quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Indenização por abandono afetivo: Impossibilidade (Murilo Sechieri Costa Neves)

Está em tramitação, inclusive, projeto de lei pelo qual se pretende incluir no ECA a previsão de que seria "conduta ilícita, sujeita a reparação de danos, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, a ação ou a omissão que ofenda direito fundamental de criança ou adolescente (...), incluindo os casos de abandono moral". De acordo com a proposta, aos pais competiria, além dos deveres já consagrados, "prestar aos filhos assistência moral, seja por convívio, seja por visitação periódica, que permitam o acompanhamento da formação psicológica, moral e social" do filho menor. Assistência moral consistiria na "a orientação quanto às principais escolhas e oportunidades profissionais, educacionais e culturais; a solidariedade e apoio nos momentos de intenso sofrimento ou dificuldade; a presença física espontaneamente solicitada pela criança ou adolescente e possível de ser atendida" (PL n. 700/2007, Autoria do Sen. Marcelo Crivella).

Mesmo diante da ausência de previsão expressa, tem sido defendida, através de argumentos sedutores e consistentes, a tese da reparabilidade dos danos decorrentes de abandono afetivo.

Os fundamentos normalmente apontados são os princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade, da parentalidade responsável e da afetividade nas relações familiares.

Embora sejam respeitáveis os argumentos utilizados em abono da tese da responsabilização, não parece ser acertada tal conclusão. 

A responsabilidade civil é a obrigação que recai sobre alguém de reparar o dano injusto sofrido por outrem, como decorrência do descumprimento de um dever jurídico. Não basta que tenha havido dano, mas é indispensável que tenha havido uma conduta antijurídica e nexo de causalidade entre ela e a lesão sofrida.

A questão é saber se no abandono afetivo estão reunidos os requisitos da responsabilidade civil, e se a imposição do dever de indenizar atingiria as finalidades buscadas pelo instituto. Ao que parece, ambas as respostas são negativas.      

Não se nega que o abandono afetivo seja causa danos anímicos aos filhos, danos esses cuja intensidade vai variar de acordo com as características pessoais de quem sofreu, e sofre, pela ausência alheia. A dignidade da pessoa humana do filho parece apontar no sentido da indenização.

O dano, por si só, não gera o dever de indenizar. É indispensável que tenha havido descumprimento de um legítimo dever jurídico pelo pai, identificado, na hipótese, como o dever de destinar afeto amoroso ao filho. Se existir tal dever, os filhos terão o correlato direito subjetivo a uma convivência afetiva satisfatória.

O tema não pode ser tratado de forma simplista. A questão é tão complexa, como o são as relações humanas. O amor é algo que acontece, ou não, inclusive nas relações entre pais e filhos. A constatação pode parecer cruel - e talvez o seja - mas o fato é que não tem qualquer fundamento a crença, que permeia o senso comum, de que o amor parental seria natural e incondicional.

Não se pode acreditar que o ordenamento jurídico seja capaz de regular as intrincadas relações afetivas entre as pessoas, como se houvesse um modo correto de agir nesse campo, ou como se houvesse algum tipo de padrão de comportamento afetivo considerado como adequado.

O afeto não é passível de coerção, verdade essa que é incontestável.

Está assegurado o direito dos menores à educação, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar. Diante disso, pode ser reconhecido o dever do genitor de ter o filho em sua companhia. Aliás, a visitação tem sido encarada mesmo como um direito/dever. Não se pode, contudo, impor o dever de que a qualidade afetiva da convivência entre eles seja aquela que poderia ser considerada como ideal.
Proteção à dignidade da pessoa humana não é sinônimo de garantia de uma existência plena de satisfação e isenta de frustrações ou de sofrimento. Nas relações afetivas há naturalmente muita expectativa, e onde há muita expectativa, certamente há frustração, em particular porque a idealização dos vínculos não corresponde à vivência deles.

O ideal de uma família plenamente feliz faz sentido nos anúncios publicitários. Não se pode concluir, no entanto, que a efetiva fruição desse modelo fantasioso represente uma garantia jurídica aos indivíduos. Fomentar essa ilusão não parece ser o mais adequado.

A negativa de afeto pode decorrer de infindáveis motivos, tendo em vista a diversidade e complexidade existencial de cada uma das pessoas. No campo dos sentimentos humanos há espaço, inclusive, para o incompreensível. Muitas vezes, nem o mesmo o próprio agente é capaz de encontrar razão aparente para certos comportamentos seus.

A verdade é que nem todos têm capacidade de amar, ou nem sempre estão disponíveis para doar afeto a outrem. Não se exigir algo de quem não o pode dar.

Assim, não parece razoável que a indenização seja fixada com a finalidade de punir o pai ausente, porque não se pode dizer que o distanciamento afetivo tenha sido intencional, consciente.

A função indenizatória também não se mostra viável nesses casos, porque não pode acreditar que o recebimento de uma certa quantia em dinheiro seja capaz de apagar as cicatrizes que tenham sido causadas pela falta de afeto. Ao contrário, qualquer tipo de litígio entre pai e filho a esse respeito, seja qual for a solução encontrada, só serve para alargar o abismo afetivo entre eles.

Afastadas as funções de reparação e de punição da responsabilidade civil, resta saber se a indenização por abandono afetivo desempenharia satisfatoriamente a função pedagógica ou dissuasória. Parece que não.

Se já havia uma relação deteriorada - ou até mesmo falta de relação - entre os sujeitos, após o pleito indenizatório, acolhido ou rejeitado o pedido, é praticamente impossível que sejam estabelecidos laços que gerem uma convivência saudável entre as pessoas. A simples existência de litígio judicial a esse respeito, na qual são verbalizadas mágoas tão intensas e profundas, é suficiente para sepultar, em definitivo, qualquer esperança de que a relação entre tais pessoas pudesse vir a ser transformada positivamente.

Argumenta-se, ainda, que nas relações entre cônjuges, companheiros, ou até mesmo entre noivos, não se reconhece o direito à indenização pelo sofrimento causado pelo rompimento unilateral do relacionamento, ainda que acompanhado de descumprimento dos deveres recíprocos. Não se indeniza a dor, o sofrimento, a frustração, porque essas são contingências das relações afetivas. Só é fixado o dever de indenizar se a conduta adotada por aquele que rompeu a relação tiver sido manifestada através de comportamento vexatório, humilhante, gravemente ofensivo à dignidade do outro.

Nas relações entre pais e filhos, a solução deve ser a mesma. A frustração ao desejo de receber afeto dos pais não pode ser, por si, motivo para o direito à indenização. Por outro lado, se for possível identificar que houve abuso por parte do genitor que praticou atos que foram capazes de causar ofensa aos direitos da personalidade do filho, é perfeitamente aplicável a disciplina da responsabilidade civil, também nesse campo. 

Há um último ponto a ser questionado. O eventual reconhecimento judicial de que houve indevida falta de afeto pelo genitor pode ser, por si só, causa de agravamento dos danos causados. A condenação do genitor confirma de maneira irrefutável para o filho a sua posição de vítima. Do ponto de vista psicológico, há um reforço na crença de abandono, no sentimento de rejeição e desamparo. Diante disso, é possível que sejam maiores as dificuldades do filho para a superação das conseqüências da lamentável falta de sorte de não ter tido pais que tivessem condições atender aos idealizados padrões de afetividade. 

Por fim, o eventual reconhecimento judicial de que houve indevida falta de afeto pelo genitor pode ser causa de agravamento dos danos causados. A condenação do genitor confirma, de maneira irrefutável, para o filho a sua posição de vítima. Do ponto de vista psicológico, há um reforço na crença de abandono, no sentimento de rejeição e desamparo. Diante disso, é possível que sejam maiores as dificuldades do filho para a superação das conseqüências da lamentável falta de sorte de não ter tido pais que tivessem condições atender aos idealizados padrões de afetividade.

Jornal Carta Forense, domingo, 12 de fevereiro de 2012

Nenhum comentário:

Postar um comentário