A cláusula de inalienabilidade é uma prerrogativa legal conferida com o
escopo de impedir que os herdeiros alienem o bem herdado. Esta cláusula
era inicialmente permitida pelo artigo 1.676 do Código Civil de 1916
que dispunha:
Esta limitação poderia ser estendida à legítima dos herdeiros necessários nos termos do artigo 1.723 do antigo diploma legal:
Destarte as boas intenções motivadoras da imposição da inalienabilidade
aos bens da herança, nada obstava que o testador, respaldado pelo
sistema do código civil de 1916, fizesse uso da limitação para
dificultar a utilização da herança por vingança ou retaliação, vez que
não tinha o direito de privar os herdeiros necessários da legítima, mas
poderia obstar a livre utilização e fruição econômica dos mesmos.
Diante do inconformismo dos herdeiros, que por vezes tinham os bens
herdados reduzidos à inutilidade, bem como do repúdio doutrinário acerca
do absolutismo que revestia a cláusula de inalienabilidade, os
elaboradores do Código Civil de 2002 não tiveram alternativa senão
modificar a norma jurídica para abrandá-la.
Sendo assim, o novo diploma legal, em seus artigos 1.848 e 1.911,
restringiu a utilização das cláusulas restritivas de direito aos bens
componentes da legítima apenas para quando o testador motivasse de forma
justa tal imposição.
Ademais, previu o legislador a possibilidade de excetuar-se a cláusula
imposta por conveniência econômica do herdeiro mediante autorização
judicial, hipótese em que o produto da venda seria convertido em outros
bens, perfazendo uma sub-rogação da cláusula impeditiva, nos termos do
artigo 1.848, § 2º do Código Civil.
Ocorre que, a sub-rogação da cláusula por si só não livra o herdeiro do
principal empecilho que o levou inicialmente a necessitar do
afastamento desta limitação ao bem originalmente gravado.
Por esta razão, têm os tribunais pátrios concedido a quebra da
inalienabilidade em prol dos herdeiros que de fato necessitem da livre
disposição do bem herdado para sua subsistência ou para se livrar de um
impedimento que não mais atende os motivos pelos quais foi criado.
Vejamos.
Possibilidade de Quebra das Cláusulas Restritivas
As cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e
incomunicabilidade quando impostas aos bens da legítima são consideradas
pela maioria da doutrina como um dissenso jurídico, pois permitem que
se extraia de um herdeiro necessário a possibilidade dele dispor de um
bem que lhe pertence por expressa determinação legal fundada no direito
sucessório.
Defendem estes juristas que mais importante do que a vontade do
testador, são os princípios constitucionais que regem a função social da
propriedade, a livre circulação dos bens na economia e o estado
democrático de direito, dos quais se depreende que de fato não é
possível obstar a livre circulação dos bens por se opor a lei
fundamental da economia política
[1].
O direito de propriedade, contido no artigo 5º, XXII, da Constituição
Federal de 1988, é um dos princípios regentes da atividade econômica
nacional, tendo por escopo assegurar a existência digna e a justiça
social, nos termos do artigo 170 e incisos II e III, do texto Magno.
O Código Civil, em seu artigo 1.228, confere ao proprietário a
faculdade de usar, gozar e dispor do bem; e o § 1º deste mesmo artigo
impõe que o direito de propriedade seja exercido em consonância com suas
finalidades econômicas e sociais.
Assim, temos que ao retirar o bem de mercado, deve se ter noção das
consequências que este ato traz aos proprietários e aos terceiros de
algum modo vinculados ao bem, razão pela qual o testador deverá
fundamentar de maneira plausível a inclusão das cláusulas restritivas de
direito aos bens que serão herdados.
Eventual desarmonia entre aqueles que deveriam zelar por um bem gravado
com tamanha limitação gera uma reação que afeta imediatamente o direito
de propriedade, mas também de forma mediata a política econômica do
local em que o bem está situado.
Isso porque, bastante comuns são os casos em que os herdeiros
desestimulados pela impossibilidade de fruição do bem, o abandonam e
provocam uma séria de conseqüências negativas ao bem herdado, como
dívidas condominiais, fiscais e, principalmente, a perda da função
social que o reveste.
Ensina-nos o professor Silvio Venosa que:
[...] há inconveniência na inalienabilidade de um bem privado porque
impede a circulação de bens e obstrui, em síntese, a própria economia da
sociedade; é um elemento de insegurança nas relações jurídicas, tantas
são as questões que se levantam. [2]
Outro não é o entendimento de Orlando Gomes:
se a instituição da restrição, por si, não é uma aberração jurídica,
porque pode até ser útil sob determinadas circunstâncias, clausular de
inalienabilidade a legítima contraria a própria essência dessa reserva
legal aos herdeiros necessários. Se existe um patrimônio reservado a
certos herdeiros, os bens nele contidos devem ser transmitidos sob as
mesmas condições que estavam em vida do disponente. O testador teria
outros meios de preservar o patrimônio de seus herdeiros, sem ter que
recorrer a medida tão violenta, polêmica e antipática.[3]
A bem da verdade, o impedimento guerreado não se mostra crível para
sustentar a proteção que defende. Em sendo a cláusula estendida a apenas
uma geração, os herdeiros seguintes poderão dispor livremente do bem
como melhor lhes convierem, ainda que de forma negativa, anulando
completamente o direito de propriedade daqueles que inicialmente o
herdaram.
Em outras palavras, ao herdeiro não se estenderão os direitos de
propriedade em sua plenitude, mas nenhum zelo ou disposição
testamentária anterior poderá se sobrepor à vontade da segunda geração
que inevitavelmente herdará aquele bem, salvo se aquele que inicialmente
o herdou, dispor em testamento de modo justificado a gravação das
cláusulas restritivas.
Agrava-se ainda mais a situação dos herdeiros, quando a disposição
testamentária abrange também os frutos e rendimentos, o que é legalmente
permitido, pois conforme nos ensina Sílvio de Salvo Venosa
[4]
“se o testador restringe também os rendimentos do bem, faz desaparecer
todo o sentido da proteção à legítima. Pode transformar o herdeiro em um
Midas, morrendo de fome, mas cercado de ouro”.
Em contrapartida, com os imóveis liberados das cláusulas, os herdeiros
poderiam dar uma melhor destinação aos bens herdados, colocá-los a
locação e até aliená-los para, com o dinheiro recebido, adquirirem
outros bens dentro de suas possibilidades.
Em análise de casos deste jaez, o entendimento jurisprudencial aduz que
uma vez comprovados os prejuízos suportados pelos herdeiros com a
manutenção da cláusula e a necessidade de afastá-la em prol da defesa de
seus direitos, há para o julgador a possibilidade de abrandar a lei e
garantir o direito de propriedade dos herdeiros com a quebra das
cláusulas restritivas.
Nesse sentido:
DIREITO CIVIL. ART. 1.676 DO CÓDIGO CIVIL. CLÁUSULA DE
INALIENABILIDADE. PROMESSA DE COMPRA E VENDA. VALIDADE, PELAS
PECULIARIDADES DA ESPÉCIE. A regra restritiva à propriedade encartada no
art. 1.676 do Código Civil deve ser interpretada com temperamento, pois
a sua finalidade foi a de preservar o patrimônio a que se dirige, para
assegurar à entidade familiar, sobretudo aos pósteros, uma base
econômica e financeira segura e duradoura. Todavia, não pode ser
tão austeramente aplicada a ponto de se prestar a ser fator de
lesividade de legítimos interesses, sobretudo quando o seu abrandamento
decorre de real conveniência ou manifesta vantagem para quem ela visa
proteger associado ao intuito de resguardar outros princípios que o
sistema da legislação civil encerra, como se dá no caso em exame, pelas
peculiaridades que lhe cercam. Recurso especial não conhecido.
(RE sp 10.020/ SP , Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA , Quarta Turma , DJ
de 14.10.1996) (grifo nosso).
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ANULATÓRIA DE CLÁUSULAS TESTAMENTÁRIAS QUE
ESTIPULAM INALIENABILIDADE, IMPENHORABILIDADE E INCOMUNICABILIDADE DOS
BENS QUE VIESSEM A SER HERDADOS. 1. PRELIMINAR DE NÃO-CONHECIMENTO DO
RECURSO REJEITADA. Deserção não operada no caso em análise, haja vista
haver pedido por parte dos réus apelantes de concessão da benesse da
AJG, ainda quando oferecida a contestação, possibilitando o exame da
questão pelo tribunal, nos termos do que dispõe o art. 516 do Código de
Processo Civil. Havendo demonstração dos rendimentos percebidos pelo réu
que autorizam a concessão da gratuidade judiciária, é de se rejeitar a
prefacial. 2. MÉRITO. REVOGAÇÃO DOS GRAVAMES IMPOSTOS NOS TESTAMENTOS DEIXADOS PELOS PAIS DO AUTOR E DA RÉ. CABIMENTO, NO CASO CONCRETO.
MATÉRIA QUE DEVE SER EXAMINADA À LUZ DA DISPOSIÇÃO LEGAL CONTIDA NO
CÓDIGO CIVIL DE 1.916, QUANDO ELABORADOS OS TESTAMENTOS, AINDA QUE A
MORTE DA CÔNJUGE TESTADORA TENHA OCORRIDO NA VIGÊNCIA NA NOVA LEI CIVIL.
PECULIARIDADE DO CASO QUE AFASTA A APLICAÇÃO DO DISPOSTO NO ART. 2.042
DO CCB. Ainda que os testamentos tenham imposto gravame
vitalício das cláusulas em questão, mostra-se cabível a revogação das
aludidas disposições, porquanto não cumprem com a sua finalidade
essencial, que é a de proteção do beneficiário. Na hipótese dos
autos, a herança se restringe a um único bem imóvel, no qual residem a
herdeira ré e seu esposo, também requerido, os quais se beneficiam
exclusivamente do bem, em manifesto prejuízo ao autor, que está sendo
impedido de gozar das próprias prerrogativas inerentes à cláusula de
inalienabilidade, consistentes no direito de usar, gozar e reivindicar a
coisa. Impõe-se, nesse contexto, a manutenção da sentença que
julgou procedente a demanda, determinando o cancelamento das aludidas
cláusulas. Preliminar rejeitada e recurso desprovido. (Apelação
Cível Nº 70024876682, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Ricardo Raupp Ruschel, Julgado em 30/07/2008). (grifo nosso).
CIVIL. BEM. CLÁUSULA DE INALIENABILDIADE. PENHORA. IMPOSSIBILDADE.1 -
Nos termos do art. 1.676 do Código Civil de 1916 a cláusula de
inalienabilidade, afora as exceções legais (desapropriação e débitos de
imposto do próprio imóvel), não pode ser afastada, enquanto vivo estiver
o donatário, o que impossibilita possa recair penhora sobre o
bem.1.676Código Civil de 19162 - A jurisprudência tem admitido a
quebra da inalienabilidade, em outras hipóteses excepcionais, mas
apenas em prol dos próprios beneficiários da cláusula.3 -
Recurso especial não conhecido. (571108 RS 2003/0133762-6, Relator:
Ministro FERNANDO GONÇALVES, Data de Julgamento: 28/10/2008, T4 - QUARTA
TURMA, Data de Publicação: DJe 17/11/2008). (grifo nosso).
Não se diga acerca da impossibilidade de flexibilização da
interpretação jurídica por parte do Magistrado, pois se trata de
condição inerente ao julgador que deve interpretar a lei em prol dos
direitos fundamentais que se evidenciam nos mais diversos casos que lhe
são apresentados.
Outrossim, a defesa dos fins sociais a que a lei se destina é uma
prerrogativa judicial estabelecida pelo artigo 5º da Lei de Introdução
das Normas do Direito Brasileiro e pela parte final do artigo 1.109 do
Código de Processo Civil.
Há ainda, hipóteses em que parte da herança gravada com as cláusulas se
transmite à segunda linha sucessória, de modo que parte dos imóveis
fica livre das cláusulas e permite a alienação da porcentagem que perdeu
a restrição.
Isso significa que, em havendo a venda parcial do imóvel, os herdeiros
que sofrem o impedimento terão de dividi-lo em condomínio com pessoa
totalmente estranha à família, o que pode implicar inclusive em
submissão dos herdeiros às vontades e anseios de um terceiro, caso o
percentual livre da restrição supere 50% do bem.
Deste modo, considerando todos os fatores supramencionados: falta de
capacidade econômica para manutenção da herança, desinteresse em
sustentá-la, o condomínio compulsoriamente criado pelo bem no caso de
mais de um herdeiro, as avenças passíveis de surgirem e segregarem a
família, bem como a possibilidade dos herdeiros que vierem a receber
parte do bem o alienarem a terceiro, evidencia que muitas das vezes pode
estar havendo um desvirtuamento do motivo que originou a gravação das
cláusulas nos imóveis herdados, o que implica a necessidade dos
herdeiros perquirirem a tutela jurisdicional para ter estas cláusulas
afastadas dos bens herdados.
Procedimento de Quebra das Cláusulas
Trata-se de processo de jurisdição voluntária que, portanto, se submete
aos dispositivos constantes no capítulo I do título II do Código de
Processo Civil.
Assim, não há necessariamente uma lide, que deverá ser afastada pela
inclusão de todos os interessados na exordial para comprovar que 100%
dos proprietários do imóvel desejam a ruptura das cláusulas.
Caso existam herdeiros desinteressados que não integrem a inicial ou
proprietários que já não sejam abrangidos pela restrição duas
possibilidades surgem para os autores: conseguir uma declaração escrita
com firma reconhecida que manifeste a concordância com o pleito ou
requerer as suas citações, nos termos do artigo 1.105 do diploma
processual civil pátrio.
Neste caso e, considerando em termos práticos vivências experimentadas
pelo ajuizamento de ações semelhantes, verificamos a necessidade de
inclusão destes herdeiros que não compreendem o pólo ativo, no pólo
passivo da demanda, muito embora ressaltemos que em procedimento de
jurisdição voluntários não existam réus, mas apenas interessados.
Uma vez citados, os interessados terão 10 (dez) dias para responder ao
processo, sendo lícito às partes/interessadas produzir as provas que
entenderem de direito.
Há uma peculiaridade na instrução probatória da jurisdição voluntária
que é a faculdade do juiz intervir e investigar os fatos e produzir de
ofício as provas que julgar necessárias.
Ademais, deverá o Ministério Público, na figura de seu parquet, atuar como custus legis ou fiscal da lei.
Em suma, verificamos que o procedimento de quebra das cláusulas
restritivas de direito sobre a propriedade de bens imóveis por força de
herança é bastante simplificado, mas tem como “peça-chave” para o
deferimento do pedido a real necessidade para que não haja mera
sub-rogação do montante herdado em imóveis em outros bens e sim o
cancelamento das cláusulas para a livre disposição dos imóveis pelos
herdeiros.
Para tanto, deverão os interessados justificar de maneira consistente e
plausível o motivo que permitirá a quebra das cláusulas sem a
sub-rogação, em conformidade com a jurisprudência que vem se
sedimentando nos tribunais superiores.
RESENDE, Fernanda Dal Sasso de.
Cláusulas restritivas de direito dispostas em testamento e a possibilidade de quebra pela via judicial. Jus Navigandi, Teresina,
ano 18,
n. 3499,
29 jan. 2013
.
Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23561>. Acesso em: 30 jan. 2013.