quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Amor e futebol se encontram na audiência de separação

Sempre me senti muito desconfortável quando, nas separações consensuais, a lei me obrigava a perguntar ao casal se eles tinham certeza da decisão tomada.

Ora, se procuraram um advogado, estabeleceram as cláusulas da separação e ali estavam, na frente de um juiz pra encurtar aquele período de desgaste, o que se esperava que fossem responder?

Tratava, então, de diminuir o constrangimento e começava, assim, as audiências:
— Desculpem, não quero parecer invasiva ou inconveniente, mas a lei manda que eu pergunte se vocês querem mesmo se separar.

Então prosseguia perguntando se eles ratificavam o acordo para, no mesmo ato, decretar a separação. Simples, rápido, sem qualquer rito especial exceto pela exposição pública da frustração daqueles mortais que percebiam que a felicidade perene, o até que a morte nos separe chegava ao fim sem pompa, sem música, sem convite e sem festa.

Dependendo do casal e do clima, me permitia um ou outro comentário pra aliviar a tensão e reduzir a dor da perda. Sim, porque nossa tendência, após anos trabalhando na mesma atividade é perder a capacidade de individualizar as dores e os conflitos que chegam às nossas mesas. Cada processo é um processo. Cada casal é um casal. Cada fim de casamento é um fim de mundo e cada audiência é única para aqueles que comparecem diante de um juiz e expõem as frustrações pela incapacidade de viver um grande amor.

É uma pena que o amor não acabe ao mesmo tempo para os dois. O amor acaba e ninguém avisa isso pra ninguém que pretende se casar. E a percepção do fim acontece de repente. Não se consegue estabelecer uma data, um fato, um porquê, mas de uma hora pra outra alguém constata que não dá um beijo na boca do outro há mais de um mês. Os prazeres tomam caminhos solitários e um não consegue sequer saber o que comove ou sensibiliza seu companheiro.

A rotina, a falta de dinheiro, problemas com os filhos adolescentes, desemprego, stress, cansaço, a crise política, tudo parece conspirar para mascarar o diagnóstico e retardar a terrível constatação captada com perfeição pelo poeta... o nosso amor acabou, que coincidência é o amor, a nossa música nunca mais tocou...
Daí pra frente, o casamento vira uma espécie de prorrogação, de terceiro tempo sem tempo pra terminar e dependendo da capacidade de suportar a vida pintada em bege, as relações podem até mesmo durar pela vida toda.

Tenho observado que nos processos de separação, quando não há uma nova paixão avassaladora, as decisões são, na maioria das vezes, tomadas pelas mulheres. Observo, também, que quando a separação importa na redução da capacidade financeira, os casais têm optado pela manutenção da relação e procurado formas de convívio menos dolorosas.

Foi, portanto, com algum estranhamento, que vi entrar na sala de audiências o contador Robério e professora aposentada Idalina.
Trinta e oito anos de casamento, quatro filhas, todas casadas, seis netos, nenhum patrimônio para partilhar, nenhum pedido de pensão alimentícia.
Na petição inicial nenhum ressentimento declarado ou qualquer imputação de culpa. Pretendiam a separação por incompatibilidade de gênios.
Formulei, então, a burocrática pergunta: Querem mesmo se separar ou há possibilidade de reconciliação?
Silêncio. Idalina baixou a cabeça encorajando Robério a se expressar.
— Ninguém quer se separar não, excelentíssima. Nem sei porque viemos aqui.
Estava tão acostumada com a repetição que, confesso, não sabia como prosseguir. Tentei me manter impávida e voltei à abordagem:
— Bem, se não querem se separar por que entraram com a ação?
— Essa mulher tá com a cabeça virada. Mas a gente já se acertou, aliás, passamos uma noite maravilhosa..., disse Robério mal conseguindo conter o orgulho da virilidade naquela idade.
Idalina nada falava. Parecia distante e perdida. Decidi ser mais firme em apoio ao que imaginei fosse o desejo daquela mulher.
— Olha seu Robério. Eu sei que esta decisão é muito difícil, que vocês viveram muitos anos juntos, mas, quando os dois não querem, acho impossível continuar casado. Vocês têm uma família grande, netos, mas quem sabe não é melhor cada um seguir sua vida, não é dona Idalina?, perguntei, cúmplice.
Pela primeira vez ela tomou as rédeas da situação e foi firme na intervenção:
— Não é melhor não, doutora, melhor mesmo é continuar com ele.
Ela não sorria, não esboçava qualquer sinal que indicasse a felicidade do reencontro. Imaginei que pudesse estar pressionada ou submetida ao poder daquele que exerceu o controle de uma vida inteira.
Decidi que seria solidária e transmitiria à Idalina, a segurança que ela tanto precisava.
É claro que aquele comportamento não integrava meus deveres funcionais. No entanto, a magistratura era uma das muitas funções que eu exercia na vida e é claro que todas as minhas virtudes e vícios transpareciam de alguma forma no exercício da profissão. Naquela ocasião atuei parcialmente em favor de Idalina para compensar as diferenças daquela relação que intui tão desigual e prossegui:
— O respeito é sempre muito importante. E vocês devem continuar sendo amigos. Se as coisas mudarem, quem sabe até voltam a namorar?
Idalina me interrompeu.
— Eu não quero me separar mas preciso falar umas coisas. Por isso vim aqui.
Robério coçou a cabeça como uma criança que se prepara para um sermão.
— Eu não agüento mais tanta falta de atenção. Eu só quis me separar porque me sinto muito sozinha. As crianças foram embora. A casa tá vazia. A gente mal se fala. Almoço e janta com a televisão ligada. Tudo que eu falo ele não escuta. Mas a gota d’agua é o futebol. Eu não suporto futebol todo dia. Enquanto ele assistia o jogo no mês passado, disse que estava saindo de casa. Sabe o que ele respondeu? Nada. Pediu que eu saísse da frente porque tinha sido impedimento... Dá pra acreditar? Impedimento?!!! Naquela mesma noite fui pra casa da minha filha e no dia seguinte procurei o advogado.
— Mas, D. Idalina, há quanto tempo ele assiste futebol?, perguntei.
— A vida toda. Mais de vinte anos...
Não pude conter o riso. Pensei em meu pai e sua paixão alucinada pela peleja. Avaliei os riscos que corria.
Ela prosseguiu:
— Ele é um homem bom, doutora. A gente lutou muito junto. Toda a vida e a gente nunca se largou. Ele nunca teve mulher na rua.
Robério, verdadeiramente sensibilizado olhou para Idalina e quase num sussurro a fez lembrar da aquisição da casa, da única viagem de férias a Cabo Frio, da perda do filho homem num acidente de carro e do quanto, juntos, eles dividiram toda a vida.
Os dois, de mãos dadas sobre a mesa, choravam.
Eu tentava me socorrer do conhecimento jurídico para retomar o rumo daquela audiência e só lembrava dos filmes e romances que lera pela vida a fora.
Entendi que sabia muito pouco da vida. Aquele casal se amava e esperava que da minha autoridade viesse uma resposta para o abismo que ali se instalou. Achei que não podia decepcioná-los.
— Olha aqui pessoal. Eu não vou separar vocês não. A gente combina o seguinte: suspendo o processo por 60 dias. Nesse período, o Seu Robério só assiste aos jogos do Flamengo. No resto do tempo, vocês saem, passeiam um pouco pela cidade, almoçam domingo na casa das filhas, ajudam com os netos. Tá bom assim?
Aliviados, os dois nem me olharam. Estavam encantados um pelo outro.
Nem o advogado nem o Ministério Público discordaram de decisão tão teratológica. Quem ousaria depois de presenciar tanto mistério?
Antes de sair, já do lado de fora da porta, Idalina me olha e sorrindo pergunta:
— É só jogo do Flamengo mesmo, né, doutora?
*Esta crônica faz parte de uma experiência literária da juíza Andréa Pachá que, junto com outros textos, deverá em breve se transformar em livro.

Andréa Pachá é juíza de Direito em Petrópolis (RJ) e ex-conselheira do Conselho Nacional de Justiça.
Revista Consultor Jurídico

Arranjo familiar muda e estimula opção por testamentos

A opção pelo testamento como forma de definir, no todo ou em parte, a partilha de bens de uma pessoa após a sua morte está em alta. Os números ainda estão longe do patamar registrado em outros países, mas sinalizam um crescimento contínuo e serviram como base para Testamentos — Teoria e Prática. O estudo foi feito por Elza de Faria Rodrigues, tabeliã do 4º Cartório de Notas de Osasco, região metropolitana de São Paulo, que reuniu um vasto material sobre o tema, para explicar em detalhes o que é, para que serve, quais são os tipos e as discussões jurídicas ainda existentes sobre o testamento.

Ao longo das 358 páginas da obra, a autora explica ainda o que pode e o que não pode constar em um testamento, os casos especiais previstos na legislação e as circunstâncias que podem resultar na anulação do documento. Ao final, ela apresenta modelos de testamentos prontos para serem utilizados.

Elza Rodrigues explica que um dos objetivos do livro é incentivar o uso do testamento como instrumento para a garantia de uma sucessão tranquila e econômica, o que passa pela disseminação de informações e o enfrentamento de um dos maiores tabus do ser humano — a morte. "Não é de nossa cultura que as pessoas regulem sua sucessão por meio de testamento, embora esse instrumento seja um meio interessante para prevenir litígios em torno das sucessões e garantir a vontade do testador, em especial por meio do instrumento público", explica.

Em São Paulo, o Registro Central de Testamentos contabiliza cerca de 270 mil desses documentos em um banco de dados organizado e mantido pela seção paulista do Colégio Notarial do Brasil. A média anual de testamentos em todo o estado fica em torno de 7 mil por ano, mas os cartórios já identificaram uma tendência de alta, principalmente em decorrência das mudanças ocorridas nos últimos anos na composição familiar, caracterizada, cada vez mais, por novos e complicados arranjos, com consequências jurídicas ainda não inteiramente absorvidas pelo Direito.

Exemplos claros desse novo cenário já aparecem nas estatísticas produzidas pelo IBGE, com destaque para o crescimento do número de uniões formadas por pessoas que já passaram por vários casamentos e também do reconhecimento das uniões homoafetivas como entidade familiar. Com o testamento, companheiro ou companheira podem evitar previsíveis disputas judiciais futuras envolvendo familiares do morto.

Mestre em Direito das Relações Privadas e especialista em Mediação pela Universidad Castilla de La Mancha, na Espanha, a autora revela-se apaixonada pelo tema, diz que o livro estava em seus planos desde os tempos de faculdade e acredita que o trabalho despertará o interesse de estudantes, tabeliães e advogados, especialmente por aliar questões de natureza jurídica a aspectos práticos e corriqueiros no dia a dia dos cartórios.

O lançamento do livro foi saudado pelo presidente do Conselho Federal do Colégio Notarial do Brasil, Ubiratan Pereira Guimarães, que considera o testamento como "o mais formal entre todos os atos jurídicos formalizados pelo notário" e também aquele que exige conhecimento mais profundo sobre o direito das sucessões e de família. "Uma obra que trate cuidadosamente dos requisitos, cláusulas e demais nuances desse ato jurídico, com certeza contribui decisivamente para a formação dos operadores do direito notarial, fazendo-os refletir com mais comprometimento sobre as questões que lhes são apresentadas no exercício da atividade notarial", disse Guimarães.

 Robson Pereira é jornalista.
Revista Consultor Jurídico

O Habeas Corpus sempre foi uma garantia ampla contra abusos

É recorrente a menção ao excesso de Habeas Corpus como um dos fatores de causa da morosidade judiciária, em especial nos Tribunais Superiores. O Anuário da Justiça de 2011 indica um aumento de 700% dos writs no Superior Tribunal de Justiça e de 500% no Supremo Tribunal Federal.

Por causa disso, são frequentes as propostas de reformas legislativas para a redução do uso do Habeas Corpus, em regra sugerindo a limitação do instrumento aos casos de efetiva violação da liberdade de locomoção, e inadmitindo-o expressamente para buscar o trancamento de inquéritos e ações penais, ainda que flagrantemente ilegais. Alguns apontam que tais propostas têm o objetivo de fazer com que o Habeas Corpusseja restrito à sua função tradicional, qual seja, a de proteger apenas o exercício imediato da liberdade de locomoção.

O presente artigo não busca o mérito da discussão, cujos argumentos já são conhecidos à saciedade, mas apenas trazer algumas referências históricas para revelar que a função histórica do Habeas Corpusao menos no Brasil —talvez não seja aquela indicada pelos críticos de seu suposto desvirtuamento.

Na História e Prática do Habeas Corpus, assim como em seus Comentários à Constituição de 1967, Pontes de Miranda faz um cuidadoso trabalho sobre a origem inglesa do remédio constitucional, e seu desenvolvimento peculiar no ordenamento e na jurisprudência brasileira, que joga luz sobre a questão.

Previsto pela primeira vez no Código de Processo Penal de 1832 como remédio para prisão ilegal o uso do Habeas Corpus foi se alargando para alcançar a ameaça de prisão ilegal (Lei 2.033 de 1832) e, afinal, qualquer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder (Constituição de 1891, art.72 §22), ensejando que mesmo a direitos sem relação com a liberdade de locomoção poderiam ser objeto de Habeas Corpus, como a inviolabilidade de domicílio e a liberdade profissional (doutrina brasileira do Habeas Corpus).

A reforma constitucional de 1926 indicou expressamente o uso do writ apenas para proteção da liberdade do direito de ir e vir (art.122, 16), sendo reservada ao Mandado de Segurança a discussão sobre outras matérias. Mas isso não significou a redução do Habeas Corpusapenas aos casos em que o réu está preso ou sofre uma ameaça imediata de prisão. Juristas à época já defendiam que a existência de investigação ou processo penal flagrantemente ilegal ou nulo poderia ser atacado por Habeas Corpus, vez que indiretamente estaria ameaçada a liberdade de locomoção. O próprio Pontes de Miranda afirmava em seus Comentários à Constituição de 1967 que a “ilegalidade da prisão” que justifica o habeas corpus pode não consistir na prisão mesma, porém no processo do acusado, que corra, por exemplo, perante juiz incompetente” (p.313). Ou seja, o remédio poderia ser apresentado para discussão até de competência jurisdicional.

Assim, qualquer nulidade processual ou falta de justa causa para investigação ou ação penal poderia ensejar Habeas Corpus, mesmo quando existente outro recurso ou instrumento cabível. Mais uma vez Pontes de Miranda, afastando raciocínio não raro feito pelos tribunais atualmente: “Tantas exceções há à regra jurídica ‘não cabe Habeas Corpus se há recurso em que se possa atender ao pedido’ que melhor fora não enunciá-la. A regra jurídica seria: se só em recurso pode ser atendido o pedido, não cabe habeas corpus. Mas o ‘só’ faria ressaltar a tautologia. Se a nulidade é evidente, ou se não é crime o fato, ou se não está previsto, ou se ocorreu outro caso de inexistência, ou de cessação de punibilidade, não há por onde se excluir o pedido de Habeas Corpus” (Comentários, p.327).

Diante disso, não é possível afirmar que — ao menos no Brasil — a função tradicional do habeas corpus foi a tutela única e imediata da liberdade de locomoção. Ao contrário, o instrumento sempre foi compreendido como uma garantia ampla contra abusos aos direitos fundamentais, ou ao menos a quaisquer liberdades que tivessem, de alguma forma, mesmo que distante, alguma repercussão no direito de ir e vir.

Por isso, as propostas de redução do uso do Habeas Corpuspodem até apresentar argumentos práticos ou pragmáticos — como o excesso de processos nos tribunais — mas não podem se escorar na função histórica do instituto no Brasil, pois, “a tendência foi sempre a de se ampliar o cabimento do grande remédio jurídico, com que enriqueceram o direito brasileiro os autores do Código de Processo Criminal” (Pontes de Miranda, Comentários, p.306).

E, sobre tais argumentos práticos e pragmáticos que pretendem limitar o uso do Habeas Corpus, nunca é demais lembrar a seguinte passagem do professor citado (p.333): “(os juízes) no momento de julgá-las (as petições de Habeas Corpus) devem ter presente ao espírito que o Habeas Corpus é a pedra de toque das civilizações superiores, um dos poucos direitos, pretensões, ações e remédios jurídicos processuais com que se sobrepõem aos séculos passados, mal saídos da Idade Média e do Absolutismo dos reis, os séculos da civilização liberal-democrática. Fazer respeitada a liberdade física é um dos meios de servir e sustentar essa civilização, a que todos os homens, de todos os recantos da Terra, se destinam.”

Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor de Direito Penal na USP. Foi membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e secretário de Reforma do Judiciário, ambos do Ministério da Justiça.
Revista Consultor Jurídico

Podemos internar os viciados à força?

Saiu na Folha de hoje (25/1/12):
90% aprovam internação involuntária
É quase uma unanimidade: 9 em cada 10 brasileiros acham que os viciados em crack devem ser internados para tratamento mesmo que não queiram (…)
A chamada internação involuntária (feita à revelia do paciente/viciado) é prevista na lei 10.216, de 2001, que trata de doentes mentais (…)
O psiquiatra Marcelo Ribeiro, professor na Unifesp e um dos organizadores do livro "O Tratamento do Usuário do Crack", diz que a internação involuntária deve ser considerada para os que estão numa fase aguda do vício, quando o drogado perde a capacidade de escolher se deixa ou não o consumo do crack, e é o primeiro passo para que o viciado recupere a condição de analisar a própria vida (…)
Já o Conselho Federal de Psicologia é contra. O presidente do órgão, Humberto Verona, diz que a internação involuntária não pode ser vista como sinônimo de tratamento (…)
Outro argumento dos que discordam da internação sem o consentimento dos doentes é que os direitos deles estariam sendo violados.


Esse é um assunto interessante do ponto de vista jurídico porque o Brasil – como outras democracias – ainda não conseguiu encontrar uma solução racional, seja para justificar a internação, seja para justificar a não internação.

O artigo 5
o da Constituição diz que todos somos livres e que temos direito (e não obrigação) à vida. Essa liberdade inclui o direito de fazermos com nossas vidas o que quisermos. Se eu quiser viver na miséria, viver na rua ou me matar, eu posso. A lei não pode me obrigar a trabalhar, a viver em uma casa ou me punir se eu tentar me matar.

Por outro lado, a lei não pode me garantir o contrário: ela não pode me garantir que eu serei bem sucedido, que eu viverei em uma mansão ou que eu não morrerei ao sair de casa hoje. O que ela garante é que, se eu precisar e quiser tratamento médico, haverá (ou deveria haver) um hospital para me ajudar; se eu precisar e quiser um abrigo, haverá (ou deveria haver) um albergue público para me acolher. Se alguém ameaça minha vida, posso recorrer à polícia para me proteger.

Ou seja, a lei garante um mínimo de proteção se eu precisar e quiser utiliza-la, e garante que se eu não quiser utilizar tal ‘rede de proteção’, eu não serei obrigado a faze-lo.

Por conta disso, se eu quiser me matar tomando algum medicamento ou me tornar incapacitado, posso. Não deveria (regra moral), mas posso (regra legal).

Mas nossas leis adotam um princípio básico de que algumas pessoas não sabem o que estão fazendo e, por isso, devem ser protegidas de forma especial. E um dos mecanismos de proteção é retirar delas o direito de decidir o que fazer com suas vidas.

Uma criança órfã que herde uma fortuna enorme não pode gerenciar seu dinheiro enquanto não atingir a capacidade civil (18 anos; ou após os 16 anos, se for emancipada). Se ela pudesse, gastaria tudo em jujubas e picolés. Isso não é uma punição contra ela, mas uma forma de protege-la. O mesmo ocorre se uma criança precisar de tratamento médico. Se dependesse dela, ela jamais tomaria a injeção ou faria a cirurgia. Mas a injeção ou cirurgia são essenciais para protege-la, ainda que ela não saiba disso. É por isso que a lei deixa nas mãos dos pais (ou mesmo da Justiça) decidir por ela. Novamente, isso não é uma punição, mas um mecanismo de proteção. Quando ela se tornar adulta e souber o que está fazendo, ela poderá recusar tratamento médico, mesmo que isso signifique que ela irá morrer (pense nos grupos religiosos que recusam a transfusão de sangue, por exemplo). E poderá gastar sua herança em jujubas e picolés, se ainda quiser. Em outras palavras, as pessoas capazes é que não são obrigadas a utilizar a rede de segurança garantida pela lei. As incapazes são obrigadas a utilizar tal rede até se tornarem capazes.

Bem, a lei diz que não são apenas os menores que são incapazes. Os deficientes mentais, por exemplo, também são incapazes, na medida de sua deficiência.

E ela também não trata a incapacidade como algo único. Ela estabelece graus de incapacidade: aqueles que são absolutamente incapazes e aqueles que são apenas relativamente incapazes. Por exemplo, alguém entre 16 e 18 anos é relativamente incapaz, enquanto alguém mais novo será absolutamente incapaz.

No grupo dos relativamente incapazes, a lei inclui “os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido” (art 4
o do Código Civil). Em outras palavras, os alcoólatras e viciados em drogas são relativamente incapazes.

E é isso que complica a decisão sobre como trata-los. Se fossem absolutamente incapazes, a solução seria fácil: não sabem o que estão fazendo e por isso devem ser internados para sua própria proteção. Mas o relativamente incapaz sabe o que está fazendo, ao menos até certo ponto. É por isso que ele pode tomar decisões que afetam sua vida, desde que assistido por outra pessoa que vele por seus interesses. Essa segunda pessoa (o responsável legal, como os pais ou tutores) está lá para auxiliar e preencher o vácuo deixado pelo que ainda lhe falta para atingir uma capacidade plena.

E aí aparecem três problemas jurídicos e práticos que continuam sem solução no país:

Quão capazes eles são para decidir se precisam e/ou devem ser internados? Eles estão mais para um adulto ou mais para uma criança? Em alguns momentos eles estão totalmente lúcidos, e em outros, não. Como chegar a uma regra aplicável na prática e justificável racionalmente? A lei não tem uma solução prática e genérica.

É possível tratar usuários diferentes, drogas diferentes, e formas de uso diferentes da mesma forma? Alguém que usa a droga duas vezes por dia deve ser tratado da mesma forma que alguém que a usa três vezes por dia e alguém que a usa cinco vezes por dia, mas apenas uma vez por semana? E alguém que usa um pouco de crack deve ser tratado da mesma forma que alguém que muita maconha? E o que é 'um pouco' de crack? É possível achar uma regra geral? Sem uma regra geral (ou regras específicas que sejam práticas), é difícil elaborar uma lei útil, e dezenas de milhares de casos irão parar na Justiça e terão de ser decididos um a um, o que vai causar mais problemas do que resolver.

Finalmente, vale a pena forçar alguém que não quer se tratar, ser internado? A lei não existe em um vácuo. Ela existe para organizar a nossa realidade. As boas leis são aquelas que resolvem problemas reais. As leis ruins são aquelas que criam mais problemas. Pode ser uma perda de tempo gastar recursos públicos para tratar alguém que não quer se tratar. Ou pode não ser. Se a decisão de não ser internada é racional, as chances sucesso do tratamento são bem menores porque é uma opção de vida da pessoa ser viciada (como no caso do adulto que resolveu recusar tratamento médico). Mas se ela não sabe, a internação forçada pode ser uma forma efetiva de tratar (como no caso da criança que não pode recusar tratamento médico). Mas como ela é incapaz, e como seres humanos não vêm com lâmpadas na testa mostrando se são/estão racionais ou não, a lei ainda não encontrou uma forma prática de saber qual o melhor caminho a tomar.

PS: A Lei 10.216/01, mencionada na matéria, trata de internação voluntária de pessoas com transtorno mental e não especificamente de viciados. A lei não diz que o viciado sofre de transtorno mental e que ele deve ser tratado como tal. Isso é algo ainda em debate. E essa lei serve, como ela mesma diz, para proteger os direitos do portador de transtorno mental, e não como uma punição, e a internação só pode acontecer "quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes". Isso significa que primeiro deve-se tentar resolver o problema sem internar a pessoa no hospital. Só se isso falhar é que a pessoa deve ser internada. Mas, novamente, essa lei é para quem sofre de transtorno mental. Ela em nenhum momento define o que é transtorno mental.