terça-feira, 23 de abril de 2013

Reflexões sobre a concorrência do companheiro com os descendentes do falecido

1. INTRODUÇÃO
A sucessão do companheiro é regulada pelo artigo 1.790 do Código Civil, que dispõe que “a companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança”.
De acordo com o dispositivo os primeiros a serem chamados para concorrer com o companheiro sobrevivente são os descendentes. De acordo com o inciso I, se concorrer com filhos comuns, o companheiro terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho. Por outro lado, se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles. Se concorrer com descendentes comuns e exclusivos do autor da herança (filiação híbrida) a lei não previu solução, restando ao interprete suprir a lacuna normativa.
Todavia a determinação da parte que compete aos descendentes do companheiro depende, primeiro, de que sejam seguidas algumas etapas:
1ª Etapa: deverá ser verificado o regime de bens aplicável à união estável. Se não houver contrato de convivência com cláusula prevendo o regime, deverá ser considerado como aplicável o da comunhão parcial, conforme determinação do artigo 1.725 do Código Civil. Identificado o regime deverá ser separada a herança da meação. A meação é direito próprio do companheiro que decorre do regime de bens e não entra na regra do artigo 1.790 do Código Civil.
2ª Etapa: Após entregar a meação ao companheiro sobrevivente, deverá ser verificado dentre os bens que compõe a herança do companheiro falecido quais foram adquiridos onerosamente na constância da união estável, separando a herança em dois blocos, em duas sub-heranças: a primeira com os bens adquiridos onerosamente durante a relação e a segunda com os demais bens.
3ª Etapa: com relação à primeira sub-herança, a divisão deverá ser feita com base nos incisos do artigo 1.790 do Código Civil. Já com relação à segunda sub-herança, da qual o companheiro não participa, a divisão deverá ser feita com base no artigo 1.829 e seguintes do Código Civil.
No caso do companheiro ter deixado descendentes a primeira sub-herança (composta pelos bens adquiridos onerosamente durante a união estável) deve ser dividida entre o companheiro sobrevivente e os descendentes conforme o disposto nos incisos I e II do artigo 1.790 do Código Civil. Quanto à segunda sub-herança (composta pelos bens adquiridos antes da união estável ou durante a união estável, mas a título gratuito) deverá ser dividida exclusivamente entre os descendentes.
Vejamos, agora, como deve ser feita a divisão entre o companheiro sobrevivente e os demais herdeiros de acordo com o tipo de filiação:

2. FILIAÇÃO COMUM
Se o companheiro concorrer com filhos comuns (isto é, filhos de ambos os companheiros), terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída a cada filho (art. 1.790, I, CC). Impende observar que a lei fala apenas em filhos comuns e não descendentes comuns. Adotando-se uma interpretação literal do dispositivo, com a exclusão dos demais descendentes (netos, bisnetos etc.) da incidência da norma, chegar-se-ia à absurda conclusão de aplicabilidade do inciso III a estes.
Sobre a questão a doutrina é praticamente unânime em apontar que o equívoco legislativo deve ser resolvido com a adoção de interpretação extensiva, aplicando-se a regra prevista no inciso I não somente aos filhos comuns como também aos demais descendentes comuns. Deste forma, onde está escrito filho, deve-se ler descendente. Nesse sentido: GISELDA HIRONAKA, SEBASTIÃO AMORIM, EUCLIDES DE OLIVEIRA, ROLF MADALENO, ZENO VELOSO, FRANCISCO CAHALI, FLÁVIO TARTUCE e JOSÉ FERNANDO SIMÃO[1].
Procurando afastar qualquer dúvida sobre a questão, durante a realização da III Jornada de Direito Civil, o Conselho da Justiça Federal (órgão vinculado ao Superior Tribunal de Justiça), aprovou o Enunciado 266, nos seguintes termos: “aplica-se o inciso I do art. 1.790 também na hipótese de concorrência do companheiro sobrevivente com outros descendentes comuns e não apenas na concorrência com filhos comuns”.
Exemplificando: se uma pessoa faleceu deixando companheiro, 2 filhos comuns e uma herança de 600 mil reais, dos quais 300 mil reais se referem a bens adquiridos onerosamente durante a união estável (1ª sub-herança) e o restante não (2ª sub-herança). Como ficará a divisão dos bens?
1ª Sub-herança: R$ 300 mil
Filho A: R$100 mil /  Filho B: R$100 mil / Companheiro: R$100 mil
2ª Sub-herança: R$ 300 mil
Filho A: R$150 mil / Filho B: R$150 mil

3. FILIAÇÃO EXCLUSIVA
Se o companheiro sobrevivente concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles (artigo 1.790, II, CC). Nesta hipótese o Código Civil não se referiu a filhos e sim a descendentes, afastando por completo qualquer discussão quanto ao alcance da norma. Procurando facilitar a aplicação do mesmo, ao invés de afirmarmos que o companheiro receberá a metade da cota de cada um dos descendentes exclusivos, recomendamos a seguinte leitura: o companheiro receberá uma quota da herança ao passo que cada descendente exclusivo receberá duas quotas. Desta forma, a solução de qualquer problema prático se torna mais simples.
Exemplificando: se uma pessoa faleceu deixando companheiro, 2 filhos exclusivos e uma herança de 600 mil reais, dos quais 300 mil reais se referem a bens adquiridos onerosamente durante a união estável (1ª sub-herança) e o restante não (2ª sub-herança). Como fica a divisão?
1ª Sub-herança: R$ 300 mil
Filho A: R$120 mil /  Filho B: R$120 mil / Companheiro: R$60 mil
2ª Sub-herança: R$ 300 mil
Filho A: R$150 mil / Filho B: R$150 mil

4. FILIAÇÃO HÍBRIDA
Como afirmado anteriormente, o Código Civil de 2002 foi omisso no que diz respeito à filiação híbrida, caracterizada como aquela em que o falecido deixou descendentes comuns e exclusivos. Diante da lacuna normativa existente resta ao estudioso do direito interpretar as regras previstas nos incisos I e II do art. 1.790 para determinar a forma pela qual a herança será dividida entre os descendentes e o companheiro do falecido. Com esse intuito podem ser apresentadas as seguintes correntes:

1ª CORRENTE: QUOTA IGUAL
Baseia-se na interpretação literal e sistemática do art. 1.790, para defender que deve ser aplicado o inciso I à filiação híbrida, garantindo-se ao companheiro uma quota igual a de todos os filhos [2]. Isto, pois, o inciso II utilizou a expressão “descendentes do autor da herança” (limitativa) ao passo que o inciso I não limitou a aplicação da regra lá prevista. Além desse argumento, deve ser lembrado que a aplicação do inciso I vai de encontro ao princípio da igualdade entre os filhos.
Podemos apontar como defensores desta corrente: CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, SILVIO VENOSA, JOSÉ FRANCISCO CAHALI, ROLF MADALENO, MARIO DELGADO, JOSÉ FERNANDO SIMÃO, RODRIGO DA CUNHA PEREIRA, JORGE FUJITA [3].

2ª CORRENTE: METADE DA QUOTA.
Defende exatamente o oposto da primeira corrente, entendendo que o dispositivo que deve regular a situação é o inciso II do art. 1.790. Desta forma, o cônjuge terá direito a uma quota correspondente à metade do quinhão que for atribuído a cada filho. Embora a solução seja diversa da 1ª corrente, também há o respeito ao princípio constitucional da igualdade entre os filhos.
Defendem esta corrente: MARIA HELENA DINZ, EUCLIDES DE OLIVEIRA, ZENO VELOSO, FLÁVIO TARTUCE e SEBASTIÃO AMORIM [4].

3ª CORRENTE: FÓRMULA MATÉMATICA
Apresentando fórmulas matemáticas alguns autores como MARIA BERENICE DIAS [5], FLÁVIO AUGUSTO MONTEIRO DE BARROS [6], GABRIELLE TUSA e FERNANDO CURI PERES, têm defendido a aplicação simultânea dos dois dispositivos. Propõem que a partir do número de filhos exclusivos e comuns seja encontrado um coeficiente que esteja dentro dos limites dos dispositivos.
Desta forma, a quota do companheiro não será igual à dos descendentes e também não será correspondente à metade. Encontra-se um coeficiente (um meio-termo) entre esses limites. Procurando elucidar a questão, apresentamos abaixo a fórmula apresentada por GABRIELLE TUSA e FERNANDO CURI PERES [7]:

X =         2 ( F + S )           .  H             (X = QUINHÃO DE CADA UM DOS FILHOS)
2 (F + S)² + 2 F + S

C =  2 F + S   . X                                   (C = QUINHÃO DO COMPANHEIRO)
2 (F + S)


LEGENDA:
X = o quinhão hereditário que caberá a cada um dos filhos
C = o quinhão hereditário que caberá ao companheiro sobrevivente.
F = o número de descendentes comuns com os quais concorra o companheiro sobrevivente.
H = o valor dos bens hereditários sobre os quais recairá a concorrência do companheiro sobrevivente.
S = o número de descendentes exclusivos com os quais concorra o companheiro sobrevivente.

Exemplificando: se uma pessoa faleceu deixando companheiro, 1 filho exclusivo, 1 filho comum e uma herança de 600 mil reais, dos quais 300 mil reais se referem a bens adquiridos onerosamente durante a união estável (1ª sub-herança) e o restante não (2ª sub-herança). Como ficará a divisão dos bens?

1ª Sub-herança: R$ 300 mil
Filho A: R$109 mil /  Filho B: R$109 mil / Companheiro: R$82 mil
2ª Sub-herança: R$ 300 mil
Filho A: R$150 mil / Filho B: R$150 mil

4ª CORRENTE: DISTINÇÃO ENTRE OS DESCENDENTES
Defende que a herança deve ser divida em dois blocos, formando-se sub-heranças, uma dos filhos comuns e outra dos filhos exclusivos. Com relação à herança dos filhos comuns, o companheiro teria uma quota igual à deles. Com relação à herança dos filhos exclusivos o companheiro receberia uma quota proporcional à metade da dos descendentes.
Em nossa opinião a solução proposta por esta corrente viola o princípio constitucional da igualdade de tratamento entre os filhos, por isto não deve ser utilizada em hipótese alguma [8].
Exemplificando: se uma pessoa faleceu deixando companheiro, 1 filho exclusivo, 1 filho comum e uma herança de 600 mil reais, dos quais 300 mil reais se referem a bens adquiridos onerosamente durante a união estável (1ª sub-herança) e o restante não (2ª sub-herança). Como fica a divisão? Neste caso a 1ª sub-herança teria que ser divida em duas partes. Vejamos:
1ª Sub-herança: R$ 150 mil (1ª parte)
Filho Comum: R$75 mil /  Companheiro: R$75 mil
1ª Sub-herança: R$ 150 mil (2ª parte)
Filho Exclusivo: R$100 mil / Companheiro R$50 mil
2ª Sub-herança: R$ 300 mil
Filho A: R$150 mil / Filho B: R$150 mil

Fonte: http://atualidadesdodireito.com.br/andrebarros/2012/02/14/artigo-reflexoes-sobre-a-concorrencia-do-companheiro-com-os-descendentes-do-falecido/