sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

O segredo de justiça não serve para proteger o magistrado

Saiu na Folha de sexta (16/9/11):
Seis anos após adotar irmãos, pais tentam devolver um deles
Seis anos após adotar dois irmãos, um casal de Santa Catarina tentou devolver o mais velho, alegando problemas de relacionamento.
Moradores do vale do Itajaí, eles acabaram perdendo o poder familiar - deveres com relação à criança, incluindo a guarda - do garoto, de 12 anos, e da menina, de dez. Foram ainda condenados a indenizar cada criança em R$ 40 mil. Os nomes do casal e de seus defensores não foram divulgados.
Psicólogos e assistentes sociais constataram que o menino sofria discriminação e maus-tratos psicológicos.
Quando fazia xixi na cama, era obrigado a lavar os lençóis. Também ficava trancado no quarto a noite inteira.
Além disso, enquanto o filho biológico do casal, de 14 anos, estudava em uma escola particular, os filhos adotados estavam na rede pública.
Segundo a juíza do caso, que não quis ter seu nome divulgado (o caso corre sob segredo de Justiça), a mãe já havia levado o menino várias vezes ao Judiciário, dizendo que a criança era violenta.
A magistrada disse que, no ano passado, a mulher, de classe média alta, foi ao fórum, falou que não queria mais ficar com a criança e a abandonou no local.
Para a juíza, a mãe queria adotar só a menina, na época com cerca de três anos. Mas a lei não permite separar irmãos. ‘Ela o levou num 'compre um, leve dois'. Mas depois não conseguiu suportar’ (…)
Mas, em junho deste ano, a sentença foi confirmada pelo TJ, que estabeleceu o valor da indenização.
Desde o ano passado, as crianças estão em um abrigo


A matéria diz que a juíza do caso não quis ter seu nome divulgado e que o caso corre sob segredo de Justiça. Que o caso corra em segredo de justiça é normal. Quase todos os casos que envolvem crianças correm em segredo de justiça. Isso serve para preservar a criança. Em um caso como o acima, por exemplo, a exposição da criança poderia se tornar um estigma para o resto de sua vida.

Mas o fato de a juíza não querer ter seu nome divulgado é curioso. Os magistrados recebem - e bem – e possuem diversos tipos de garantias e privilégios justamente porque precisam tomar decisões controversas. O fato de ter dado uma sentença controversa não dá à magistrada o direito de se esconder atrás do anonimato ou do segredo de justiça. O segredo de um processo serve para proteger seu conteúdo, réu e/ou autor, e não a pessoa responsável por seu julgamento.

Vejamos o que diz o artigo 155 de nosso Código de Processo Civil, que trata de situações como a da matéria acima:
"Os atos processuais são públicos. Correm, todavia, em segredo de justiça os processos:
I - em que o exigir o interesse público;
Il - que dizem respeito a casamento, filiação, separação dos cônjuges, conversão desta em divórcio, alimentos e guarda de menores.
Parágrafo único.  O direito de consultar os autos e de pedir certidões de seus atos é restrito às partes e a seus procuradores. O terceiro, que demonstrar interesse jurídico, pode requerer ao juiz certidão do dispositivo da sentença, bem como de inventário e partilha resultante do desquite


Reparem que o parágrafo único dá a um estranho (‘o terceiro’) o direito de pedir para ter um resumo da sentença. Esse pedido deve ser dirigido ao magistrado responsável pelo caso. Mas como é que o estranho pode fazer esse pedido se ele não sabe qual é o magistrado responsável pelo caso? Ele vai colocar o pedido pendurado no poste na praça em frente ao fórum na esperança de que o magistrado leia? Claro que não.

Uma das características das piores ditaduras é que suas vítimas raramente sabem com quem estão lidando. É justamente por isso que, no Brasil, o policial que prende deve se identificar ao preso. Em uma democracia, apenas em raríssimos casos a identidade de um servidor público é mantida em segredo (quase sempre relacionado às questões de segurança nacional: se sabemos a identidade de um espião, ele deixa de ser um espião). Da mesma forma, um juiz que profere uma sentença pode até manter a sentença em segredo de justiça para proteger o processo ou a privacidade das partes, mas não pode recusar-se a identificar-se. Junto com todos os privilégios e direitos de sua função, há também obrigações e ônus, e essa é uma delas.

Existe uma segunda incongruência no caso: embora a magistrada se esconda no anonimato, ela fala abertamente de detalhes do caso - por exemplo, apontando o fato de uma das crianças fazer xixi na cama - e dá detalhes que podem levar à identificação das crianças por seus amigos e conhecidos  - por exemplo, por conta da indiscrição da juíza, é possível saber quem são as três crianças da história, já que elas moram no Vale do Itajaí e são filhas de um casal de classe média alta que tem três filhos, o mais velho com 14 anos e estudando em escola particular, e outros dois, um adolescente de 12 e uma menina de 10, ambos estudando em escola pública. Se o vizinho ou o colega de escola sabe que os dois filhos mais novos ‘desapareceram’ no último ano, ele sabe exatamente quem são as três crianças.

PS: Ser obrigado a lavar suas roupas ou lençol não é mau-trato. Assim como não é mau-trato ser obrigado a manter o quarto arrumado ou a escovar os dentes ou ser acordado para ir para a escola. O mau-trato pode estar na forma como isso é praticado, e não no fato de isso ter sido praticado. Por exemplo, se todos na casa lavam seus lençóis com as mãos, por que o adolescente deveria ser tratado diferente? O juiz deve levar em consideração tanto a condição da família quanto a relação da família com aquele indivíduo, além, óbvio, da idade da criança. Tratar uma criança de um ano como se trata uma criança de onze é errado. Você não deixa seu filho de um ano tomar banho sozinho, mas seria muito estranho você dar banho em seu filho de 11 anos. Ambos são, juridicamente, crianças. Mas suas idades exigem que sejam tratados de formas diferentes.

http://direito.folha.com.br/1/post/2011/09/o-segredo-de-justia-no-serve-para-proteger-o-magistrado.html

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