sábado, 7 de abril de 2012

A responsabilidade civil objetiva

Pleiteando ressarcimento nos moldes da teoria subjetiva, alguém que se diz em Juízo vítima da conduta danosa praticada por outrem, deverá comprovar, com os elementos lícitos de prova que tiver à disposição, a culpa do réu.
Ocorre que, historicamente, a responsabilidade civil subjetiva prevista na lei, somada à sistemática processual de obrigar à vítima a provar o alegado, passou a não mais fazer justiça frente a uma enormidade de casos concretos. Situações havia em que seria impossível ou extremamente difícil à vítima comprovar a culpa de seu algoz; hipóteses em que terminaria por não fazer jus à indenização, meramente pelo mecanismo processual do ônus da prova, pressuposto da fundamentação da decisão judicial de mérito, quando se exigiria a prova do alegado: no caso, a prova da culpa.
Curiosamente, a mais avançada teoria acerca da responsabilidade civil – a teoria objetiva – surgiu em torno de fato que hoje é objeto do Direito do Trabalho: o acidente de trabalho. Sobre isso, explana ARAGÃO (artigo cit.):
O empregado vítima de um acidente deveria oferecer três tipos de provas: a primeira, que havia sofrido um dano; a segunda, que o agente cometeu um delito; e a terceira, que o dano decorreu do delito: dano, culpa e relação de causalidade. Caso o empregado, em virtude do ônus probatório, não conseguisse satisfazer essas provas, estaria derrotado no processo, sem direito algum a indenização.
Exsurgiu então a necessidade de mudança na teoria jurídica da responsabilidade civil. A responsabilidade civil subjetiva, fundada exclusivamente na culpa, não era mais suficiente para fazer justiça frente a uma série de situações cada vez mais comuns.
O mesmo autor cita a Revolução Industrial, havida na Europa, ainda no Sec. XVIII, como grande marco para o aparecimento da responsabilidade civil objetiva. Com efeito, é que com o surgimento da grande escala de produção laboral, demandando enorme mão-de-obra nas fábricas e metalúrgicas recém-surgidas, aumentou também a produção de bens e a circulação de riquezas. A Revolução Industrial provocou assim uma crescente de produção que exigia mais e mais trabalho. O trabalhador foi levado a extremos, numa situação de penúria, com jornadas de trabalho esmagadoras e salários aviltantes, o que levou ao aumento da frequencia dos acidentes de trabalho. Foi daí que se teria desenvolvido a teoria do risco, como locomotiva de uma nova espécie de responsabilidade civil: a responsabilidade objetiva.
Evidentemente, as teorias atinentes à responsabilidade civil objetiva não surgiram, em face da Revolução Industrial, da noite para o dia. Quando as primeiras teorias objetivistas começaram a se materializar, o Código Civil da França, propagador da responsabilidade civil exclusivamente subjetiva, já vigorava havia mais de 80 (oitenta) anos, sendo que, por esse prisma, o próprio código já estava defasado quando entrou em vigor, no início do Sec. XIX, haja vista que o movimento da Revolução Industrial iniciou-se ainda no Sec. XVIII, a partir da Inglaterra. Cuida-se da constatação do inevitável fenômeno de que o Direito caminha muito mais lentamente que os fatos sociais que regulamenta.
Conquanto outros autores tenham dantes suscitado o tema, comete-se com maior definitividade a autoria do aperfeiçoamento da responsabilidade objetiva aos franceses Saleilles e Joserrand; o primeiro com uma obra sobre acidentes de trabalho, e o segundo pertinentemente a um estudo sobre a responsabilidade civil no fato das coisas inanimadas; ambas escritas em 1897. Este último, em famosa hermenêutica extraída do art. 1.384 do Código de Napoleão, dissertou que o termo “fait” (fato, em francês), estaria abrangido no “faute” (culpa, também em francês), exsurgindo, pois, a noção de responsabilidade civil pela “culpa da coisa”, animada ou inanimada; hoje denominada de responsabilidade civil pelo fato da coisa. Tais concepções, na lição de GONÇALVES (op. cit., pp. 168-9), representaram “um avanço em relação ao tradicional sistema baseado na idéia de culpa do agente causador do dano, a ser demonstrada pela vítima. Isto equivalia, muitas vezes, a deixá-la irressarcida, ante a impossibilidade de se produzir tal prova”.
As situações concretas atraentes à responsabilidade objetiva, com o tempo, a lei passou a normatizar, fugindo-se do campo concreto para a abstração da teoria, o que culminou com a generalização de duas teorias da responsabilidade civil: a primeira e mais antiga, denominada clássica, fundada na culpa, que se diz a regra; e a segunda, mais moderna, fundada no risco da atividade ou no fato da coisa (animada ou inanimada) ou da pessoa.
A noção que se tem hoje de responsabilidade civil independente de culpa, como sinonímia para responsabilidade civil objetiva, é em certo modo diferente daquela havida à época em que se desenvolveu a teoria. Coloca-se opinião de que, naquele tempo de um positivismo tão arraigado, soaria irrazoável a qualquer estudioso extrair completamente a noção de culpa da teoria da responsabilidade, mormente sob a égide de um código tão firmemente nela calcado. Portanto, em tema de responsabilidade civil, passou-se a entender que haveria as hipóteses de responsabilidade fundada na culpa, e aquelas em que a culpa seria presumida. E, a partir desse contexto, a doutrina se desenvolveu, teorizando as mais variadas espécies de culpa presumida: in vigilando, in neligendo, in custodiendo, in comittendo, in omittendo, etc., até surgir, finalmente, a aglutinadora expressão culpa in re ipsa, ou “culpa pelo fato”, que, em verdade, o código francês já trazia.
Estas novas escolas doutrinárias francesas se refletiram no Brasil. O CCB de 1916, lastreado no modelo francês, é todo ele fundamentado na culpa, no que concerne à responsabilidade civil. Aliás, tanto o é que o código só associa responsabilidade civil à ilicitude do ato. Trata a responsabilidade civil subjetiva (arts. 159-60) no Tít. II – Dos Atos Ilícitos – de seu Livro III – Dos Fatos Jurídicos – da Parte Geral; e as exceções à responsabilidade civil subjetiva (arts. 1.518-32) no Tit. VII – Das Obrigações por Atos Ilícitos – de seu Livro III – Do Direito das Obrigações – da Parte Especial. Portanto, tinha-se a responsabilidade civil por culpa direta, e responsabilidade civil por culpa presumida. A maior parte das hipóteses de responsabilidade civil objetiva que hoje estão no CCB de 2002 já eram previstas no CCB de 1916, e até pelo código francês de 1804. A perspectiva de avaliação doutrinária – que não se desligava da idéia de culpa – é que era diferente.
Hodiernamente, todas essas hipóteses são tratadas como sendo de responsabilidade civil objetiva, rigorosa e verdadeiramente independente culpa, pelo que, modernamente, é incorreto falar em culpa presumida. Fala-se, tão-somente, em responsabilidade objetiva. Se um menor de idade, ad exemplum, causa dano material a alguém, seu pai, tutor ou responsável incorrerá na responsabilidade civil, independentemente de culpa. Isto quer dizer que não há se cogitar de culpa alguma, seja direta, seja presumida (como diriam alguns ter ocorrido na espécie: culpa in vigilando do pai em relação à criança); será o pai responsabilizado porque a lei assim prevê. A responsabilidade objetiva é independente de culpa simplesmente porque, na situação prevista em lei, não se cogita desta. Não irá interessar, pois, para o deslinde da ação de reparação civil (salvo para, talvez, majorar o quantum indenizatório), que o julgador investigue se, de fato, no caso concreto, o pai descurou-se de vigiar o filho, ou se nada fez para impor-lhe limites, ou se mesmo induziu ou ordenou ao filho que causasse o dano. Será ele responsabilizado simplesmente porque a lei imputa-lhe tal ônus.
O ordenamento jurídico prevê, atualmente, várias modalidades de responsabilidade civil objetiva, a saber:
a)                  Responsabilidade civil objetiva pelo risco da atividade (art. 927, parágrafo único, 2ª parte, do CCB/2002);
b)                 Responsabilidade civil por acidente de trabalho (art. 7º, XXVIII, da CF/88, c/c Lei 6.367/76 e arts. 59, caput, e 60, §3º, da Lei 8213/91);
c)                  Responsabilidade civil consumerista (arts. 12 e 14 do CDC);
d)                 Responsabilidade civil pelo fato da coisa, que, por sua vez, divide-se em responsabilidade pela ruína de edifício ou construção (CCB/2002, art. 937), responsabilidade pelas coisas caídas (CCB/2002, art. 938), e responsabilidade pelo fato do produto (CCB, art. 931);
e)                  Responsabilidade pelo fato de terceiro (CCB/2002, art. 932);
f)                  Responsabilidade pelo fato do animal (CCB/2002, art. 936).
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VERÇOSA, Alexandre Herculano. Responsabilidade civil do Estado e de particulares em acidentes de trânsito provocados por animais. Análise da doutrina da responsabilidade civil e apanhado da jurisprudência nacional . Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3194, 30 mar. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/21387>.

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