesmo problema anterior: ela é o único Poder que não tem legitimidade democrática para tal. Seria a mesma coisa de ela começar a determinar o que um jornal pode e não pode reportar.

Se quisermos banir o uso de um termo ou usar leis para moldar a cultura, devemos fazer isso através de leis elaboradas pelo Legislativo. Por exemplo, em alguns países democráticos é proibido, por lei, negar o holocausto ou mesmo comprar o Main Kaumpf, o livro escrito por Hitler. Cabe ao Legislativo, como órgão mais próximo da vontade da sociedade, determinar se algo é tão ofensivo que sequer deve ser dito ou publicado.

2 comentários:

  1. Patrícia, ótima publicação. Me surgiu uma dúvida: Quando o MP defende a coletividade, mesmo que uma coletividade minoritária, como é o caso, este montante, fruto do processo, que no caso concreto é de R$200.000,00, caso logre sucesso na causa, o MP destina a qual finalidade?

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    1. De acordo com Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347 de 24 de julho de 1985)em seu art. 13 "havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados."
      O Decreto nº 1.306, de 9 de novembro de 1994, regulamenta o Fundo de Defesa de Direitos Difusos, criado pelo artigo 13 da Lei da Ação Civil Pública.
      Os recursos financeiros arrecadados pelo FDD são aplicados na recuperação dos bens lesados. Devem ainda manter relação com a natureza da infração ou do dano causado. Sempre que não for possível a reparação específica do dano, os recursos devem ser destinados à promoção de eventos educativos ou científicos ou à edição de material informativo. Não sendo viáveis nenhuma das alternativas anteriores, devem as receitas ser aplicadas na modernização administrativa dos órgãos públicos vinculados às áreas abrangidas pelo Decreto.

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