quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

O princípio da afetividade aplicado ao campo sucessório

Trata-se a família de um núcleo social primário, tendo havido consideráveis mudanças nas relações familiares, passando a dominar novos conceitos em detrimento de valores antigos. Nesta visão, tem mais relevância o sentimento afetivo [55], não mais sendo suficientes meros laços de sangue para se concluir pela existência de uma entidade familiar. [56]

A Constituição elenca um rol imenso de direitos individuais e sociais, como forma de garantir a dignidade de todos. Isso nada mais é do que o compromisso de assegurar afeto: o primeiro obrigado a assegurar o afeto por seus cidadãos é o próprio Estado [57]. Mesmo que a Constituição tenha enlaçado o afeto no âmbito de sua proteção, a palavra afeto não está no texto constitucional [58]. Ao serem reconhecidas como entidade familiar merecedora da tutela jurídica as uniões estáveis, que se constituem sem o selo do casamento, tal significa que a afetividade, que une e enlaça duas pessoas, adquiriu reconhecimento e inserção no sistema jurídico. Houve a constitucionalização de um modelo de família eudemonista e igualitário, com maior espaço para o afeto e a realização individual. [59] (g.o.)

Nesse sentido, Paulo Luiz Netto Lôbo [60], discorrendo sobre o princípio da afetividade, escreve:
"A afetividade como princípio jurídico fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico. Recebeu grande impulso dos valores consagrados na Constituição de 1988 e resultou da evolução da família brasileira nas últimas décadas do século XX, refletindo-se na doutrina jurídica e na jurisprudência dos tribunais. O princípio da afetividade especializa, no âmbito familiar, os princípios constitucionais fundamentais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da solidariedade (art. 3º, I), e entrelaça-se com os princípios da convivência familiar e da igualdade entre cônjuges, companheiros e filhos, que ressaltam a natureza cultural e não exclusivamente biológica da família. A evolução da família ‘expressa a passagem do fato natural da consanguinidade para o fato cultural da afinidade’ (este no sentido de afetividade). A família recuperou a função que, por certo, esteve nas suas origens mais remotas: a de grupo unido por desejos e laços afetivos, em comunhão de vida."
Com efeito, o princípio jurídico da afetividade e o sentimento de solidariedade recíproca não podem ser perturbados pela preponderância de interesses patrimoniais. É o respeito à pessoa humana, nas relações familiares, que deve prevalecer [61]. Por isso, reportando-nos ao caso narrado na introdução deste ensaio, entendemos que não agiu de boa-fé a filha que ajuizou ação investigatória de paternidade com o claro intuito de, uma vez tendo sido reconhecida a filiação judicialmente, assegurar o seu quinhão hereditário. Obviamente, a boa-fé constante do Código Civil de 2002 não é apenas e tão somente a boa-fé contratual e dos negócios jurídicos, mas também a boa-fé familiar, eis que um pai não poderá agir de má-fé em relação aos seus filhos, nem vice-versa. Ferir-se-ia fundamentalmente a eticidade [62], que é um dos três princípios norteadores do Código Reale, ao lado da socialidade e da operabilidade. [63]

Outrossim, a conduta da mencionada filha configuraria até mesmo um abuso de direito [64], a encontrar óbice no disposto no artigo 187 do Código Civil. [65]

Sendo assim, acreditamos que o juiz, na hipótese sub examine, não deveria prestigiar interesses meramente econômicos da herdeira em detrimento dos laços afetivos que jamais existiram entre ela e o seu genitor. Mutatis mutandis, seria o mesmo que conceder remuneração a alguém que não tivesse trabalhado, pois a filha (autora da ação de investigação de paternidade) estaria concorrendo à herança juntamente com os demais coerdeiros que, ao longo de toda uma vida, mostraram-se afetuosos e solidários em relação ao falecido. [66]

Aliás, foi por isso que, logo no início deste ensaio, tivemos oportunidade de frisar que a conhecida frase "Filho é filho e ponto final" não mais tem lugar, pois reescrevendo-a à luz da eficácia irradiante oriunda da Constituição Federal "Filho é filho desde que haja um mínimo de afetividade em relação a seus genitores" [67]. Não sendo assim, melhor que cada um siga o seu caminho e, principalmente, não busque herança um do outro, como se estivesse a arriscar a sorte grande. Afinal, se toda uma vida não foi suficiente para unir, por laços afetivos, o ascendente ao descendente, não será o decesso de um deles que o fará.



 LEMOS PEREIRA, Tarlei. Deserdação por falta de vínculo afetivo e de boa-fé familiar. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3143, 8 fev. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21035/deserdacao-por-falta-de-vinculo-afetivo-e-de-boa-fe-familiar>.

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