quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A cultura da mamadeira e o controle exercido sobre os consumidores


Lendo o último e excelente livro de Michael Moore, "Adoro Problemas"1, dentre tantos casos narrados para nosso aprendizado e deleite, deparei-me com uma história que me intrigou (Veja bem: por mais que pensemos na questão da sociedade capitalista e saibamos das múltiplas enganações perpetradas pelos fornecedores, há sempre algo a aprender). Eis o fato trazido, com muito humor, pelo autor: Disse ele que, quando nasceu, na década de 1950, estando na maternidade, descobriu que ao invés dos seios de sua mãe, impingiram-lhe e também a seus colegas bebês mamilos falsos de borracha:.
"Na década de 1950, os hospitais se consideravam como a vanguarda da sociedade moderna do pós-guerra. E convenciam as mulheres hospitalizadas de que ser 'moderna' significava não dar de mamar ao seu bebê, que amamentar era antiquado e inútil. As mulheres modernas usavam mamadeira!"2.
"Convenceram nossas mães de que se um alimento vinha numa garrafa – ou numa lata, caixa ou saco de celofane -, então ele era de alguma forma melhor para você do que quando vinha grátis via mãe natureza"3.
Depois, espantado, o cineasta americano pergunta:
"Era, de fato, assim tão fácil enganar nossos pais? Se eles podiam ser enganados de modo tão fácil a esse respeito, o que mais eles podiam ser convencidos a testar? Creme de milho em lata? Grama artificial?"4.
E, de fato, como é possível que isso tenha ocorrido? Ao que consta, é sabido por todos, com muita tranquilidade, da importância do aleitamento materno, mas pude constatar que, realmente, naquele período dos anos cinquenta, era "moda" usar mamadeira, desprezando-se o leite que a mãe podia oferecer. Pensei, então, que a análise do caso narrado por Michael Moore poderia permitir a elucidação do modus operandi de alguns setores do mercado capitalista no processo de enganação, controle e alienação dos consumidores, a partir da análise das técnicas implementadas pela indústria de leite como substituto do leite natural. Meu caro leitor veja o que encontrei.
Maria Lúcia Magalhães Bosi e Márcia Tavares Machado, no artigo intitulado "Amamentação: um resgate histórico"5, apresentam um panorama que permite uma análise.
Inicialmente, transcrevo o que se sabe, realçado pelas pesquisadoras:
"O leite materno é o alimento adequado para as crianças nos primeiros meses de vida, tanto do ponto de vista nutritivo e imunológico quanto no plano psicológico, além de favorecer o vínculo mãe-filho quando o ato de amamentar é bem vivenciado pelas mães"6.
No início do Século XX, já estavam em pleno desenvolvimento as pesquisas e a produção de alimentos que pudessem substituir o leite materno durante o período de desmame. Várias alternativas de leite de vaca, com adição de açúcar, água, cremes, etc., que permitiam uma melhor digestão, foram oferecidas.
"Os médicos passam a aderir às novas alternativas, prescrevendo-as como benéficas para a alimentação infantil. Essas práticas associam-se a um forte marketing focalizado nos pediatras, que passariam a desempenhar um papel decisivo como influenciadores de um novo movimento na sociedade: a 'cultura da mamadeira'"7.
As autoras relatam que as indústrias de alimentos realizavam campanhas publicitárias em jornais médicos e paramédicos, visando – e conseguindo – influenciar os médicos que prescreviam as fórmulas para as mães.
Assim, aos poucos e incessantemente, os produtos foram se tornando confiáveis:
"No final dos anos 40, iniciando os anos 50, os produtos são apresentados como uma opção para facilitar a tarefa dos médicos que passam a prescrevê-los indiscriminadamente às mães, como a forma mais prática e viável para seus filhos"8.
Nos anos seguintes, o leite em pó passou a ser recomendado e utilizado tão logo o bebê nascia.
Como apontam as autoras, as estratégias para criar essa cultura da mamadeira envolviam o fornecimento de produtos lácteos aos profissionais de saúde (médicos e nutricionistas), o patrocínio de reuniões científicas, cursos de atualização e congressos, a contribuição para manutenção de revistas científicas, nas quais eram publicados anúncios constantemente, etc.
É de se prestar bastante atenção no esquema, que não só vingou como é utilizado abertamente pelas grandes corporações até os dias atuais. Alguns produtos para serem aceitos pelos consumidores passam por um largo processo de "convencimento". Talvez num primeiro momento os consumidores não se interessem, como se deu no caso narrado. "Leite em pó, com água e outros componentes numa mamadeira?", devem ter dito as mães num primeiro momento. "Não quero, prefiro que meu filho tome o que eu tenho para dar e que já está pronto". Talvez. Daí é que, então, a indústria desenvolveu seu plano estratégico.
Era preciso dar autenticidade ao produto; havia que se mostrar suas qualidades. Quem melhor que os cientistas para fazê-lo? Ou, na hipótese, os médicos e nutricionistas. Como os pais poderiam deles duvidar? Para convencer esses cientistas, que tal patrocinar reuniões, cursos, congressos? Subsidiam-se esses eventos, pagando-se muito bem para que os palestrastes convençam o público presente da qualidade dos produtos. Esse público que, claro, já está grato por estar participando do evento de forma gratuita e que envolve passeios, jantares, etc.
Para edulcorar o novo conhecimento que está surgindo, que tal manter revistas científicas, pagando caros anúncios em suas páginas? E, ao mesmo tempo, fazer publicidade em muitos outros veículos?
Com esse assédio vindo de todos os lados, reforçados por frases que têm um forte apelo de verdade porque saem da boca de técnicos, cientistas, médicos e nutricionistas, ladeadas por belos anúncios publicitários que apresentam as vantagens do aleitamento artificial e com o apoio da sempre necessidade do consumidor de não estar "por fora", de andar "na moda", de estar "na onda", acaba dando certo. E esse caso é, de fato, exemplar porque mostra o poder de convencimento dos fornecedores. Se eles conseguiram convencer pais e mães que leite em pó, cheio de produtos artificias, servidos numa garrafa plástica ou de vidro era melhor que o peito da mãe, que tinha pronta-entrega do leite ideal produzido por ela mesma, podem mesmo convencer as pessoas a consumirem quase tudo. É um poder incrível.
Claro que não foi tarefa fácil convencer pais e mães de que era possível abandonar a mãe-natureza no que ela tinha de próprio para os bebês e preferir o alimento artificial. Mas, funcionou, especialmente porque a tática conseguiu atrelar um produto industrial à ciência, criando uma imagem positiva e dando credibilidade às prescrições e ofertas.
Eis aí, pois, mais um exemplo que tem de tudo quanto os fornecedores aprenderam e usam no esquema de oferta e venda de seus produtos e serviços. Vê-se que não se trata apenas de publicidade, mas de um largo projeto de marketing que envolve a ciência e seus profissionais, as escolas, os meios de comunicação em geral, os depoimentos de autoridades e pessoas com prestígio social – os confessionais – etc., num longo e árduo trabalho de convencimento que, quando funciona atordoa o consumidor final, de modo que ele acaba não percebendo que foi enganado.
Para concluir, anoto que, no Brasil, a partir dos anos oitenta do século XX, ressurgiu a lógica e o caráter verdadeiramente científico do discurso que mostra as vantagens do aleitamento materno.
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1São Paulo: Lua de Papel, 2011.
2Ibidem, p. 40.
3Idem, p. 41.
4Idem, mesma pág.
5Cadernos ESP – Escola de Direito Público do Ceará, V. 1, nº 1, Julho-Dezembro – 2005.
6Ibidem, fl. 1.
7Ibidem, fl. 5.
8Ibidem, fl. 6.
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* Rizzatto Nunes Desembargador aposentado do TJ/SP, escritor e professor de Direito do Consumidor. 

Fonte: http://www.migalhas.com.br/ABCdoCDC/92,MI168073,21048-A+cultura+da+mamadeira+e+o+controle+exercido+sobre+os+consumidores

"Lei Carolina Dieckmann" seria a salvação da internet?

Não se passaram nem 24 horas desde a aprovação, pelo Senado Federal, do projeto de lei 35/2012 (já popularmente batizada de “Lei Carolina Dieckmann”) e no melhor estilo da internet — onde as informações se propagam com uma rapidez viral —, os principais meios de comunicação foram tomados por essa notícia e, o que é pior, tratando-a como se fosse a salvação de todos os problemas da internet. E não é!
De fato, muitas condutas atentatórias contra diversos bens jurídicos não possuem tipificação penal em nosso ordenamento e, por isso, não são passíveis de punição. Daí, de pronto, é bom deixar claro que não somos contra a elaboração de legislação específica visando a esse fim. O que colocamos em xeque é a produção de lei motivada pela casuística — aqui, o caso da atriz Carolina Dieckmann — e que, por assim ser, peca e muito na qualidade técnica de sua redação.
Como exemplo, vale mencionar o verbo nuclear da proposta ao artigo 154-A, qual seja: “invadir. Segundo o dicionário Aurélio, o verbo “invadir” significa “entrar à força, apoderar-se violentamente”. Assim, a subsistir a redação do novel artigo 154-A, somente se poderia cogitar da ocorrência de crime se, e somente se, o agente acessasse o dispositivo de informática à força, violentamente, em especial porque, em matéria de Direito Penal, a interpretação deve sempre ser restritiva.
Ocorre que a prática desses atos atentatórios que o artigo 154-A visa a coibir, por excelência, nunca — ou quase nunca — ocorre unilateralmente, isto é, com o agente mal-intencionado tendo agido sozinho para acessar o sistema operacional. É que existem somente dois meios de acessar o banco de dados de um computador de modo indevido: 1) acessando fisicamente o próprio computador — o que é óbvio não se enquadra do tipo penal sob exame; ou 2) quando o usuário permite inadvertidamente que sejam instalados em seu computador os chamados malwares, que estão sorrateiramente ocultos em arquivos enviados por e-mails, em determinados links de internet ou em dispositivos móveis como pendrives.
Ou seja, em nenhum de acesso remoto se pode dizer que o agente mal-intencionado agiu de modo violento para obter os dados do usuário. O que houve foi o emprego de ardil. Para resumir o que se sucede nesses casos, acaba sendo o próprio usuário a permitir que seus dados sejam acessados.
Desta maneira, embora cotidianamente se noticiem invasões de determinado servidor e ou empresa por hackers que invadiram seus sistemas e acessaram informações indevidamente, o que se deve ter em mente é que isso só foi possível porque o próprio usuário assim o permitiu, ainda que por desconhecimento sobre o funcionamento do sistema computacional e por isso mesmo foi vítima de um ardil.
Essa figura do hacker que invade computadores à distância, “quebrando” mecanismos de criptografia etc., somente existe nos filmes de Hollywood. No mundo real, o que existe são, como já dito, pessoas mal-intencionadas que, valendo-se de ignorância alheia, conseguem que o usuário lhe propicie o acesso ao seu computador sem que o saiba. Ou seja, não existe acesso violento, com emprego de força.
Situação diversa são os chamados ataques DDoS (Denial of Service) praticados por hackers e que, embora os leigos definam como invasão, na realidade não são. Em resumo, não se trata de uma invasão do sistema, mas sim da sua invalidação por sobrecarga. Diversos computadores são malicionsamente acionados para acessar determinado site ou servidor, de modo a que a sobrecarga de tentativas de acesso obstrua o seu funcionamento.
Portanto, assim como na conduta descrita anteriormente, essa não se amolda à figura típica do pretenso artigo 154-A. Na realidade, segundo o referido projeto de lei, os ataques DDoS estariam tipificados no artigo 266, ao nosso entender, corretamente redigido.
Mas nem tudo estaria perdido se o verbo “invadir” fosse substituído por “acessar”. E se a conduta de disseminar os chamados malwares fosse tipificada, o impasse aqui descrito estaria resolvido.
Sem embargo, outro ponto que chama atenção e, repita-se, é típico de legislação de última hora, é o fato de o novel texto legislativo somente contemplar as figuras típicas, deixando de disciplinar os meios processuais que garantam a eficácia da norma.
Em razão dessa má qualidade técnica, a plena eficácia da lei fica mitigada e, como já diziam os adeptos do realismo jurídico, de nada presta uma lei que não seja eficaz, que não possa ser efetivamente aplicada pelos homens. É que, enquanto não se definirem certos limites e parâmetros, atualmente em discussão no texto do denominado “Marco Civil da Internet”, a comprovação das supostas práticas delitivas que se pretende criar com o PL 35/12 resta deveras inviabilizada.
Para assim se concluir, basta verificar que atualmente não existe qualquer obrigação por parte dos servidores e os provedores de aplicações de internet de manterem os registros (logs) de conexão.
Assim, embora uma vítima de acesso indevido tenha ciência disso por meio de dispositivo de informática, muito provavelmente, diante da não obrigatoriedade do registro de acessos a determinado computador, não será possível identificar o agente criminoso.
Para concluir, a verdade é que o tema Direito Eletrônico e suas subáreas, como o Direito Penal Eletrônico, não pode ser analisado pela casuística. Deve, sim, ser alvo de profunda e ampla análise.
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* Luiz Augusto Sartori de Castro é advogado do escritório Vilardi & Advogados Associados, pós-graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra, Portugal. Pós-graduando em Direito Eletrônico, professor assistente de Direito Penal na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Fonte: http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI167980,81042-Lei+Carolina+Dieckmann+seria+a+salvacao+da+internet?