É comum ouvirmos a frase “quem não registra não é
dono”. Assim é porque não basta que a pessoa adquira um imóvel,
normalmente por escritura pública. É preciso que essa escritura seja
levada ao cartório de imóveis para ser registrada junto à matrícula do
imóvel (artigo 1.227 do Código Civil). Quem consta na matrícula do
imóvel como proprietário é que é considerado o seu verdadeiro dono
(artigo 1.245 do Código Civil).
Sabemos que, se uma pessoa alienar
o mesmo imóvel para pessoas diversas em negócios jurídicos diferentes, o
adquirente que primeiro apresentar o título para o registro no cartório
de imóveis, se tornará o dono do bem (1.246 do Código Civil). Isso já
foi decidido pelo Superior Tribunal de Justiça em julgado relatado pelo
ministro César Asfor Rocha (1996/0051568-9), cuja parte mais expressiva
da ementa é a seguinte: Se duas distintas pessoas, por escrituras
diversas, comprarem o mesmo imóvel, a que primeiro levar a sua escritura
a registro é que adquirirá o seu domínio. É o prêmio que a lei confere a
quem foi mais diligente.
Como se vê, para resolver o conflito
entre títulos com direitos incompatíveis entre si, aplica-se o princípio
da prioridade. Assim, por exemplo, o procedimento de registro haverá de
ser concluído apenas em relação ao título prenotado em primeiro lugar,
de acordo com a ordem do protocolo. E, depois de feito o registro do
primeiro título, igualmente não poderá ser feito o registro do segundo
porque isso é impedido pelo princípio da continuidade.
Percebe-se,
pois, a grande importância do princípio da prioridade no âmbito do
registro de imóveis. A pessoa que primeiro prenotar um título para seu
registro terá prioridade sobre outro título depois prenotado, mesmo que
eles sejam contraditórios entre si e um exclua o direito do outro.
O
artigo 186 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973) diz "o número
de ordem determinará a prioridade do título, e esta a preferência dos
direitos reais, ainda que apresentados pela mesma pessoa mais de um
título simultaneamente".
Tão logo um título é apresentado no
cartório de imóveis, ele é protocolado, nos termos do artigo 182 da Lei
de Registros Públicos, que diz: "todos os títulos tomarão o número de
ordem que lhes competir em razão da sequência rigorosa de sua
apresentação" (artigo 182).
Pois bem, para a feitura do protocolo,
normalmente, há uma fila no cartório, de acordo com a ordem de chegada
das pessoas. E nessa fila há preferência para as pessoas idosas, nos
termos de seu Estatuto (Lei 10.741/2003, artigo 3º, I), que diz caber ao
idoso o atendimento preferencial imediato e individualizado junto aos
órgãos públicos e privados prestadores de serviços à população.
O
Estatuto, no seu artigo 114, alterou a redação do artigo 1º da Lei
10.741, que dá atendimento prioritário não só aos idosos, com idade
igual ou superior a 60 (sessenta) anos, mas também às gestantes, às
lactantes e às pessoas acompanhadas por crianças de colo.
Ocorre
que a prioridade de atendimento a referidas pessoas na fila do protocolo
do cartório de imóveis pode aniquilar o direito de propriedade ou outro
direito real de outra pessoa que esteja adiante na fila, mas não tenha a
mesma preferência. De fato, se uma pessoa sem prioridade tiver chegado
antes no cartório para prenotar um título, que foi protocolado depois de
um título contraditório trazido posteriormente por pessoa a quem a lei
dá prioridade de atendimento, verá o seu direito de prioridade ao
registro ser prejudicado pela prioridade na fila dada a quem chegou
depois.
A pergunta que se faz é: deve prevalecer a prioridade da
pessoa comum que chegou antes ou a da pessoa com preferência que chegou
depois? Sempre que dois princípios de direito se chocarem, pensamos que
deve haver uma ponderação entre os dois, para que prevaleça o que for
mais justificado pelas circunstâncias.
Por meio dessa ponderação, a
prioridade do Estatuto do Idoso deve prevalecer em igualdade de
condições. Assim, se uma com prioridade de atendimento comparece no
cartório de imóveis, por exemplo, para requerer uma certidão, não há
problema algum no fato de seu atendimento ocorrer antes das demais
pessoas que estão na sua frente na fila, pois tais pessoas poderão
igualmente e com utilidade requerer e obter depois as certidões de que
necessitam.
Também no protocolo de títulos não contraditórios,
como os digam respeito a imóveis diferentes, não há problema algum em
ser assegurada a prioridade legal de atendimento, pois essa preferência
não prejudica de forma relevante o direito das demais pessoas da fila.
Todavia,
quando se trata da prenotação de títulos contraditórios, principalmente
com direitos excludentes, não pode prevalecer a prioridade legal dada
aos idosos, pois o Estatuto do Idoso jamais quis —e nem poderia— retirar
das pessoas comuns os seus direitos materiais, em especial os direitos
reais.
Com efeito, uma pessoa comum ser preterida na ordem de
atendimento, em favor de uma pessoa com prioridade legal, é algo
aceitável porque proporcional, de modo que isso não viola o princípio da
isonomia. A igualdade se alcança tratando-se desigualmente os
desiguais, na medida da desigualdade. A ideia é atenuar o desconforto
que possam ter os idosos, as grávidas, as lactantes e as pessoas com
crianças de colo.
Porém, quando não há simples preterição da ordem
de atendimento, mas sim verdadeira negação de atendimento ou
aniquilação de direito material, não pode prevalecer a prioridade do
Estatuto do Idoso, pois é desproporcional e ilícito o prejuízo imposto à
pessoa comum para favorecer as pessoas com prioridade. É o que ocorre
no caso dos títulos contraditórios.
De fato, se uma pessoa com
prioridade, na fila do protocolo, prenota um título contraditório antes
de outra pessoa comum que estava na sua frente, não há mera prioridade
ou atendimento imediato, não há simples preferência em igualdade de
condições, mas sim a exclusão e a morte do direito real da pessoa comum
que tinha chegado antes no cartório de imóveis, pois o título dela não
será registrado.
Todo direito tem limites. O mesmo ocorre com a
prioridade do idoso, grávidas e deficientes. Logo, se às pessoas aqui
mencionadas for dada uma prioridade absoluta, em todas as situações em
que elas estiverem numa fila, teremos algo desproporcional e ilícito, em
flagrante abuso de direito, pois não pode a prioridade geral de
atendimento acarretar a prioridade especial do direito real, previsto em
legislação específica (Lei dos Registros Públicos) que não faz
distinção entre pessoas comuns e pessoas com necessidades especiais, ao
menos para efeito prioridade na aquisição dos direitos reais.
O
Estatuto do Idoso não assegura a ninguém o direito de propriedade ou
qualquer outro direito real, em prejuízo das pessoas comuns. A
prioridade na fila dada no caso dos títulos contraditórios viola
frontalmente o princípio constitucional da isonomia, que é um dos
fundamentos do nosso Estado Democrático de Direito, como se vê do
preâmbulo da Constituição Federal.
Além do preâmbulo, a igualdade
está prevista também no caput do artigo 5º da Constituição, pois a
igualdade das pessoas perante a lei é fundamento central do Estado de
Direito. Logo, permitir que referidas pessoas prenotem seus títulos
contraditórios na frente de outras pessoas que chegaram antes na fila é
algo que viola a Constituição, viola o próprio Estatuto do Idoso, viola o
direito de propriedade assegurado pela Constituição e também viola a
Lei dos Registros Públicos.
Para que se tenha uma ideia mais
clara, imagine que uma pessoa com prioridade (idoso, deficiente,
lactante ou grávida) entre num ônibus e exija que as pessoas comuns
saiam para que ela viaje como único passageiro. Qualquer pessoa
perceberá claramente o absurdo da desproporção da prioridade exigida
neste exemplo.
Pois bem, a prioridade na fila dada a alguém com
título contraditório excludente é ainda mais desproporcional do que o
exemplo do ônibus, pois os passageiros sem prioridade, obrigados a
descer do coletivo, podem muito bem pegar o próximo veículo público e
chegar ao seu destino sem maiores problemas. Porém, a pessoa que estava
na frente na fila, mas foi preterida em favor da preferência de alguém,
não tem como alcançar o seu objetivo de registrar o seu título para
adquirir o domínio ou outro direito real. Esse direito, como tal, estará
perdido. No máximo, terá uma indenização, mas o imóvel não.
Ao
que nos parece, a propósito do tema, tanto os cartórios que respeitam de
forma absoluta a prioridade do idoso, deficiente, lactante ou grávida,
com base no Estatuto do Idoso, quanto os que totalmente negam essa
prioridade, a pretexto de cumprir a Lei dos Registros Públicos, não
estão agindo de conformidade com o direito. É preciso uma ponderação
dessas duas prioridades.
Correto, pois o disposto no Capítulo
XIII, do Tomo II, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da
Justiça, item 88, diz: na prestação dos serviços, os notários e
registradores devem atender por ordem de chegada, assegurada prioridade a
idosos, grávidas e portadores de necessidades especiais, exceto no que
se refere à prioridade de registro prevista em lei.
A
interpretação que propomos, respeitadas as opiniões em sentido
contrário, é a de que os oficiais dos cartórios de registros de imóveis
devem respeitar na fila do protocolo a prioridade de atendimento
garantida às pessoas acima, mas esta prioridade não se aplica em
detrimento das pessoas comuns que antes chegaram e que tenham em mãos
títulos contraditórios aos preferentes que chegaram depois.
A
conclusão, pois, é que a norma acima, da Corregedoria Geral, apensar de
ser meramente administrativa, está muito mais conforme com o direito do
que uma aplicação imponderada do Estatuto do Idoso, pois qualquer regra
deve ser interpretada à luz dos princípios gerais de direito e da nossa
Constituição. Portanto, o idoso nem sempre tem razão, nem sempre tem
prioridade.
É por isso que, num pronto socorro de hospital, um
idoso sem risco de vida, não pode ser atendido antes de uma pessoa jovem
que está prestes a morrer, em estado de emergência, se não for atendida
o quanto antes. A preferência do idoso não pode prevalecer sobre a vida
de outrem.
José Luiz Germano é
Juiz de Direito substituto de segundo grau, atualmente compondo a 2ª
Câmara da Secção de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 8 de abril de 2013
http://www.conjur.com.br/2013-abr-08/jose-germano-prioridade-idoso-nao-vale-titulos-contraditorios