sábado, 13 de outubro de 2012

As hipóteses legais restritivas da adoção conjunta no Estatuto da Criança e do Adolescente e a proposta de uma interpretação teleologicamente orientada ao interesse superior da criança

No que concerne aos efeitos sobre os vínculos familiares, a doutrina aponta uma classificação dicotômica da adoção. De um lado, há a adoção singular, entendida como a realizada a pedido de apenas uma pessoa, homem ou mulher, e que vem sendo chancelada jurisprudencialmente, não obstante inexistir previsão textual no ECA. De outro, a adoção conjunta, que conta com previsão expressa nos parágrafos do art. 42 do Estatuto. Reproduzo-os:
§ 2o  Para adoção conjunta, é indispensável que os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família.
§ 4º  Os divorciados, os judicialmente separados e os ex-companheiros podem adotar conjuntamente, contanto que acordem sobre a guarda e o regime de visitas e desde que o estágio de convivência tenha sido iniciado na constância do período de convivência e que seja comprovada a existência de vínculos de afinidade e afetividade com aquele não detentor da guarda, que justifiquem a excepcionalidade da concessão.
Diante do texto de lei, a questão que se coloca é a de saber se essas hipóteses previstas no Estatuto foram fixadas em numerus clausus ou, ao revés, poder-se-ia admitir a sua ampliação para o fim de autorizar a adoção conjunta em situações não expressamente reguladas no texto legal.
Essa dúvida foi recentemente objeto de discussão no STJ. No caso submetido ao exame daquele Tribunal Superior, a União interpôs recurso especial com vistas a anular a adoção conjunta de uma criança feita por uma mulher com seu irmão. A peculiaridade do caso reside, todavia, na circunstância de o irmão da adotante ter falecido no decurso do procedimento judicial.
Aí se cuida de invocar o § 6º do art. 42 do Estatuto (com a redação dada pela Lei 12.010/09). Colaciono:
§ 6º  A adoção poderá ser deferida ao adotante que, após inequívoca manifestação de vontade, vier a falecer no curso do procedimento, antes de prolatada a sentença.
Nesse dispositivo, encontramos a autorização legal para a figura que a doutrina convencionou denominar de adoção póstuma, post mortem ou nuncupativa. Sua leitura permite inferir tratar-se de modalidade especial de adoção, havida em decorrência do falecimento de um dos adotantes no curso do procedimento. Como o óbito deu-se antes da prolação da sentença que decide acerca da formação do vínculo filial adotivo, o legislador cuidou de autorizar o deferimento da medida de colocação em família substituta, contanto que comprovada a manifestação de vontade inequivocamente direcionada a esse propósito pelo adotante falecido. É, por isso mesmo, a única hipótese que admite que a sentença - que reconhece ao adotado a filiação postulada - possa operar retroativamente, projetando (ex tunc) os efeitos da coisa julgada então formada para a data em que o adotante veio a falecer.  
No caso concreto, a União impugnou de ilegal a adoção póstuma deferida, em razão de que teria havido desrespeito à regra do § 2º do art. 42 do ECA, no sentido de que “Para adoção conjunta, é indispensável que os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família.” Ora, como os adotantes eram irmãos, desatendida estaria a norma aludida, porquanto não teriam satisfeitos os requisitos de casamento, tampouco de união estável. Sequer virtualmente seria possível pensar em casamento entre os adotantes, dado haver impedimento civil a obstar que irmãos contraiam o enlace matrimonial (CC, art. 1.521, IV).
Submetido o recurso especial a julgamento, a Terceira Turma do STJ entendeu que as hipóteses de adoção conjunta, previstas no artigo 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente, não são as únicas que atendem ao objetivo essencial da lei, que é a inserção do adotado em família estável. Seguindo o voto da relatora, Min. Nancy Andrighy, a Turma entendeu que o pedido de adoção, no caso concreto, confundir-se-ia com o reconhecimento de filiação socioafetiva preexistente. Sim, pois o adotante falecido já de há muito construíra vínculo de afeto com o adotado, aliás, desde que esse possuía 4 anos de idade. Com isso, o entendimento turmário inclinou-se no sentido de perquirir a inequívoca intenção de adotar pelo falecido. Uma vez caracterizada essa intenção, a Turma entendeu que as restrições legais do § 2º do art. 42 do ECA não se poderiam sobrepor ao melhor interesse do adotando – que, no caso sub examinen, dava-se exatamente com o reconhecimento judicial da adoção. Eis as palavras da relatora do caso em apreço:
A exigência legal restritiva, quando em manifesto descompasso com o fim perseguido pelo próprio texto de lei, é teleologicamente órfã, fato que ofende o senso comum e reclama atuação do intérprete para flexibilizá-la e adequá-la às transformações sociais que dão vulto ao anacronismo do texto de lei.   
O mais interessante é notar que, com essa decisão, o STJ superou a discussão em derredor da adoção conjunta, consistente na sua limitação legal às hipóteses expressamente consignadas nos parágrafos do art. 42 do ECA. Isso porque, se o julgador reconhecer em concreto que a inserção do adotando em família substituta atende o interesse superior da criança e do adolescente (doutrina da proteção integral), a exemplo da formação pretérita de núcleo familiar estável lastreado em relação comprovadamente sólida de afeto, seria de todo desarrazoado ater-se a um legalismo estrito, para impedir o deferimento da adoção. Semelhante entendimento, que pugna por uma exegese legalista empedernida, iria de encontro ao próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual determina, de maneira expressa, que na interpretação dessa lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento (art. 6º).  


A decisão da Terceira Turma do STJ constitui-se em precedente dos mais importantes quanto ao estudo do instituto da adoção no Direito da Criança e do Adolescente brasileiro. Nos seus termos, percebemos a tendência da Corte em superar exegeses estritamente legalistas, em homenagem à principiologia que encerra o Estatuto, voltada à realização dos direitos fundamentais de cunho infantojuvenis.
Mais do que isso, a decisão do STJ demonstra que o Estatuto da Criança e do Adolescente deve ser interpretado à luz da doutrina da proteção integral e prioritária. Impende, assim, analisar a aplicação das regras da Lei 8.069/90 teleologicamente orientadas a assegurar a eficácia dos direitos fundamentais conferidos às crianças e aos adolescentes. Diante desse orientação teleológica, descabe argumentar-se que requisitos legais estariam a ser violados, quando se puder observar que circunstâncias aparentemente não previstas em lei atendem ao interesse superior do infante.
A conclusão, portanto, é a de que o Estatuto da Criança e do Adolescente reclama uma interpretação aberta, assecuratória dos direitos fundamentais infantojuvenis em ordem a dar-lhes máxima expressão eficacial. Só uma interpretação teleológica dessa natureza tem o condão de concretizar as normas que integram a arquitetura internacional de direitos humanos protetiva da infância e da juventude, nos termos das quais é imperioso reconhecer também às crianças e aos adolescentes a condição de credores da dignidade da pessoa humana, isto é, de autênticos sujeitos de direito.

TEODORO, Rafael. Interpretação teleológica e superação das hipóteses legais restritivas da adoção conjunta no Estatuto da Criança e do Adolescente. Análise da decisão do STJ no precedente da adoção póstuma entre irmãos. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3390, 12 out. 2012 .

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