terça-feira, 9 de abril de 2013

Prioridade a idoso não vale em prenotação de títulos

É comum ouvirmos a frase “quem não registra não é dono”. Assim é porque não basta que a pessoa adquira um imóvel, normalmente por escritura pública. É preciso que essa escritura seja levada ao cartório de imóveis para ser registrada junto à matrícula do imóvel (artigo 1.227 do Código Civil). Quem consta na matrícula do imóvel como proprietário é que é considerado o seu verdadeiro dono (artigo 1.245 do Código Civil).

Sabemos que, se uma pessoa alienar o mesmo imóvel para pessoas diversas em negócios jurídicos diferentes, o adquirente que primeiro apresentar o título para o registro no cartório de imóveis, se tornará o dono do bem (1.246 do Código Civil). Isso já foi decidido pelo Superior Tribunal de Justiça em julgado relatado pelo ministro César Asfor Rocha (1996/0051568-9), cuja parte mais expressiva da ementa é a seguinte: Se duas distintas pessoas, por escrituras diversas, comprarem o mesmo imóvel, a que primeiro levar a sua escritura a registro é que adquirirá o seu domínio. É o prêmio que a lei confere a quem foi mais diligente.

Como se vê, para resolver o conflito entre títulos com direitos incompatíveis entre si, aplica-se o princípio da prioridade. Assim, por exemplo, o procedimento de registro haverá de ser concluído apenas em relação ao título prenotado em primeiro lugar, de acordo com a ordem do protocolo. E, depois de feito o registro do primeiro título, igualmente não poderá ser feito o registro do segundo porque isso é impedido pelo princípio da continuidade.

Percebe-se, pois, a grande importância do princípio da prioridade no âmbito do registro de imóveis. A pessoa que primeiro prenotar um título para seu registro terá prioridade sobre outro título depois prenotado, mesmo que eles sejam contraditórios entre si e um exclua o direito do outro.

O artigo 186 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973) diz "o número de ordem determinará a prioridade do título, e esta a preferência dos direitos reais, ainda que apresentados pela mesma pessoa mais de um título simultaneamente".

Tão logo um título é apresentado no cartório de imóveis, ele é protocolado, nos termos do artigo 182 da Lei de Registros Públicos, que diz: "todos os títulos tomarão o número de ordem que lhes competir em razão da sequência rigorosa de sua apresentação" (artigo 182).

Pois bem, para a feitura do protocolo, normalmente, há uma fila no cartório, de acordo com a ordem de chegada das pessoas. E nessa fila há preferência para as pessoas idosas, nos termos de seu Estatuto (Lei 10.741/2003, artigo 3º, I), que diz caber ao idoso o atendimento preferencial imediato e individualizado junto aos órgãos públicos e privados prestadores de serviços à população.

O Estatuto, no seu artigo 114, alterou a redação do artigo 1º da Lei 10.741, que dá atendimento prioritário não só aos idosos, com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, mas também às gestantes, às lactantes e às pessoas acompanhadas por crianças de colo.

Ocorre que a prioridade de atendimento a referidas pessoas na fila do protocolo do cartório de imóveis pode aniquilar o direito de propriedade ou outro direito real de outra pessoa que esteja adiante na fila, mas não tenha a mesma preferência. De fato, se uma pessoa sem prioridade tiver chegado antes no cartório para prenotar um título, que foi protocolado depois de um título contraditório trazido posteriormente por pessoa a quem a lei dá prioridade de atendimento, verá o seu direito de prioridade ao registro ser prejudicado pela prioridade na fila dada a quem chegou depois.

A pergunta que se faz é: deve prevalecer a prioridade da pessoa comum que chegou antes ou a da pessoa com preferência que chegou depois? Sempre que dois princípios de direito se chocarem, pensamos que deve haver uma ponderação entre os dois, para que prevaleça o que for mais justificado pelas circunstâncias.

Por meio dessa ponderação, a prioridade do Estatuto do Idoso deve prevalecer em igualdade de condições. Assim, se uma com prioridade de atendimento comparece no cartório de imóveis, por exemplo, para requerer uma certidão, não há problema algum no fato de seu atendimento ocorrer antes das demais pessoas que estão na sua frente na fila, pois tais pessoas poderão igualmente e com utilidade requerer e obter depois as certidões de que necessitam.

Também no protocolo de títulos não contraditórios, como os digam respeito a imóveis diferentes, não há problema algum em ser assegurada a prioridade legal de atendimento, pois essa preferência não prejudica de forma relevante o direito das demais pessoas da fila.

Todavia, quando se trata da prenotação de títulos contraditórios, principalmente com direitos excludentes, não pode prevalecer a prioridade legal dada aos idosos, pois o Estatuto do Idoso jamais quis —e nem poderia— retirar das pessoas comuns os seus direitos materiais, em especial os direitos reais.

Com efeito, uma pessoa comum ser preterida na ordem de atendimento, em favor de uma pessoa com prioridade legal, é algo aceitável porque proporcional, de modo que isso não viola o princípio da isonomia. A igualdade se alcança tratando-se desigualmente os desiguais, na medida da desigualdade. A ideia é atenuar o desconforto que possam ter os idosos, as grávidas, as lactantes e as pessoas com crianças de colo.

Porém, quando não há simples preterição da ordem de atendimento, mas sim verdadeira negação de atendimento ou aniquilação de direito material, não pode prevalecer a prioridade do Estatuto do Idoso, pois é desproporcional e ilícito o prejuízo imposto à pessoa comum para favorecer as pessoas com prioridade. É o que ocorre no caso dos títulos contraditórios.

De fato, se uma pessoa com prioridade, na fila do protocolo, prenota um título contraditório antes de outra pessoa comum que estava na sua frente, não há mera prioridade ou atendimento imediato, não há simples preferência em igualdade de condições, mas sim a exclusão e a morte do direito real da pessoa comum que tinha chegado antes no cartório de imóveis, pois o título dela não será registrado.
Todo direito tem limites. O mesmo ocorre com a prioridade do idoso, grávidas e deficientes. Logo, se às pessoas aqui mencionadas for dada uma prioridade absoluta, em todas as situações em que elas estiverem numa fila, teremos algo desproporcional e ilícito, em flagrante abuso de direito, pois não pode a prioridade geral de atendimento acarretar a prioridade especial do direito real, previsto em legislação específica (Lei dos Registros Públicos) que não faz distinção entre pessoas comuns e pessoas com necessidades especiais, ao menos para efeito prioridade na aquisição dos direitos reais.

O Estatuto do Idoso não assegura a ninguém o direito de propriedade ou qualquer outro direito real, em prejuízo das pessoas comuns. A prioridade na fila dada no caso dos títulos contraditórios viola frontalmente o princípio constitucional da isonomia, que é um dos fundamentos do nosso Estado Democrático de Direito, como se vê do preâmbulo da Constituição Federal.

Além do preâmbulo, a igualdade está prevista também no caput do artigo 5º da Constituição, pois a igualdade das pessoas perante a lei é fundamento central do Estado de Direito. Logo, permitir que referidas pessoas prenotem seus títulos contraditórios na frente de outras pessoas que chegaram antes na fila é algo que viola a Constituição, viola o próprio Estatuto do Idoso, viola o direito de propriedade assegurado pela Constituição e também viola a Lei dos Registros Públicos.

Para que se tenha uma ideia mais clara, imagine que uma pessoa com prioridade (idoso, deficiente, lactante ou grávida) entre num ônibus e exija que as pessoas comuns saiam para que ela viaje como único passageiro. Qualquer pessoa perceberá claramente o absurdo da desproporção da prioridade exigida neste exemplo.

Pois bem, a prioridade na fila dada a alguém com título contraditório excludente é ainda mais desproporcional do que o exemplo do ônibus, pois os passageiros sem prioridade, obrigados a descer do coletivo, podem muito bem pegar o próximo veículo público e chegar ao seu destino sem maiores problemas. Porém, a pessoa que estava na frente na fila, mas foi preterida em favor da preferência de alguém, não tem como alcançar o seu objetivo de registrar o seu título para adquirir o domínio ou outro direito real. Esse direito, como tal, estará perdido. No máximo, terá uma indenização, mas o imóvel não.

Ao que nos parece, a propósito do tema, tanto os cartórios que respeitam de forma absoluta a prioridade do idoso, deficiente, lactante ou grávida, com base no Estatuto do Idoso, quanto os que totalmente negam essa prioridade, a pretexto de cumprir a Lei dos Registros Públicos, não estão agindo de conformidade com o direito. É preciso uma ponderação dessas duas prioridades.

Correto, pois o disposto no Capítulo XIII, do Tomo II, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, item 88, diz: na prestação dos serviços, os notários e registradores devem atender por ordem de chegada, assegurada prioridade a idosos, grávidas e portadores de necessidades especiais, exceto no que se refere à prioridade de registro prevista em lei.

A interpretação que propomos, respeitadas as opiniões em sentido contrário, é a de que os oficiais dos cartórios de registros de imóveis devem respeitar na fila do protocolo a prioridade de atendimento garantida às pessoas acima, mas esta prioridade não se aplica em detrimento das pessoas comuns que antes chegaram e que tenham em mãos títulos contraditórios aos preferentes que chegaram depois.

A conclusão, pois, é que a norma acima, da Corregedoria Geral, apensar de ser meramente administrativa, está muito mais conforme com o direito do que uma aplicação imponderada do Estatuto do Idoso, pois qualquer regra deve ser interpretada à luz dos princípios gerais de direito e da nossa Constituição. Portanto, o idoso nem sempre tem razão, nem sempre tem prioridade.

É por isso que, num pronto socorro de hospital, um idoso sem risco de vida, não pode ser atendido antes de uma pessoa jovem que está prestes a morrer, em estado de emergência, se não for atendida o quanto antes. A preferência do idoso não pode prevalecer sobre a vida de outrem.

José Luiz Germano é Juiz de Direito substituto de segundo grau, atualmente compondo a 2ª Câmara da Secção de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Revista Consultor Jurídico, 8 de abril de 2013
 http://www.conjur.com.br/2013-abr-08/jose-germano-prioridade-idoso-nao-vale-titulos-contraditorios

Deficientes auditivos não são isentos do pagamento de IPI

A isenção do IPI na compra de automóveis para portadores de deficiência não pode ser estendida aos deficientes auditivos, uma vez que a regra isentiva deve ser literalmente interpretada. Assim decidiu a 26ª Vara Federal Cível de São Paulo ao julgar uma Ação Civil Pública que buscava garantir a isenção do IPI na aquisição de veículo 0km para pessoas surdas.

A isenção do IPI é disciplinada na Lei 8.989/1995, que dispõe sobre o benefício na aquisição de automóveis para transporte "por pessoas portadoras de deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autistas, diretamente ou por intermédio de seu representante legal". Para o Ministério Público Federal, a exclusão somente de um tipo de deficiência do benefício fiscal é “equivocada e discriminatória”. Na ação, o MPF afirma ainda que tal negação viola normas constitucionais e legais que garantem a inclusão social da pessoa com deficiência e, em consequência, viola os princípios da isonomia e da dignidade humana. 

“O argumento de que a isenção deve ser interpretada literalmente, por força do artigo 111, inciso II, do Código Tributário Nacional, não pode servir de justificativa para afrontar a Constituição Federal, norma hierarquicamente superior”, alegou o MPF. 

A União, por meio da Divisão de Acompanhamento Especial da Procuradoria da Fazenda Nacional, se defendeu afirmando que os portadores de deficiência auditiva não estão em condição equivalente à dos portadores de deficiências físicas, visual, mental ou autismo, “uma vez que não têm a locomoção afetada.” Além disso, a União alegou que a interpretação da lei deve ser literal, já que se trata de benefício fiscal, “não podendo ser ampliado o gozo do benefício por pessoas não autorizadas". Afirmou ainda que a deficiência é o gênero e que a deficiência física e a auditiva são espécies distintas.

O juiz decidiu não ser possível estender a isenção do IPI aos deficientes auditivos, uma vez que a regra isentiva deve ser literalmente interpretada e a que foi colocada em discussão não faz menção a tal deficiência. Afirmou ainda que a Administração está completamente vinculada à lei, só podendo fazer o que a lei determina. “Trata-se do princípio da legalidade.”

Na decisão, o juiz citou doutrina do administrativista Celso Antonio Bandeira de Mello, com o seguinte entendimento: "O princípio da legalidade é o da completa submissão da Administração às leis. Esta deve tão-somente obedecê-las, cumpri-las, pô-las em prática. Daí que a atividade de todos os seus agentes, desde o que lhe ocupa a cúspide, isto é, o Presidente da República, até o mais modesto dos servidores, só pode ser a de dóceis, reverentes, obsequiosos cumpridores das disposições gerais fixadas pelo Poder Legislativo, pois esta é a posição que lhes compete no Direito brasileiro".

A ação foi julgada improcedente e extinta com resolução do mérito. 

Clique aqui para ler a decisão. 
Processo 0003667-90.2009.4.03.6100
Livia Scocuglia é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 8 de abril de 2013
http://www.conjur.com.br/2013-abr-08/deficientes-auditivos-nao-podem-isencao-ipi-compra-automovel