quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Caso do goleiro Bruno e Elisa Samudio: DNA não é prova irrefutável

Saiu na Folha de ontem (21/10/10):

DNA comprova que ex-goleiro é o pai do filho de Eliza, diz advogado
Exame de DNA confirmou que Bruno Fernandes é o pai do filho de Eliza Samudio. A afirmação, feita ontem, é do advogado José Arteiro Cavalcante Lima, que representa Sonia de Moura, mãe de Eliza.
Bruno está preso em Minas Gerais acusado de sequestrar e matar a jovem, sua ex-amante.
O advogado disse que o exame foi feito quando Bruno estava preso no Rio. ‘O laudo ainda está sendo formulado, mas já sei o resultado, e é positivo’, afirmou Lima.
Segundo ele, assim que o laudo for emitido e confirmar a paternidade, será pedido na Justiça o bloqueio dos bens de Bruno para garantir o pagamento de pensão alimentícia.
O Tribunal de Justiça do Rio informou que não pode confirmar o resultado nem a realização do exame porque o processo tramita em sigilo.
A Folha não conseguiu falar com Ércio Quaresma, advogado de Bruno, nem com outros representantes dele”.

Reparem que o título não deixa espaço para dúvida: fulano é o pai. Ponto. Temos que tomar muito cuidado quando afirmamos que exames – inclusive o de DNA – provam alguma coisa. Eles não provam ou comprovam nada. Eles indicam ou corroboram alguma alegação.

Isso porque os exames, por mais precisos que sejam, ainda são passíveis de uma série de problemas.

Primeiro, nenhum exame é completamente seguro. O DNA não é exceção. Os erros são pouquíssimos: é quase sempre abaixo de 1 erro por 100 mil. Isso dá uma possibilidade 99,99% de certeza*. Mas isso não é certeza absoluta.

Às vezes, mesmo laboratórios se contradizem. Reparem, por exemplo, o site de um laboratório americano abaixo.
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Além do fato de cerca de 0,2% da população ser composta de gêmios monozigóticos – muitos dos quais sem saberem sequer que possuem irmãos gêmios –, e outros sofrerem de quimerismo (quando uma mesma pessoa possui mais de um código genético, com diferentes órgãos do corpo apresentando DNAs diferentes), laboratórios cometem erros, amostras são contaminadas, pessoas fabricam exames, policiais plantam provas, cientistas são subornados etc.


Nos EUA existem pessoas que se dedicam apenas a catalogar casos em que exames de DNA errados inocentaram um culpado ou culparam um inocente. Para quem se interessa, aqui está uma matéria com vários casos reais.

Enfim, evidências científicas ajudam a esclarecer fatos, mas elas não são irrefutáveis e devemos tomar cuidado para não dar a elas uma força que não têm. A bem da verdade, como o filósofo Karl Popper afirmava, para que algo tenha validade científica, ele precisa ser refutável. Caso contrário é dogma e não ciência.

* Um pouco sobre a parte científica do exame de DNA. Ainda que o laboratório faça tudo corretamente e a amostra testada seja de fato a amostra que deveria ser testada, o exame normalmente provê cerca de 0,01% de falsos positivos (sensibilidade científica). Alguns laboratórios chegam a alcançar resultados tão baixos quanto 0,0001%. Uma probabilidade nessa ordem de magnitude, na prática, significa que há um erro a cada 1 milhão de exames (algo como, se você testasse todos os homens brasileiros, 90 resultados positivos que retornassem positivos estariam errados). Se usássemos os números mais conservadores, seria um erro a cada 100 mil exames. Ainda que a possibilidade de um erro seja muito baixa, ainda assim ela existe.

Já a chance de um falso negativo (especificidade científica) tende a ser maior e pode chegar a 1%. Isso quer dizer que em cada cem casos em que o exame diz que alguém não é pai, um poderá estar errado, ou seja, a pessoa é o pai. 

Ambos os problemas são causados porque ainda são poucas as pessoas com seus códigos genéticos mapeados e, mesmo dentre aquelas que foram mapeadas, elas foram apenas parcialmente mapeadas. Vale lembrar que a primeira vez que um mapa genético de um ser humano foi feito, ele demorou 13 anos para ser completado (terminou em 2003) e custou US$3 bilhões. Hoje o valor é bem menor e demora poucas semanas, mas ainda assim é restritivo.

Enfim, laboratórios sérios fazem testes em mais de um local na cadeia genética (DNA loci) para fazer com que a precisão do teste seja maior. Quanto maior o número de testes e diversidade na localização do teste (DNA loci), maior será sua precisão. Laboratórios sérios fazem testes em mais de 15 DNA loci e, se encontram mutações ou inconsistências em alguma das amostras, aumentam o número de testes ainda mais. Mas até que o mapa genético de todos os homens esteja mapeado e o teste seja feito em todo o código, não poderemos afirmas com certeza que fulano é (ou não) pai. Podemos apenas dizer que o exame indica que fulano é (ou não) pai.

http://direito.folha.com.br/1/post/2010/10/dna-no-prova-irrefutvel.html

Tudo o que você filmar, gravar ou fotografar também poderá ser usado contra você no tribunal

Saiu na Rede Globo:
Nossa Constituição diz que ninguém é obrigado a constituir prova contra si mesmo, ou seja, ninguém é obrigado a dizer “sou culpado” ou dizer qualquer coisa que possa levar à presunção e sua culpa ou apresentar qualquer prova que possa levar à presunção de sua culpa. É o equivalente brasileiro ao que vemos todos os dias em filmes americanos: tudo o que você disser poderá ser usado contra você. A consequência dessa frase é que se você não quiser que seja usado contra você, não diga nada. É seu direito.

Mas a partir do momento em que você disse (seja à polícia ou a qualquer outra pessoa) ou filmou, o que você disse (ou filmou, ou fotografou ou assinou) poderá ser usado como prova contra você. Você abdicou de seu direito no momento em que você resolveu produzir a prova.

Ao contrário do que acontece com uma escuta telefônica ou seus arquivos de email, a polícia não precisa de autorização judicial para apreender o filme acima. A diferença é que quando a polícia grampeia seu telefone ou vasculha seu email, é ela quem está gravando, ou seja, violando sua privacidade e sigilo. Quando você filma ou grava sua própria conversa e esse filme ou gravação vai parar nas mãos da polícia, foi você quem produziu a prova. No primeiro caso, você não abdicou de seu direito à privacidade: foi a justiça que autorizou a sua violação. No segundo caso, você resolveu abdicar desse direito.

Óbvio que queremos que criminosos sejam condenados e presos. Mas existe um ‘quase outro lado da moeda’ aqui: às vezes você produz provas contra si mesmo embora não tenha cometido crimes. Nós vimos um exemplo recentemente: o do Brasileiro que divulgou em seu Twitter que iria trabalhar na Austrália com visto de turista. Ele acabou produzindo prova contra si mesmo, e essa prova foi usada contra ele pela polícia australiana. E vimos outros dois exemplos aqui: um no qual alguém, via Facebook, ajudou um bandido que estava cercado pela polícia; e outro no qual o ex-marido usou as fotos colocadas no Facebook pela esposa para alegar que ela não precisava da pensão alimentícia dele. Em ambos os casos, foram as pessoas que produziram provas contra si mesmas.

http://direito.folha.com.br/1/post/2011/07/tudo-o-que-voc-filmar-gravar-ou-fotografar-tambm-poder-ser-usado-contra-voc-no-tribunal.html

Médico não responde por danos em cirurgias de obesa

A 4ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina confirmou sentença da comarca de Joaçaba (SC) e isentou um médico e o Hospital e Maternidade São Miguel do pagamento de indenização a uma mulher que se submeteu a quatro cirurgias em 2002. A mulher precisou fazer uma cirurgia para retirada de pedra na vesícula, e teve complicações no pâncreas e abdome. Ela entrou com ação, pedindo indenização por danos morais, reparação estética, tratamento médico e pensão vitalícia.

O relator, desembargador substituto Ronaldo Moritz Martins da Silva, baseou-se nos dados técnicos apresentados pela perícia — enfática ao afirmar que os procedimentos cirúrgicos foram essenciais à sobrevivência da autora da ação. Ele observou que a obesidade da paciente foi um fator agravante na ocorrência das complicações. Além disso, não há provas nos autos de que a mulher tenha ficado infértil em razão das cirurgias realizadas, como alegou na ação.

"Ressalta-se que a obesidade da recorrente foi fator preponderante para a extensão dos prejuízos estéticos, visto que as grandes placas adiposas do organismo tornam o acesso ao órgão mais complexo, a incisão cirúrgica maior, e facilitam o desenvolvimento de hérnias incisionais. Inexiste, portanto, nexo de causalidade entre os danos estéticos sofridos pela autora e o atendimento prestado pelo médico réu, tendo em vista que as complicações experimentadas no pós-operatório e as cicatrizes no abdome são totalmente compatíveis com a gravidade da doença e o fator obesidade", concluiu Martins da Silva. Com informações da Assessoria de Imprensa do TJ-SC.

2009.070374-9
Revista Consultor Jurídico

Por que o STF se envolve em tanta polêmica?

Saiu na Folha de hoje (2/2/12):
"Peluso nega crise e diz que juiz não pode ceder a pressão
Em discurso na abertura oficial do ano do Judiciário, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Cezar Peluso, negou que haja uma crise no Poder e afirmou que os juízes não podem ceder a pressões (...)
A fala do presidente do STF ocorre em meio a uma polêmica sobre privilégios e irregularidades envolvendo magistrados e os limites do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), órgão de fiscalização e controle externo do Poder.
Poucas horas depois do discurso, o Supremo começou a analisar uma decisão provisória, tomada pelo ministro Marco Aurélio Mello, que limitou a atuação do CNJ. O julgamento foi suspenso ontem e será retomado hoje
"


Quase sempre que você lê um artigo sobre o STF, o artigo diz que é por causa de uma polêmica. Normalmente achamos que a polêmica é culpa da personalidade desse o daquele ministro. E às vezes é. É por isso que magistrados falam (ou deveriam falar) 'apenas nos autos', ou seja, só devem dizer o que pensam quando estiverem decidindo algo processo. Quanto menos eles falam, menos polêmica geram.

Mas há dois outros motivos que têm pouca relação com suas personalidades.

O primeiro é que, ao contrário do que muita gente pensa, o STF não é um tribunal político, mas constitucional. E um julgamento político é exatamente o oposto de um julgamento constitucional. Vamos entender:

Na Constituição colocamos tudo aquilo que é mais essencial em nossa vida como sociedade. O direito à vida é essencial? Então vamos protege-lo na Constituição. A separação dos poderes é importante? Então vamos protege-la na Constituição. Evitar que o presidente da República se torne um ditador vitalício é importante? Então vamos restringir o número de reeleições possíveis. Onde fazemos isso? Na Constituição.

Já um tribunal político é movido pelas necessidades do momento. E, quase sempre, pela emoção. E, por isso mesmo, ele é um tribunal menos justo porque as emoções e as necessidades do momento mudam a todo instante, enquanto os valores essenciais de uma sociedade permanecem os mesmos.

Vamos entender isso através de dois exemplos práticos:

Impeachment: O ex-presidente Fernando Collor sofreu um impeachment. O julgamento do impeachment não foi feito pelo STF. Ele foi julgado pelo Senado Federal, que naquele processo funcionou como um tribunal político. Tanto é assim que – querendo ou não (e aqui não vai nenhum julgamento de valor) – o ex-presidente foi absolvido de todas as acusações feitas contra ele no STF. O Senado julgou politicamente, ou seja, baseado no que eles percebiam como necessidade imediata.

Ficha limpa: Você provavelmente vai se lembrar que no julgamento da Lei da Ficha Limpa o STF decidiu que a lei não seria aplicada nas eleições de 2010. Isso porque, por um princípio constitucional, uma lei eleitoral modificada só passa a ser aplicada às eleições que ocorrerem 12 meses depois que ela passou a vigorar. Como a Lei havia entrado em vigência em meados de 2010, ela só poderia ser aplicada a partir de meados de 2011.

Pois bem, todo mundo sabia – inclusive os ministros do STF - que uma consequência daquela decisão seria que vários políticos com sentenças contra eles acabariam virando senadores e deputados. E foi o que ocorreu. Óbvio que quase ninguém ficou feliz com isso. Então por que o STF julgou daquela forma? Justamente porque ele é um tribunal constitucional. Ele precisava levar em conta os efeitos de sua decisão no longo prazo: se ele mudasse a interpretação da Constituição naquele momento apenas para resolver o caso de uma lei específica, ele teria que aplicar aquela interpretação no futuro para outras leis, inclusive para leis que viessem a desproteger a sociedade. É por isso que, embora impopular, ele tomou a decisão que protegesse as estruturas jurídicas de longo prazo do país. Em outras palavras, a Constituição.

Algumas pessoas acreditam que o STF é um tribunal político porque seus magistrados são nomeados pelo presidente da República. Mas há magistrados nomeados pelo presidente e pelos governadores em todos os tribunais brasileiros. Isso é uma prerrogativa desses cargos. Logo, todos os tribunais seriam políticos.


E, a bem da verdade, há mais pressão política para a indicação dos magistrados nesses outros tribunais (porque imprensa e população prestam menos atenção neles) do que no STF.

A segunda razão é que quando uma questão chega ao STF é porque ela já era provavelmente controversa antes de chegar lá.

Óbvio que o Judiciário só julga casos controversos (caso contrário, não precisaria julgar). Mas o STF julgar casos especialmente complicados (mesmo porque o STF tem a prerrogativa de dizer que não irá julgar recursos que não sejam importantes).

A maior parte das questões juridicamente controversas são controversas justamente porque ainda não está clara qual é a melhor forma de decidi-las.

Os ministros do STF, ainda que estudem e entendam muito de direito, são seres humanos. E há duas qualidades fundamentais dos seres humanos: nós nunca sabemos tudo, e cada um pensa de uma forma diferente. No STF, são 11 cabeças que não só não sabem tudo, mas que pensam de formas diferentes umas das outras, e precisam, em conjunto, decidir algo muito controverso. Obviamente muitas vezes eles não chegarão a um consenso e algumas vezes a decisão da maioria acabará sendo detestada por boa parcela da sociedade.

Como o STF é a instância máxima do Judiciário, ele está constantemente no holofote. Uma decisão que vá contra o gosto popular e que esteja no holofote da mídia obviamente vai gerar mais polêmica do que uma decisão parecida tomada por um juiz de primeira instância em uma comarca pequena no interior de algum estado.

Ademais, a decisão do juiz da pequena comarca raramente afetará mais do que um par de pessoas (réu e autor), enquanto muitas das decisões do STF – especialmente aquelas que chegam lá em forma de recurso, Adins e ADCs – vão afetar uma quantidade enorme de pessoas (ou mesmo o país inteiro) porque elas têm o que chamamos de repercussão geral: elas valem pra todo mundo.

Em suma, não é que necessariamente que o STF tome decisões polêmicas, mas que, por natureza, as questões que chegam a ele são polêmicas; ele precisa tomar decisões olhando não a opinião popular no momento, mas a proteção de princípios fundamentais da sociedade; e, em boa parte dos casos que ele julga, não há consenso sobre qual é a melhor forma de interpretar esses princípios e é por isso mesmo que a questão foi parar em suas mãos.

http://direito.folha.com.br/1/post/2012/02/por-que-o-stf-se-envolve-em-tanta-polmica.html