quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Quem pariu que embale! (Maria Berenice Dias)

Quem pariu que embale! Este é um antigo ditado que atribuiu exclusivamente à mãe todos os encargos com relação ao filho.    
Afinal, antes era assim. A mulher era a única responsável pela criação e educação dos filhos. Também a ela cabia as lides domésticas e o cuidado para com os idosos e os doentes. Claro que ainda precisava atender ao marido, pois ele tinha, como único dever, assegurar o sustento do lar.  
Mas há um tempo, tudo vem mudando. No momento em que a mulher entrou no mercado de trabalho houve um embaralhamento de papéis. Dos homens passou a ser exigida a participação nas questões familiares e eles acabaram descobrindo as delícias da paternidade.   
Não é por outro motivo que, de forma cada vez mais frequente, quando do rompimento do vínculo conjugal, eles buscam a guarda exclusiva dos filhos ou a guarda compartilhada.    
No entanto há novidades outras. O próprio formato da família mudou e agora se fala em Direito das Famílias. Antes, só era reconhecido o vínculo do casamento. Depois a união estável ganhou o a condição de entidade familiar. E, há uma década - por honra e graça da Justiça - também os vínculos homoafetivos passaram à condição de união estável. Um punhado de direitos são assegurados à população LGBT, inclusive a possibilidade do casamento.    
Todas estas mudanças, no entanto, não tiveram o condão de mudar a antiga concepção de que é a mãe a beneficiária da licença maternidade, sendo concedido ao pai escassos cinco dias. Tal, inclusive, impõe alguma restrição às mulheres no mercado de trabalho. Muitas vezes não são aceitas por haver a possibilidade de engravidarem e permanecerem longo tempo afastadas.    
Esta disparidade não mais pode prevalecer, pois não atende à realidade dos dias de hoje. Primeiro por que se está vivendo a era da paternidade responsável e é preciso assegurar direitos iguais a pais e mães. Ao depois pode acorrer o falecimento da mãe, o que não pode retirar do filho do direito a ser cuidado pelo pai.    
Também a adoção de filhos por casais do mesmo sexo pode gerar alguns impasses. Fazem ambas as mães direito à licença maternidade? Se forem dois pais, depois de cinco dias, ambos voltam às atividades profissionais?   
Daí o enorme significado da concessão, pelo INSS, de licença paternidade a um pai que, juntamente com o seu parceiro adotaram uma criança recém-nascida. Só que a licença foi concedida quando o filho já tinha dois anos de idade.    
Em face dessa demora, quando a criança tinha apenas 15 dias teve que ser deixada na creche. Esta falta da presença de um cuidador, nos primeiros meses de vida, não há como ser suprida.    
Assim, está mais do que na hora de se instituir a licença natalidade. Afinal, trata-se de um benefício a favor do filho e não a sua mãe. Esta é a proposta do Estatuto da Diversidade. Assegura licença natalidade de 180 dias, independente da orientação sexual dos pais. Durante os primeiros 15 dias o benefício é usufruído por. No período subsequente, por qualquer deles, de forma não cumulativa, e fracionada da forma desejada pelos pais.   
Inquestionavelmente um enorme avanço para assegurar a todas as crianças o direito de serem cuidadas por quem tem mais disponibilidade de tempo, ou maior desejo de se dedicar, com exclusividade, para dar-lhes o que elas mais precisam: a segurança de ter alguém que  as embale, que as acalente, que as alimente. Enfim, que lhes assegure o direito de crescerem com a certeza de ser muito amadas. 

DIAS, Maria Berenice. Quem pariu que embale! Em defesa da licença natalidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3479, 9 jan. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23411>. Acesso em: 7 fev. 2013.

A separação e a Emenda Constitucional nº 66

A Emenda Constitucional 66 de 13 de julho de 2010, que alterou o §6º do artigo 226 da Constituição Federal, ainda gera discussão e divergências quanto a sua interpretação, pois, se de um lado há uma corrente que defende o fim do instituto da separação judicial, de outro, há a que afirma convicta que isto não ocorreu.
O texto legal não fala expressamente na extinção da separação, ao contrário, somente na justificativa da emenda constitucional há uma referência a eliminação do requisito da prévia separação judicial por mais de 1 (um) ano ou de comprovada separação de fato por mais de 2 (dois) anos para o divórcio. Assim, em uma primeira análise, podemos verificar que houve uma eliminação do requisito temporal, afinal, agora o casamento poderá ser dissolvido diretamente pelo divórcio, sem que se tenha que aguardar o lapso temporal anteriormente previsto para a conversão da separação judicial em divórcio ou, para o pedido do divórcio direto.
Aos que defendem a manutenção da separação judicial, argumento forte consiste em que o instituto é regulado pelo Código Civil e, mais, que as espécies dissolutórias do casamento são reguladas na legislação infraconstitucional. Diante destas considerações, não há que se falar em “extinção” da separação, pois, ainda há vigência dos textos legais que tratam e regulam a matéria.
Em Jornadas de Direito Civil promovidas pelo Conselho da Justiça Federal através de seu Centro de Estudos Judiciários – CEJ houve a produção de enunciados relativos ao assunto, que corroboram o pensamento de que a separação não foi extinta de nosso ordenamento, tais como o enunciado 515 que diz: “Art. 1.574, caput: Pela interpretação teleologia da Emenda Constitucional n. 66/2010, não há prazo mínimo de casamento para a separação consensual” e o enunciado 517 que reza: “Art. 1.580: A Emenda Constitucional n. 66/2010 extinguiu os prazos previstos no art. 1.580 do Código Civil, mantido o divórcio por conversão”.
Outro ponto discutido por esta corrente é a eliminação da culpa. Com o decreto direto do divórcio não há discussão quanto à culpa pela dissolução do casamento, posto que a imputação de culpa a um dos cônjuges somente tem previsão no instituto da separação, que visa aplicar uma sanção ao descumprimento dos deveres legais do casamento, que são a vida em comum no domicílio conjugal, a fidelidade recíproca, a mútua assistência, sustento, guarda e educação dos filhos e o respeito e consideração mútuos.
Desta forma, extinguindo-se a separação judicial de nosso ordenamento, também se está extinguindo a possibilidade de aplicação de uma sanção ao cônjuge transgressor, ou seja, não se poderá alegar a culpa do outro para seu benefício quando da dissolução da sociedade conjugal. Na prática, o que pode ocorrer é que, mesmo não sendo fiel, o cônjuge “culpado” poderá, por exemplo, pleitear pensão alimentícia do cônjuge “inocente”, pois, não haverá mais a “sanção legal” por seu ato de descumprimento dos deveres do casamento.
Ainda, nesta linha de raciocínio, e atingindo o extremo da situação, sem a possibilidade de discutir a culpa quando do divórcio, o cônjuge que viveu todo o tempo mantendo e sustentando o outro, que é alcoólatra, violento e adultero, quando decide por fim a sociedade conjugal, ainda pode ser obrigado ao pagamento de pensão ao outro, afinal, é ele que detém os recursos e, o outro não pode mais ser “punido”.
Outros pontos também são discutidos em defesa da manutenção da separação, tais como questões religiosas, pois, com a extinção da separação fere-se o princípio da liberdade religiosa consagrado em nossa Constituição Federal, haja vista que em algumas religiões praticadas em nossa Federação, o divórcio não é aceito e, mais, elimina-se a possibilidade de utilização do instituto como remédio para a proteção dos doentes mentais.
Assim, simplesmente considerar “extirpado” de nosso ordenamento jurídico o instituto da separação é atitude precipitada, pois, deve se analisar todos os lados da questão para que, a posteriori, os problemas não restem sem solução.

NASCIMENTO, Carla Aparecida. A separação e a Emenda Constitucional nº 66. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3502, 1 fev. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23629>. Acesso em: 7 fev. 2013.

Bens dominicais: o imperdoável paradoxo da Administração Pública

Durante muito tempo, perdurou, no país, discussão jurisprudencial acerca da possibilidade de aquisição de bem público mediante usucapião. Discussão essa que se encerrou somente com a edição do Decreto nº. 19.429/31, que sagrou vencedora a tese da não incidência da prescrição aquisitiva em desfavor dos entes públicos. A Constituição Federal de 1988, por sua vez, repetiu a proibição contida no referido ato normativo executivo federal.[1] Doravante, não restaram quaisquer dúvidas de que o particular não pode, em nenhuma hipótese, adquirir bem público móvel ou imóvel mediante usucapião.
Os princípios administrativos da supremacia e da indisponibilidade do interesse público servem de supedâneo ideológico a essa e a outras normas jurídicas protetoras do patrimônio público.
Aliás, a doutrina é assente no sentido de que os bens públicos são, em regra, imprescritíveis, impenhoráveis e não sujeitos à oneração.[2] Ou seja, os entes públicos não correm o mínimo risco de perder os seus bens em ações de usucapião e em execuções.
Contudo, a Constituição Federal de 1988, a despeito de ter consagrado a impenhorabilidade dos bens públicos, elegeu a função social da propriedade como um dos princípios regentes da ordem econômica.[3]
Portanto, o particular que não usufruir de sua propriedade em consonância com os ditames constitucionais, ou seja, aquele que não lhe imprimir um mínimo caráter produtivo, certamente correrá o risco de perdê-la para outro que assim o faça, assertiva essa verificada com facilidade nas demandas relativas à usucapião. Isso compele os indivíduos a contribuírem, de uma forma ou de outra, para com o desenvolvimento econômico e social da nação. A esse respeito, a doutrina leciona: “A função social [da propriedade] pretende erradicar algumas deformidades existentes na sociedade, na quais o interesse egoístico do indivíduo põe em risco os interesses coletivos”.[4]
No entanto, aqueles que deveriam dar bons exemplos aos particulares no uso e na exploração de seus bens, os entes públicos, não poucas vezes, possuem ativos aos quais não conferem o mínimo destino produtor, e chegam até mesmo a deixá-los abandonados, uma vez não correrem o menor risco de perdê-los. Paradoxal, não? Faça o que mando, mas não faça o que faço. Essa conhecida máxima bem resume o tratamento conferido pelos entes públicos à questão da propriedade.
Esse disparate, porém, tem explicações, embora careça inteiramente de justificativas válidas, é o que mais adiante se verá.    

2 DA CLASSIFICAÇÃO DOS BENS PÚBLICOS

Segundo o direito administrativo, os bens públicos se dividem em três distintas categorias, quais sejam: bens públicos de uso comum do povo, bens públicos de uso especial e bens dominicais. Os primeiros são aqueles que a todos pertencem e que podem ser usados por todos, tais como estradas, ruas, praças, o meio ambiente, entre outros. Os segundos são os que pertencem a certo ente público e que são úteis à prestação de determinados serviços públicos, tais como hospitais, escolas, ambulâncias, viaturas de polícia etc. Quanto aos bens dominicais, a doutrina especializada assim os define:
Bens públicos dominicais (Código Civil, art. 66, III) – são os bens públicos não destinados à utilização imediata do povo, nem aos usuários de serviços ou aos beneficiários diretos de atividades. São bens sem tal destino, porque não o receberam ainda ou porque perderam um destino anterior. Ex: dinheiro dos cofres públicos, títulos de crédito pertencentes ao poder público, terras devolutas, terrenos de marinha.[5]    
Portanto, existem diferentes classes de bens públicos e, como já fora explicado, os bens dominicais não estão diretamente ligados à finalidade essencial dos entes públicos, ou seja, à promoção do bem comum. Os bens dominicais servem, portanto, aos próprios entes públicos, em vez de a toda a coletividade por eles representada.
No entanto, pelo simples fato de pertencerem a entes públicos, os bens dominicais gozam das mesmas prerrogativas inerentes às duas outras classes de bens públicos, ou seja, não são passíveis de prescrição, penhora ou oneração. Pois que vigem impolutos os princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público.
Imagine, portanto, que determinada prefeitura disponha de um prédio que não lhe apresente mais serventia, razão pela qual passou este a integrar a categoria dos bens dominicais, pelo que poderia ser vendido, e o produto de sua venda revertido aos cofres públicos.
Acrescente-se a isso o fato de que a municipalidade poderia doar unidades habitacionais do referido imóvel a moradores sem-teto que não dispusessem de recursos financeiros para adquiri-las mediante a compra, afinal, a Constituição Federal de 1988, conhecida entre nós brasileiros pela alcunha de constituição cidadã, assegura a todo brasileiro o direito à habitação.
Contudo, em vez de assim proceder, o ente público não vende, tampouco confere uma nova destinação ao imóvel em questão, mas simplesmente o abandona. Além de ser atacado por vândalos, o comentado prédio passa a ser ocupado por pessoas carentes, sem casa para morar e que nunca poderão adquirir sua propriedade mediante usucapião, mas terão de aguardar um gesto de nobreza e humanidade do administrador público.
Agora imagine que o governante não adote essa atitude benevolente, mas que, em nome do ente público por ele representado, reivindique, em juízo, a posse do bem esbulhado. Dezenas e, talvez, centenas de pessoas sejam novamente lançadas na rua, e fiquem sem abrigo, tudo em nome de um suposto interesse público, supremo e indisponível!
Mas em que consistiria o verdadeiro interesse público nessa hipotética situação? Em ver assegurado o direito constitucional à habitação de um sem número de cidadãos? Ou na reintegração de posse de um bem abandonado a um ente público que, até então, não lhe conferiu destinação específica e utilidade pública? Certamente ambas as respostas à pergunta proposta são válidas, embora diametralmente opostas no que tange ao quesito da justiça social.
Aprender a classificar o interesse público constitui condição imprescindível à promoção da verdadeira justiça. Tema do próximo capítulo.           

3 DA CLASSIFICAÇÃO DOS INTERESSES PÚBLICOS

Classificam-se os interesses públicos em duas distintas categorias, quais sejam: os interesses públicos primários e os secundários.
O interesse público primário consiste no complexo de interesses coletivos prevalentes na sociedade e que pode, quase sempre, ser concebido como o bem comum; e o interesse público secundário, por sua vez, é o interesse do ente público que vai a juízo e que, muitas vezes, encontra-se completamente dissociado dos interesses públicos primários e, portanto, dos interesses coletivos.[6]
Interesses públicos primários seriam, desta feita, as aspirações de todos os cidadãos e entidades civis por uma vida melhor; ao passo que os secundários seriam os dos entes públicos propriamente ditos.

4 DA SUPREMACIA E DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES PÚBLICOS

Ensina o direito administrativo que, em um conflito de interesses entre um ente público e um particular, devem prevalecer os interesses daquele em detrimento dos interesses deste. Eis, em apertada síntese, uma definição do princípio da supremacia do interesse público.
No direito moderno, a supremacia do interesse público sobre o privado se configura como verdadeiro postulado fundamental, pois que confere ao próprio indivíduo condições de segurança e de sobrevivência. A estabilidade da ordem social depende dessa posição privilegiada do Estado e dela dependem a ordem e a tranquilidade das pessoas... Pode-se extrair desse fundamento que toda vez que colide um interesse público com um interesse privado, é aquele que tem que prevalecer.[7]
A indisponibilidade do interesse público, ao seu turno, pode ser conceituada como a impossibilidade de se dispor dos interesses públicos, senão por meio de lei.
Em recente artigo de nossa autoria, demonstramos como os princípios administrativos da supremacia e da indisponibilidade do interesse público foram superestimados ao ponto de perverter o verdadeiro sentido da existência dos entes públicos que, em vez de existirem para a promoção do bem comum, passaram a ter sua existência quase que completamente dissociada aos objetivos supostamente por eles perseguidos.[8]
Assim, na hipotética situação aventada em capítulo anterior, o conflito de interesses não seria entre o particular e o público; mas, sim, entre duas diferentes categorias de interesse público, o interesse público primário consistente na efetivação do direito individual e constitucional de moradia, e o interesse público secundário, representado pelo direito à obtenção pelo ente público da reintegração de posse de um bem cuja propriedade não lhe pode ser solapada.   
Dizer que o interesse público primário deve prevalecer sobre o secundário é fácil, e é o que faz a maioria dos tratadistas que estudam o assunto, mas esclareça-se que, no caso ora descrito, fazer prevalecer o interesse público primário sobre o secundário implicaria na transgressão da disposição constitucional que torna os bens públicos, em geral, imprescritíveis...

5 DOS BENS DOMINICAIS

A doutrina administrativa enxerga a categoria dos bens públicos dominicais com muitos bons olhos, pois que lhes atribui algumas utilidades.
Tradicionalmente, apontam-se as seguintes características para os bens dominicais: 1. Comportam uma função patrimonial ou financeira, porque se destinam a assegurar rendas ao Estado, em oposição aos demais bens públicos, que são afetados a uma destinação de interesse geral; a consequência disso é que a gestão dos bens dominicais não era considerada serviço público, mas uma atividade privada da Administração; 2. Submetem-se a um regime jurídico de direito privado, pois a Administração Pública age, em relação a eles, como um proprietário privado.[9]
Observe-se, no entanto, que muitos bens dominicais não se destinam a assegurar rendas aos entes públicos, mas, simplesmente, deixaram de ser destinados ao uso específico, um terreno baldio, um prédio fechado, um equipamento obsoleto, um veículo que sofrera perda total em um acidente, esses são apenas alguns exemplos do que se observa em grande parte das administrações públicas, sejam elas federal, estaduais ou municipais.
Assim, enquanto esses bens jazem parados à espera de um adequado destino a ser determinado pelo gestor público, deixam de gerar receitas e, muitas vezes, passam a representar elevados custos aos cofres públicos, pois que necessitam de serviços de estocagem, limpeza, conservação, manutenção, vigilância patrimonial entre outros. Onde está a função social da propriedade? No regime jurídico de direito privado, apenas.
Interessante é notar que, geralmente, a inércia do administrador público em conferir destinação específica aos bens dominicais e assim obter ganhos e vantagens para o erário, não se encaixa no conceito de malbaratamento do patrimônio público.
Apontam-se como malbaratamento do patrimônio público somente a aquisição, alienação, doação e locação fraudulenta de bem público que importem em sua perda ou desvalorização.
Atualmente, parece inexistir preocupação do legislador no que tange à destinação de bens dominicais ao uso específico da administração. E, por isso, inúmeros bens, móveis e imóveis, que neste exato momento deveriam promover o bem-estar geral, estão abandonados, sujeitos à depredação e ainda a importar em pesados gastos de manutenção para os tesouros públicos.
Mais um inexorável efeito colateral da equivocada interpretação dos princípios administrativos da supremacia e da indisponibilidade do interesse público, por nós já tão combatida.
É de um imperdoável cinismo que as pessoas morram nas filas dos hospitais, sem atendimento médico, enquanto os entes públicos abarrotam seus almoxarifados com quinquilharias inúteis ou simplesmente especulem no mercado imobiliário.
Às vezes, os próprios entes públicos são vítimas da omissão de seus gestores, pois que pagam aluguel de bens que usam no exercício de suas atividades, enquanto possuem outros de mesma natureza e valor, inutilizados ou subutilizados, que não são vendidos e o produto de sua venda revertido ao erário. Um comportamento como esse por um acaso não constituiria verdadeiro malbaratamento? Evidentemente que sim, a menos que existam razões a justificá-lo, todavia as tais, geralmente, não existem.
Ademais, são justamente os bens dominicais aqueles mais vulneráveis aos ataques dos particulares e dos gestores ímprobos, pois que, geralmente, não são de fácil identificação e deles não se costuma dar falta. Infelizmente, malbaratamento, peculato e confusão patrimonial, são palavras comumente ouvidas ao se tratar de tais bens.
Constitui prática corrente afixar as chamadas etiquetas de patrimônio aos bens móveis integrantes do cabedal da administração, no entanto, parece não haver qualquer preocupação em caracterizar os imóveis públicos integrantes da categoria de bens dominicais para que assim se possa cobrar a atribuição de destinação específica a esses.
Aqui não se advoga o fim da imprescritibilidade, da impenhorabilidade e da desoneração dos bens públicos, em geral, mas, sim, que se criem regras aptas a fazer com que os gestores públicos imprimam finalidade social aos bens públicos, e que passem a limitar, ao máximo, o número daqueles contidos na categoria dos bens dominicais.
Afinal, segundo lição de Celso Antonio Bandeira de Mello, o princípio da supremacia do interesse público e, por extensão, a predominância do interesse público primário sobre o secundário,
[...] tem apenas a compostura que a ordem jurídica lhe houver atribuído na Constituição e nas leis com ela consonantes. Donde jamais caberia invocá-lo abstratamente, com prescindência do perfil constitucional que lhe haja sido irrogado, e, como é óbvio, muito menos caberia recorrer a ele contra a Constituição ou as leis. Juridicamente, sua dimensão, intensidade e tônica são fornecidas pelo Direito posto, e só por este ângulo é que pode ser considerado e invocado.[10]

6 CONCLUSÃO

A respeito do que fora discutido acerca dos bens públicos dominicais e do disparate que os envolve, pode-se concluir:
1) Os bens públicos classificam-se em: bens de uso comum do povo, bens públicos de uso especial da administração e bens públicos dominicais;
2) Os bens dominicais são aqueles que não têm destinação específica e que, assim como os demais bens públicos, são imprescritíveis, impenhoráveis e não estão sujeitos à oneração;
3) Existem duas distintas categorias de interesses públicos, a saber: primários e secundários e que, em um conflito entre os tais, deve-se conferir prevalência, tanto quanto possível, àqueles em detrimento destes;
4) Os princípios da supremacia e da indisponibilidade dos interesses públicos foram superdimensionados, pelo que se perverteu o verdadeiro sentido da existência dos entes públicos que, em vez de existirem para a promoção do bem comum, passaram a ter sua existência quase que completamente dissociada dos objetivos supostamente por eles perseguidos;
5) A injustificada manutenção de bens dominicais no acervo patrimonial público não constitui prática administrativa salutar, pois que assim a propriedade deixa de cumprir sua função social e, por vezes, deveria ser considerada malbaratamento do patrimônio público;
6) Necessita-se criar regras que limitem, ao mínimo possível, o número de bens dominicais integrantes do patrimônio dos entes públicos, pois que, em pouco ou nada, contribuem para com o bem-estar geral.  
O presente trabalho não pretende contrariar um postulado resultante de anos de evolução histórico-jurídica que é a imprescritibilidade dos bens públicos, proposta essa muito ousada em nosso sentir; mas objetiva chamar a atenção de todos e, principalmente das autoridades legislativas, para a grande injustiça consistente em se acumular bens dominicais enquanto não se asseguram aos cidadãos os seus mais básicos e elementares direitos.

CARVALHO, Wesley Corrêa. Bens dominicais: o imperdoável paradoxo da Administração Pública. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3508, 7 fev. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23663>. Acesso em: 7 fev. 2013.

Amar com hora marcada

O presente artigo não abordará relações amorosas remuneradas, tampouco o direito a visitas íntimas de internos prisionais, como o título poderia sugerir. O objeto é muito mais espinhoso: trata-se de uma abordagem contemporânea sobre uma visão retrógrada dos direitos de guarda, alimentos e visita de menores, filhos de pais separados.
O século XXI, apesar de imberbe, já é repleto de verdadeiras revoluções sociais e de costumes. A cada ano, as mulheres asseguram ainda mais a igualdade de condições duramente conquistada no final do século XX. O sucesso profissional ou o exercício de funções máximas da República não são mais exclusividades masculinas. Ao contrário, as mulheres não só as alcançaram, como estão se destacando em maior grau de eficiência do que os homens.
É inelutável o protagonismo feminino nos tempos atuais em comparação ao papel coadjuvante que desempenhava anteriormente. Contudo, apesar de lutar pela igualdade de condições com o gênero masculino e das conquistas obtidas, alguns ranços conservadores do século passado perduram até hoje. Notadamente quando se trata de guarda, alimentos e visita de filhos menores de idade.
Costumo dizer que a contemporaneidade, com os sensíveis avanços das relações paternas e maternas nesse novo milênio, há muito deixou de considerar o homem como “reprodutor-provedor” e a mulher como “sexo frágil”. Entretanto, o Poder Judiciário, ainda atrelado a paradigmas ultrapassados da primeira metade do século XX, teima em enxergar a figura paterna no exercício da guarda de filhos menores. Quando muito, entende por bem estipular a “guarda compartilhada”.
Muitos magistrados e, infelizmente, colegas advogados, encaram a maternidade, em absoluto descompasso com a contemporaneidade, como único “colo acolhedor” e a paternidade como “bolso provedor”. É uma completa desafinação com os tempos atuais.
Ao homem, o ônus solitário de prover a cria! À mulher, o bônus de fruir, egoisticamente, os momentos de alegria! A igualdade veiculada no art. 5º, I, da Carta Magna parece valer somente quando em benefício do gênero feminino.
É extremamente raro um pai obter a guarda dos filhos e o atraso – mesmo que justificado – da pensão alimentícia, culmina muitas vezes na prisão do genitor. Em contrapartida, a pensão alimentícia – não raro ruinosamente administrada pela mãe - é tratada como verdadeiro “cheque em branco”, desprovida de qualquer satisfação a quem herculeamente se desdobra para pagar.
É claro que não se olvida da existência de incontáveis mães responsáveis, verdadeiras heroínas, que se esforçam para sustentar sozinhas seus filhos, diante do abandono paterno. Essas últimas merecem o reconhecimento e o aplauso de todos. E, certamente, não temem prestar contas das despesas do filho em comum.
Entretanto, algumas mulheres, mães despreparadas e irresponsáveis, consideram a pensão alimentícia um verdadeiro “concurso público”. Acomodam-se e se entregam à sanha parasitária ad voluptatem, em desproveito das necessidades do próprio filho.
Nessa toada, é evidente que o titular do direito de exigir a prestação de contas não é aquele quem paga a pensão alimentícia, mas a própria criança a favor de quem são devidos os alimentos. E aquele genitor que não detém a guarda, mas titular do poder familiar (muito mais amplo do que a guarda do menor) e no exercício da representação prevista no art. 1.634, V, do Código Civil, não só pode, como deve, requerer judicialmente a prestação de contas em nome do filho, em desfavor daquele que administra a pensão alimentícia.
Os artigos 1583, §3º e 1.589, parte final, do Código Civil reforçam ainda mais a legitimidade processual prevista no art. 1.634, V, ao dispor que “a guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos” e “o pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação”.
Não resta dúvida, portanto, que o término da relação conjugal não altera a legitimidade de nenhum dos genitores no que diz respeito à representação dos filhos judicialmente. O art. 1.632 do CC/02 é de uma clareza solar ao rezar que, em regra, a única alteração advinda do término da relação conjugal se dará no campo da guarda. O que não se confunde, como vimos, com poder familiar (que alberga a representação).
Vê-se, assim, que a ação de prestação de contas tendo como objeto alimentos devidos a menores, é legítima e cabível. E, em se apurando crédito, no bojo da prestação de contas, o mesmo deve ser revertido em prol da criança e não daquele que se obrigou à prestação alimentar. Tal crédito, em face do princípio constitucional da igualdade de direitos e obrigações entre homem e mulher, pode ser cobrado - inclusive – mediante o rito de prisão civil, aplicável analogamente ao caso.
Por outro lado, não há falar-se em alimentos sem que consideremos a colaboração mútua dos genitores para a mantença da prole comum, não podendo o dever de alimentar conduzir ao sacrifício de apenas um dos genitores. A tríade alimentar é formada pelo princípio constitucional da proporcionalidade, ponderado entre os parâmetros possibilidade-necessidade.
Em síntese, a obrigação alimentar, à luz do ordenamento jurídico do século XXI, há de ser compartida por ambos os genitores, cabendo a cada qual, proporcionalmente à respectiva possibilidade, assumir a responsabilidade de fazer frente às necessidades alimentares dos filhos.
Por fim, no que diz respeito ao direito de visitas, depois de finda a relação conjugal, se faz necessário contemplar e privilegiar os interesses da criança, notadamente a mantença da convivência com o genitor que não detém sua guarda, para impedir o rompimento dos laços afetivos entre eles.
O “direito de visita” deve ser interpretado contemporaneamente muito mais como um direito do filho em relação ao genitor que não tem a guarda ou em relação a qualquer parente (avós, tios, etc.), cuja convivência lhe interesse, do que como um direito daquele que não detém a guarda em relação ao filho.
Essas ocasiões de visitas devem ser fluidas, nunca com hora marcada para começar ou terminar. O bom senso deve sempre superar o egoísmo e o espírito vingativo daquele que detém a guarda da criança. Impedir ou dificultar a convivência da criança e seu pai (em regra, antiquadamente, a guarda é materna) causa profundos danos imateriais ao próprio filho.
Não é à toa, pois, que a Lei nº 12.318/2010 coíbe a alienação parental, que pode se apresentar na forma de conduta que vise “dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar”.
Em verdade, o ordenamento jurídico contemporâneo e a melhor interpretação doutrinária do século XXI não só asseguram ao pai desprovido da guarda os direitos e obrigações inerentes a sua paternidade, como garantem à criança a sadia convivência com sua família paterna.
Ademais, dia após dia, surgem cada vez mais pais contemporâneos que não qualificam a criação do filho como ônus, como muitas mães costumam dizer. São pais participativos, afetuosos e preocupados verdadeiramente com a formação intelectual e psíquica dos seus filhos. Que não se satisfazem em “pagar” pensão e “passear” - ocasionalmente- com o respectivo infante.
A quebra de paradigmas do século passado e os novos enfoques da relação entre pais e filhos devem ser levados em consideração nesse novo milênio. Não há mais lugar para “amar com hora marcada”. O amor paterno-filial não pode ser represado ao bel prazer do insaciável espírito vingativo da mulher desprezada, pois como diria Shakespeare: “nem mesmo os infernos conhecem a fúria de uma mulher rejeitada”.

SILVA, Adriano José Borges. Amar com hora marcada. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3507, 6 fev. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/23659>. Acesso em: 7 fev. 2013.