sábado, 13 de outubro de 2012

As hipóteses legais restritivas da adoção conjunta no Estatuto da Criança e do Adolescente e a proposta de uma interpretação teleologicamente orientada ao interesse superior da criança

No que concerne aos efeitos sobre os vínculos familiares, a doutrina aponta uma classificação dicotômica da adoção. De um lado, há a adoção singular, entendida como a realizada a pedido de apenas uma pessoa, homem ou mulher, e que vem sendo chancelada jurisprudencialmente, não obstante inexistir previsão textual no ECA. De outro, a adoção conjunta, que conta com previsão expressa nos parágrafos do art. 42 do Estatuto. Reproduzo-os:
§ 2o  Para adoção conjunta, é indispensável que os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família.
§ 4º  Os divorciados, os judicialmente separados e os ex-companheiros podem adotar conjuntamente, contanto que acordem sobre a guarda e o regime de visitas e desde que o estágio de convivência tenha sido iniciado na constância do período de convivência e que seja comprovada a existência de vínculos de afinidade e afetividade com aquele não detentor da guarda, que justifiquem a excepcionalidade da concessão.
Diante do texto de lei, a questão que se coloca é a de saber se essas hipóteses previstas no Estatuto foram fixadas em numerus clausus ou, ao revés, poder-se-ia admitir a sua ampliação para o fim de autorizar a adoção conjunta em situações não expressamente reguladas no texto legal.
Essa dúvida foi recentemente objeto de discussão no STJ. No caso submetido ao exame daquele Tribunal Superior, a União interpôs recurso especial com vistas a anular a adoção conjunta de uma criança feita por uma mulher com seu irmão. A peculiaridade do caso reside, todavia, na circunstância de o irmão da adotante ter falecido no decurso do procedimento judicial.
Aí se cuida de invocar o § 6º do art. 42 do Estatuto (com a redação dada pela Lei 12.010/09). Colaciono:
§ 6º  A adoção poderá ser deferida ao adotante que, após inequívoca manifestação de vontade, vier a falecer no curso do procedimento, antes de prolatada a sentença.
Nesse dispositivo, encontramos a autorização legal para a figura que a doutrina convencionou denominar de adoção póstuma, post mortem ou nuncupativa. Sua leitura permite inferir tratar-se de modalidade especial de adoção, havida em decorrência do falecimento de um dos adotantes no curso do procedimento. Como o óbito deu-se antes da prolação da sentença que decide acerca da formação do vínculo filial adotivo, o legislador cuidou de autorizar o deferimento da medida de colocação em família substituta, contanto que comprovada a manifestação de vontade inequivocamente direcionada a esse propósito pelo adotante falecido. É, por isso mesmo, a única hipótese que admite que a sentença - que reconhece ao adotado a filiação postulada - possa operar retroativamente, projetando (ex tunc) os efeitos da coisa julgada então formada para a data em que o adotante veio a falecer.  
No caso concreto, a União impugnou de ilegal a adoção póstuma deferida, em razão de que teria havido desrespeito à regra do § 2º do art. 42 do ECA, no sentido de que “Para adoção conjunta, é indispensável que os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família.” Ora, como os adotantes eram irmãos, desatendida estaria a norma aludida, porquanto não teriam satisfeitos os requisitos de casamento, tampouco de união estável. Sequer virtualmente seria possível pensar em casamento entre os adotantes, dado haver impedimento civil a obstar que irmãos contraiam o enlace matrimonial (CC, art. 1.521, IV).
Submetido o recurso especial a julgamento, a Terceira Turma do STJ entendeu que as hipóteses de adoção conjunta, previstas no artigo 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente, não são as únicas que atendem ao objetivo essencial da lei, que é a inserção do adotado em família estável. Seguindo o voto da relatora, Min. Nancy Andrighy, a Turma entendeu que o pedido de adoção, no caso concreto, confundir-se-ia com o reconhecimento de filiação socioafetiva preexistente. Sim, pois o adotante falecido já de há muito construíra vínculo de afeto com o adotado, aliás, desde que esse possuía 4 anos de idade. Com isso, o entendimento turmário inclinou-se no sentido de perquirir a inequívoca intenção de adotar pelo falecido. Uma vez caracterizada essa intenção, a Turma entendeu que as restrições legais do § 2º do art. 42 do ECA não se poderiam sobrepor ao melhor interesse do adotando – que, no caso sub examinen, dava-se exatamente com o reconhecimento judicial da adoção. Eis as palavras da relatora do caso em apreço:
A exigência legal restritiva, quando em manifesto descompasso com o fim perseguido pelo próprio texto de lei, é teleologicamente órfã, fato que ofende o senso comum e reclama atuação do intérprete para flexibilizá-la e adequá-la às transformações sociais que dão vulto ao anacronismo do texto de lei.   
O mais interessante é notar que, com essa decisão, o STJ superou a discussão em derredor da adoção conjunta, consistente na sua limitação legal às hipóteses expressamente consignadas nos parágrafos do art. 42 do ECA. Isso porque, se o julgador reconhecer em concreto que a inserção do adotando em família substituta atende o interesse superior da criança e do adolescente (doutrina da proteção integral), a exemplo da formação pretérita de núcleo familiar estável lastreado em relação comprovadamente sólida de afeto, seria de todo desarrazoado ater-se a um legalismo estrito, para impedir o deferimento da adoção. Semelhante entendimento, que pugna por uma exegese legalista empedernida, iria de encontro ao próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual determina, de maneira expressa, que na interpretação dessa lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento (art. 6º).  


A decisão da Terceira Turma do STJ constitui-se em precedente dos mais importantes quanto ao estudo do instituto da adoção no Direito da Criança e do Adolescente brasileiro. Nos seus termos, percebemos a tendência da Corte em superar exegeses estritamente legalistas, em homenagem à principiologia que encerra o Estatuto, voltada à realização dos direitos fundamentais de cunho infantojuvenis.
Mais do que isso, a decisão do STJ demonstra que o Estatuto da Criança e do Adolescente deve ser interpretado à luz da doutrina da proteção integral e prioritária. Impende, assim, analisar a aplicação das regras da Lei 8.069/90 teleologicamente orientadas a assegurar a eficácia dos direitos fundamentais conferidos às crianças e aos adolescentes. Diante desse orientação teleológica, descabe argumentar-se que requisitos legais estariam a ser violados, quando se puder observar que circunstâncias aparentemente não previstas em lei atendem ao interesse superior do infante.
A conclusão, portanto, é a de que o Estatuto da Criança e do Adolescente reclama uma interpretação aberta, assecuratória dos direitos fundamentais infantojuvenis em ordem a dar-lhes máxima expressão eficacial. Só uma interpretação teleológica dessa natureza tem o condão de concretizar as normas que integram a arquitetura internacional de direitos humanos protetiva da infância e da juventude, nos termos das quais é imperioso reconhecer também às crianças e aos adolescentes a condição de credores da dignidade da pessoa humana, isto é, de autênticos sujeitos de direito.

TEODORO, Rafael. Interpretação teleológica e superação das hipóteses legais restritivas da adoção conjunta no Estatuto da Criança e do Adolescente. Análise da decisão do STJ no precedente da adoção póstuma entre irmãos. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3390, 12 out. 2012 .

Princípio da proteção integral

Dentre os princípios orientadores do Direito da Criança e do Adolescente, o da proteção integral é merecedor de destaque. É com base nele que a doutrina sublinha, dentro da sistemática protetiva dos infantes, o aspecto consistente no reconhecimento de que são autênticos sujeitos de direito. Com isso, afasta-se a ideia de que crianças e adolescentes seriam meros objetos da proteção jurídico-legal.
A distinção entre sujeito e objeto é relevante para o Direito da Criança e do Adolescente. Por exemplo, foi com base na noção de criança-objeto que se deu a elaboração da Declaração dos Direitos da Criança de Genebra de 1924 – marco regulatório pioneiro do tema dentro da historiografia do Direito Internacional dos Direitos Humanos, uma vez que enunciou o dever de proteção integral da infância.
Com a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, a proteção da dignidade da pessoa humana tornou-se o centro nevrálgico da sociedade internacional, que paulatinamente passou a reconhecer à tutela dos direitos humanos o qualificativo de normas imperativas de direito internacional (ius cogens).
Logicamente, os direitos infantojuvenis também foram afetados pela nova conformação do Direito Internacional após a promulgação da Declaração de 1948. Primeiro porque a infância foi inserida no bojo da DUDH (“Artigo XXV, 2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.”). Segundo porque a generalidade dos termos em que fora redigida a DUDH impunha a consequência de que documentos internacionais posteriores viessem a complementá-la, delineando as garantias dos direitos enunciados, tanto mais eficientes quanto capazes de apreender as especificidades dos distintos grupos merecedores de proteção jurídica em nível mundial.
Foi esse o contexto que engendrou a promulgação de novo documento internacional relativo à proteção da infância: a Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela Assembleia das Nações Unidas em 20 de novembro de 1959. Essa nova declaração modifica o paradigma anterior, esposado pela Declaração de Genebra de 1924, ao enunciar um conjunto de princípios protetivos da infância orientados doutrinariamente pelo reconhecimento de que as crianças não mais eram meros objetos, mas verdadeiros credores (e, portanto, sujeitos) desses direitos. Exemplificativamente, eis o que determina o Princípio 1 da Declaração em comento:
Princípio 1
A criança gozará todos os direitos enunciados nesta Declaração. Todas as crianças, absolutamente sem qualquer exceção, serão credoras destes direitos, sem distinção ou discriminação por motivo de  raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição, quer sua ou de sua família.
Do ponto de vista da fixação de garantias que pudessem dotar de coercibilidade as normas assecuratórias dos direitos da infância, o tratado mais importante foi promulgado pela ONU apenas em 1989. Trata-se da Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada, no Brasil, por meio do decreto 99.710/90. Nesse tratado voltado à proteção dos direitos humanos infantojuvenis, houve a consolidação da tendência que atribui às crianças a condição de sujeitos de direito merecedores de proteção jurídica integral e prioritária por parte dos Estados integrantes da sociedade internacional. Vejamos um rápido exemplo: 
Artigo 6
1. Os Estados Partes reconhecem que toda criança tem o direito inerente à vida.
2. Os Estados Partes assegurarão ao máximo a sobrevivência e o desenvolvimento da criança.
Por meio da redação acima, a convenção deixa claro que toda criança tem direito à vida. Essa expressão “tem direito” permite ao exegeta compreender o seguinte: as crianças são credoras, perante os Estados, do seu direito à vida. Logo, todo ser humano com menos de dezoito anos de idade (conceito de criança extraído da leitura do art. 1º do tratado) é sujeitodo direito à vida.Esse breve introito do Direito Internacional dos Direitos Humanos serve para demonstrar o cenário histórico em que se encontra o cipoal normativo direcionado à proteção da infância e juventude no Brasil. Tanto a Constituição de 1988 quanto a legislação infraconstitucional – especialmente a Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) – hão de incorporar o reconhecimento aos infantes da condição de titulares (credores) de direitos. 


TEODORO, Rafael. Interpretação teleológica e superação das hipóteses legais restritivas da adoção conjunta no Estatuto da Criança e do Adolescente. Análise da decisão do STJ no precedente da adoção póstuma entre irmãos. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3390, 12 out. 2012 .

Amor dos pais: direito das crianças e adolescentes

1 Introdução

O presente ensaio problematiza decisão paradigmática do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que defere pretensão de indenização por danos morais pelo abandono afetivo dos pais, mas, assenta no voto vitorioso do relator a inexistência de direito subjetivo das crianças e adolescentes de serem amados por seus pais. Seu objetivo central é apresentar argumentos em prol da superação das posições doutrinárias e jurisprudenciais, que negam o direito de crianças e adolescentes serem amados por seus pais. O trabalho pautou-se no método indutivo, com revisão documental centrada na jurisprudência do STJ, legislação nacional e diplomas internacionais de direitos humanos.

2 Direito ao Amor: da Negação ao Necessário Reconhecimento

Em 24 de abril de 2012, apreciando o Recurso Especial n. 1159242/SP, a terceira turma do Superior Tribunal de Justiça proferiu decisão inédita no âmbito deste tribunal, com grande repercussão no seio jurídico. Reconhecia-se que os filhos abandonados afetivamente pelos pais podem sofrer danos morais e que este ato, ilícito, enseja o dever de indenizar. O tribunal não pode ordenar o retorno do tempo para que o dano não ocorresse, mas, buscou pela valorização in pecunia, compensar a lesão. A decisão, também, tem função pedagógica, ao dissuadir outros pais a não se furtarem dos deveres inerentes à paternidade.
Porém, ao lavrar seu voto, o exmo. Ministro que relatou a decisão adentrou em debate que se estende há anos na doutrina e jurisprudência, e é objeto deste estudo: crianças e adolescentes têm o direito de serem amados por seus pais?

Amor, que na mitologia grega, era representado por Eros, deus do amor e do desejo, está presente em estrofes de poetas, nos versos das canções e serenatas de apaixonados; é segredo divido em diários; representado pela união dos pontos de curvas convexas que formam o coração; foi tema para Platão; objeto para psicanálise; combustível para Che Guevara e tantos revolucionários; e mandamento pregado por Jesus, que ensinou aos futuros cristãos a amar a Deus e ao próximo.
Todos conhecem o amor, mesmo escapando da razão a possibilidade de sua perfeita explicação. Fernando Pessoa, em trecho cuja autoria lhe é atribuída, elucida: “amo como ama o amor. Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar. Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?”.
Mas, para doutrina e jurisprudência, o mais nobre dos sentimentos não pode ser exigido, pois não é um direito. Trata-se de um corpo estranho ao universo jurídico, pelo simples argumento de supostamente não estar previsto no ordenamento. Neste sentido, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro decidiu:
1. Indenização. 2. Dano Moral. 3. Objetivo indenizatório deduzido por filha contra o pai, visando à compensação pela ausência de amor e afeto. 4. Ninguém está obrigado a contemplar quem quer que seja com tais sentimentos. [...] “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. 7. Pretensão manifestadamente mercantilista, deduzida na esteira da chamada indústria do dano moral. (TJRJ, 4ª Câmara Cível, Rel. Des. Mário dos Santos Paulo, Julgado em 08 set. 2004. apud MACIEL, 2008, p. 104-105) (grifos nossos)
Em trabalho de Holanda e Barros, sobre a responsabilidade pelo descumprimento do dever de assistência imaterial, encontramos que “ninguém é obrigado a amar. Os pais não são obrigados a amar seus filhos [...]. O Ordenamento Jurídico em nenhum momento, ao regular os deveres dos pais, impõe o dever jurídico de amar” (2009, p. 10107). Para as autoras o debate sobre a responsabilização dos pais não deve passar pela ausência de amor ou de afeto, que não constituiriam obrigações jurídicas, mas pelo abandono imaterial, compreendido nos deveres de guarda, criação, educação e convivência familiar.
O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, negara, na apreciação do Recurso Especial n. 757.411/MG e do respectivo Embargo de Declaração, direito à indenização por danos oriundos de abandono afetivo. Interessante notar, que o Ministro relator do referido Recurso, com o zelo de não afastar a remota possibilidade de tardio amor paterno, vota pelo indeferimento da pretensão reparatória. Em suas palavras: “um litígio entre as partes reduziria drasticamente a esperança do filho de se ver acolhido, ainda que tardiamente, pelo amor paterno” (Relatório e Voto, p. 09).
O amor, portanto, não foi compreendido como direito, mas se apresentou como bem a ser estranhamente tutelado. A criança não recebeu amparo no braço de seu genitor, nem tão pouco do STJ, mas, na perspectiva do Ministro, ao negar acolhida pelo Judiciário estar-se-ia protegendo este bem.
Em pesquisa de jurisprudência deste Superior Tribunal, encontramos sessenta e seis acórdãos que se referem ao amor: um trata do amor em decisão sobre protesto de título de crédito; um em ação indenizatória por danos morais pelo fim de relacionamento concubino; seis afirmam existir amor em casos de adoção ou guarda; e, o restante negava amor à formalidade processual, mas exigia a forma prevista em lei. Talvez, o mais significativo deles seja o Recurso Especial n. 889852/RS, que, apreciando pedido de adoção por casal homoafetivo, encontra no amor fundamento para deferir a pretensão.
DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. ADOÇÃO DE MENORES POR CASAL HOMOSSEXUAL. SITUAÇÃO JÁ CONSOLIDADA. ESTABILIDADE DA FAMÍLIA. PRESENÇA DE FORTES VÍNCULOS AFETIVOS ENTRE OS MENORES E A REQUERENTE. IMPRESCINDIBILIDADE DA PREVALÊNCIA DOS INTERESSES DOS MENORES. RELATÓRIO DA ASSISTENTE SOCIAL FAVORÁVEL AO PEDIDO. REAIS VANTAGENS PARA OS ADOTANDOS. ARTIGOS 1º DA LEI 12.010/09 E 43 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. DEFERIMENTO DA MEDIDA. [...]
9. Se os estudos científicos não sinalizam qualquer prejuízo de qualquer natureza para as crianças, se elas vêm sendo criadas com amor e se cabe ao Estado, ao mesmo tempo, assegurar seus direitos, o deferimento da adoção é medida que se impõe. [...]
13. A adoção, antes de mais nada, representa um ato de amor, desprendimento. [...]
Retornando ao caso que iniciou este artigo, a douta Ministra relatora, em seu voto, buscou afastar da apreciação do Poder Judiciário matéria de natureza intangível e imensurável, o amor. Prendeu-se àquilo que supostamente poderia ser apreciado pelo discurso racional, medido e quantificado, o dever de cuidado.
[...] o cuidado é fundamental para a formação do menor e do adolescente; ganha o debate contornos mais técnicos, pois não se discute mais a mensuração do intangível – o amor – mas, sim, a verificação do cumprimento, descumprimento, ou parcial cumprimento, de uma obrigação legal: cuidar. [...] (Relatório e Voto, p. 08) (grifos do original)
A possibilidade do amor figurar como objeto de uma relação jurídica é vergastada ao afirmar categoricamente que se trata de matéria meta-jurídica, própria de outros campos do saber.
Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos.
O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais, situando-se, pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no universo meta-jurídico da filosofia, da psicologia ou da religião. [...]
Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever. [...] (Relatório e Voto, p. 09) (grifos do original)
Data máxima vênia, ousamos discordar dos posicionamentos supramencionados. O Judiciário não pode se furtar de apreciar matérias situadas no campo do “intangível” ou do que não é passível de “mensuração”, para permanecer no confortável campo do que é “mais técnico” [1], sob pena de, no mínimo, violar o direito fundamental de inafastabilidade do Poder Judiciário.
Ainda que o amor não possa ser medido e quantificado, o dano causado à criança ou adolescente pela sua ausência é passível de mensuração e não seria estranho à rotina do Judiciário, que diuturnamente aprecia pedidos de reparação por danos morais à imagem, honra, nome e demais direitos da personalidade.
Outrossim, a suposta ausência de normatização não pode ser argumento suficiente para negar o “amor” como direito subjetivo titularizado por crianças e adolescentes. A lei não é a única fonte do direito, isto já está claro desde a Lei de Introdução ao Código Civil[2], e inúmeros trabalhos têm abordado a pluralidade de direitos que coexistem na sociedade, ou da força das necessidades como produtora de novos direitos (WOLKMER, 2004). Não há dúvidas que o amor é uma necessidade de todos, principalmente para o infante.
Resta, em remate, afastar a impropriedade de que o amor não é um direito, por, supostamente, não estar previsto no ordenamento jurídico como “lei”, pois ele já se encontra devidamente positivado.
A lei n. 12.318/10, que dispõe sobre a alienação parental, conceitua-a como interferência na formação psicológica de crianças e adolescentes que causa prejuízo à manutenção de vínculos com o genitor[3]. “Vínculos”, no plural, pode envolver as relações de paternidade e relativas ao poder familiar, mas, nos parece que especialmente se refere aos vínculos amorosos e afetivos estabelecidos entre pais e filhos. No mesmo sentido, Maria Berenice Dias (201?, p. 02) descreve a consequência da alienação parental como a ruína do vínculo amoroso: “a criança, que ama o seu genitor, é levada a afastar-se dele, que também a ama. Isso gera contradição de sentimentos e destruição do vínculo entre ambos”. Não restam dúvidas, portanto, que o amor no seio das relações familiares foi definitivamente reconhecido como bem jurídico a ser devida e legitimamente tutelado.
Mas, muito antes disso, a Declaração Universal dos Direitos da Criança, adotada pela Assembléia da Organização das Nações Unidas (ONU) em 20 de novembro de 1959 já era clara a este respeito, ao declarar – e não instituir – entre os seus princípios, que toda criança tem direito de ser amada pela família e sociedade.
Também, a Convenção Sobre Direitos da Criança adotada pela Assembléia Geral da ONU em 20 de novembro de 1989, aprovada pelo Decreto Legislativo n. 28, de 14 de setembro de 1990 e promulgada pelo decreto presidencial n. 99.710, de 21 de novembro de 1990, reconhece que a criança “deve crescer em um ambiente familiar, em clima de felicidade, amor e compreensão”.
Como outros direitos expressos em tratados internacionais de direitos humanos são material e formalmente fundamentais, mormente interpretação conduzida pela doutrina especializada acerca da cláusula aberta de direitos fundamentais prevista no art. 5º, §2º da Constituição Federal (PIOVESAN, 2008). Em que pese não ser este o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, não restam mais dúvidas que os tratados internacionais de direitos humanos ingressam na ordem jurídica interna com posição hierárquica destacada, alojando-se acima das legislações ordinárias e complementares, quando não aprovados pelo procedimento previsto no art. 5º, §3º, hipótese que equivalerão às emendas constitucionais.

3 Conclusão

O amor, tema que esteve presente na sociedade deste o sistema mítico de explicação da realidade e se mantém insuperável na atualidade, tem sido fustigado pela doutrina jurídica e jurisprudência, que lhe afasta da condição de direito subjetivo. Crianças e adolescentes, carentes do amor paternal, encontram barreira no judiciário sempre que buscavam reparação em face do pai ou mãe, sobre fundamento de que, se não é um direito expressamente reconhecido pelo ordenamento jurídico, não haveria um correlato dever jurídico a se atribuir aos pais. Consequentemente, não se configura ato ilícito passível de reparação. Da análise da doutrina e dos votos de Ministros do STJ encontramos, ainda, posicionamentos acerca da intangibilidade do amor, que o tornaria imensurável e, portanto, impossível de ser apreciado pela técnica jurídica.
Em sentido contrário, pudemos demonstrar que intangibilidade, bens imensuráveis e incertezas técnicas não são questões estranhas ao ordenamento jurídico brasileiro, assim como os “direitos” não são apenas aqueles previstos em lei, mas que existem diversos direitos sendo afirmados pela sociedade, em especial, aqueles oriundos da necessidade humana; também, apresentamos a previsão do amor como um bem jurídico e direito humano de crianças e adolescentes na legislação pátria e em tratados internacionais de direitos humanos, que integram a ordem jurídica brasileira.
Diante disto, sem negar os avanços oriundos do Recurso Especial n. 1159242/SP, que reconheceu a ilicitude da conduta de pai ausente que abandonou afetivamente filho, provocando-lhe dano moral, cremos ser hora da doutrina e jurisprudência alterarem posição acerca do direito subjetivo de crianças e adolescente serem amados por seus pais.
Esta conclusão pode ser alcançada pela técnica – com o estudo do sistema internacional de direitos humanos, da interpretação da legislação pátria e da compreensão do direito como um fenômeno que se cria e reproduz constantemente pela sociedade – ou, simplesmente, pelos caminhos do coração.

HEIM, Bruno Barbosa. Amor dos pais: direito das crianças e adolescentes. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3390, 12 out. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22789>.