segunda-feira, 10 de junho de 2013

Anajure emite carta aberta contra resolução sobre casamento homoafetivo

A Anajure – Associação Nacional de Juristas Evangélicos emitiu carta aberta e parecer técnico jurídico de repúdio à resolução 175/13 do CNJ que obriga os cartórios de todo o país a celebrar o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.

No documento, assinado pelo presidente, Uziel Santana, e endossado pelo CDN - Conselho Deliberativo Nacional da instituição, a entidade explica que a ação é inconstitucional. "Os princípios basilares da democracia moderna, quais sejam, o da separação de poderes (...), não têm sido respeitados pelo Poder Judiciário nacional, como no caso, agora, do CNJ e a edição da resolução 175/13".

Ao final da carta, é exposto um conjunto de medidas protetivas a servidores e funcionários de cartórios, para que possam contar com o suporte jurídico da associação, fazendo uso do princípio da objeção de consciência, que se baseia na ideia de que ninguém é obrigado a cumprir uma ordem legal se isso for de encontro a um imperativo de consciência seja religioso, moral ou de outra ordem.

Veja a íntegra da carta.

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O Conselho Diretivo Nacional da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE – no uso das suas atribuições estatutárias e regimentais:
  • Considerando a publicação da Resolução Nº 175, de 14 de maio de 2013, do Presidente do Conselho Nacional de Justiça, Ministro Joaquim Barbosa, que “Dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo”;
  • Considerando a necessidade de posicionamento desta entidade em defesa do Estado Democrático de Direito, em especial do Princípio Constitucional da Separação dos Poderes;
  • Considerando o direito humano fundamental de objeção de consciência dos servidores e funcionários de Cartórios de todo o país;
  • Considerando a necessidade de orientação dos membros e líderes das igrejas cristãs brasileiras;
Emite Parecer constante desta Carta Aberta na qual, de plano, repudia, com a devida vênia, a edição da Resolução Nº 175/2013 do CNJ por ser esta formal e materialmente inconstitucional. O CNJ inovou, sem ter o respaldo, sequer, da decisão do STF na ADI 4277/DF e ADPF 132/RJ de 2011 que equiparou a união estável homossexual à união estável entre homem e mulher. Assim também, através do presente expediente a ANAJURE informa e adota medidas concernentes ao resguardo e defesa do principio da liberdade de consciência e seu corolário constitucional, o princípio da objeção de consciência, nos termos do suporte jurídico e fáctico adiante explicitados, a fim de que servidores e funcionários cartorários tenham suas liberdades civis fundamentais respeitadas. Segue o Parecer e nosso conjunto de Medidas.
1) O STF e o CNJ: um escorço histórico sobre a inconstitucionalidade e ilegitimidade da institucionalização da união e “casamento” homossexual.
Em sua obra “Juízes Legisladores” [1], o famoso jurista italiano, Mauro Cappelletti, denunciando o ativismo judicial dos atuais tempos, apresenta-nos uma citação do jurista inglês, Lord Devlin – e aqui a mencionamos a propósito desta “antecipação de consenso legislativo” que impera no Poder Judiciário brasileiro – que é digna de apreciação introdutória na presente missiva. Diz a citação do jurista inglês:
“É grande a tentação de reconhecer o judiciário como uma elite capaz de se desviar dos trechos demasiadamente embaraçados da estrada do processo democrático. Tratar-se-ia, contudo, de desviação só aparente­mente provisória; em realidade, seria ela a entrada de uma via incapaz de se reunir à estrada principal, conduzindo inevitavelmente, por mais longo e tortuoso que seja o caminho, ao estado totalitário.” (grifos nossos)
A realidade descrita nesta assertiva é exatamente a mesma que, infelizmente, estamos a viver no nosso país atualmente. Vivemos sob a égide de um processo perigoso de “judicialização do poder constituinte originário" [2]. De fato e de direito, os princípios basilares da democracia moderna, quais sejam, o da Separação de Poderes e dos Freios e Contrapesos (checks and balances), não têm sido respeitados pelo Poder Judiciário nacional, como no caso, agora, do Conselho Nacional de Justiça e a edição da Resolução Nº 175/2013.
Nos últimos tem­pos, o órgão de cúpula do Poder Judiciário nacional, o STF, tem sido provocado – por meio de ADI’s (Ações Diretas de Inconstitucionalidade) e ADPFs (Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental) – a decidir sobre questões que envolvem o complexo ideário sociocultural da denominada consciência nacional, os seus mores maiorum civitatis, aquilo que a sociedade classifica, em termos comportamentais, como o seu “belo”, o seu “bem” e a sua “verdade”. Mais que isso, o STF tem sido provocado a decidir sobre todas essas questões com implicações de ordem legiferante e mutacional (seja como “legislador” positivo, seja como “legislador” negativo, através da técnica hermenêutica de interpretação conforme) de tal modo que os mais relevantes (e por isso o termo latino mores maiorum) valores morais e padrões éticos de comportamento estabelecidos pela Nação Brasileira na Constituição Federal de 1988 estão sendo objeto de construção e desconstrução “legislativa” por uma corte formada por apenas 11 pessoas do Povo Brasileiro.
Assim, se é certo que a atual Constituição, conforme esta­belece o preâmbulo constitucional, foi formada e sedimentada em de­terminados pilares morais e éticos e “sob a proteção de Deus” – porque esta foi a vontade do legítimo proprietário do Poder Constituinte, a Nação Brasileira – também é certo que, hoje, o STF, de modo equivo­cado e autoritário, ao nosso entender, tem sido levado a desmontar e remontar a estrutura ideológica da consciência nacional que formatou a Constituição Federal de 1988 sem a devida autorização do Povo e da própria Constituição para isso. O recente caso do estabelecimento da união homossexual através do Poder Judiciário [3] e não do Poder Legislativo é um típico exemplo disso.
Evidente que a Nação Brasileira ao estabelecer a Constituição Federal por meio da As­sembleia Nacional Constituinte – expressão maior do seu Poder Constituinte Originário – não autorizou a inovação legislativa – es­pecialmente, em temas de alta complexidade moral e ética – por parte de nenhum Poder ou Órgão da República Federativa do Brasil, a não ser o Poder Legislativo da União que pode fazê-lo – tais inovações e mutações constitucionais e infraconstitucion­ais – por ser o legítimo detentor do chamado Poder Constituinte Derivado.
Este é um simples escorço histórico do que vem acontecendo no nosso país, com o crescente ativismo judicial do STF que, certamente, tem se tornado, até mesmo por pressão de determinados grupos sociais minoritários, uma espécie de “atalho legislativo”. A antítese para esta síntese é: o STF não pode dispor sobre o poder que sobre ele dispõe, qual seja, a super omnia (soberania) do povo, nos termos da Constituição Federal de 1988.
Pois bem. Não bastasse o fato de que a Suprema Corte nacional tem relativizado princípios elementares do Estado Democrático de Direito, agora, em decisão recente, o Conselho Nacional de Justiça, de igual forma, ultrapassa todos os limites da razoabilidade jurídica. Através de uma simples resolução administrativa promove, autoritariamente, alterações de ordem constitucional e infraconstitucional no sistema jurídico brasileiro, de tal modo que, além de trazer sérias implicações de ordem moral à sociedade brasileira, desrespeita, flagrantemente, a liberdade de consciência dos servidores e funcionários dos Cartórios de todo o país, vez que, nos termos do art. 2º da referida resolução “a recusa (…) implicará a imediata comunicação ao respectivo juiz corregedor para as providências cabíveis”.
De fato não há mais limites para o ativismo judicial e para a judicialização do poder constituinte originário no Brasil. A utilização da “técnica de interpretação conforme” utilizada pelo STF no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277, assim como no RESP 1.183.378 do STJ [4], é autoritária, porque inova a ordem constitucional brasileira sem ser pela via correta e democrática, qual seja, o Poder Legislativo. Não havia fundamento constitucional ou legal para o que foi feito, assim como não há no caso agora da Resolução 175 do CNJ. Neste sentido, o grande constitucionalista português J. Canotilho diz “não se aceita a interpretação conforme a Constituição, quando, pelo processo de hermenêutica, se obtiver uma regra nova e distinta daquela objetivada pelo legislador, seja em seu sentido literal ou objetivo”.
Já no caso da união gay julgado em 2011, como não havia previsão constitucional para a institucionalização da mesma, o máximo que o STF po­deria ter feito naquela ocasião era usar a técnica jurídico-constitucional alemã denominada de “apelo ao legislador” (o “Appellentscheidungen”). Esta técnica consiste em o Tribunal exortar ao legítimo representante do Povo – o Poder Legislativo – que, tendo em vista as transformações fácticas da atual realidade histórica, este deve proceder a uma determinada alteração (infra)constitucional. O Tribunal, corretamente, abstém-se, assim, de proferir a declaração de (in)constitucionalidade (ou de descumprimento de preceito fundamental), apenas apelando ao Poder competente e legítimo a procedê-lo, se assim o entender. Isso é altamente democrático. Isso é o que deveria ter feito o STF no julgamento da ADPF 132 e ADI 4277.
Como bem lembrou à época o eminente jurista Lênio Streck, em nenhum país do mundo aprovou-se a união gay via judiciário, porque isso não é matéria de jurisdição e sim de legislação. Neste sentido, sábios foram os “Le sages” do “Conseil constitutionnel de France” que, em julgamento idêntico, em janeiro do mesmo ano de 2011, numa situação jurídica exatamente semelhante a nossa no que diz respeito à união homossexual, simplesmente se limitou a dizer: “selon la loi française, le mariage est l’union d’un homme et d’une femme”. E sentenciou: “Não cabe ao Conselho Constitucional substituir seu parecer pelo do legislador” (Décision n° 2010-92 QPC du 28 janvier 2011). A democracia francesa deu um grande exemplo. Tanto é assim que só agora em 2013, via Poder Legislativo, a união gay foi aprovada, ainda que a representatividade parlamentar não se verifique no plano da correspondência com a opinião da maioria do povo francês. Mas ao menos se respeitou o procedimento correto, a via legislativa, não o atalho ao legislativo, como no caso brasileiro.
A questão atual que envolve o CNJ é ainda mais grave, porque não só se desrespeitou a Constituição Federal e o Código Civil, instituindo-se o casamento civil gay sem a devida sustentação jurídica, como também, inovou-se em relação à decisão do próprio STF que foi, tão-somente, no sentido de equiparar a união gay às uniões estáveis heterossexuais, como nova modalidade de entidade familiar.
Neste sentido, no Acórdão e Voto do Relator, o Ministro Carlos Ayres Britto, está claro que, ao contrário da Constituição de 1967 [5] que dava ênfase à constituição da instituição família via casamento civil, na CF de 1988 a ênfase – assim descrita no caput do art. 226 – é na família, podendo esta ser formada por várias modalidades, inclusive, a por pessoas do mesmo sexo, segundo a interpretação dada pelo STF no decisum de 2011. E exatamente neste sentido é que foi dada a interpretação conforme naquele julgamento. Ou seja: até mesmo no equivocado julgamento de 2011 ficou claro que ali se estava a equiparar a união estável gay com a união estável entre homem e mulher, como novos modelos de entidades familiares. Não se estava a assentir na possibilidade do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, já que, neste caso, existem óbices e requisitos legais a serem modificados pelo Poder Legislativo. Neste sentido, por exemplo, foram as divergências, quanto à fundamentação, dos Ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandovski no aludido julgamento.
O Ministro Gilmar, neste diapasão, assentiu [6]:
“É importante retomar o argumento dos limites e possibilidades de utilização, neste caso, da técnica de interpretação conforme à Constituição. É que a nossa legitimação como Corte Constitucional advém do fato de nós aplicarmos a Constituição, e Constituição enquanto norma. E, para isso, não podemos dizer que nós lemos no texto constitucional o que quisermos, há de haver um consenso básico. Por isso que essa questão é bastante sensível, porque, se abrirmos o texto constitucional, no que diz respeito a essa matéria, não vamos ter dúvida ao que se refere o artigo 226, § 3º, multicitado: ‘§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento’. Logo, a expressão literal não deixa dúvida alguma de que nós estamos a falar de ‘união estável entre homem e mulher’. A partir do próprio texto constitucional, portanto, não há dúvida em relação a isso. Por isso, a meu ver, a solução que aponte como fundamento suficiente para o caso apenas uma leitura interpretativa alargada do dispositivo mencionado seria extravagante à atuação desta Corte e em descompasso com a técnica de interpretação conforme à Constituição. É essencial que deixemos devidamente explicitados os fundamentos constitucionais que demonstram por que estamos fazendo esta leitura diante de um texto tão claro como este, em que se diz: a união estável é a união estável entre homem e mulher. E isso é relevante, diante do fato de alguns entenderem, aqui, menos do que um silêncio, um claro silêncio eloquente, no sentido de vedar o reconhecimento almejado. Portanto, parto da premissa de que aqui há outros fundamentos e direitos envolvidos, direitos de perfil fundamental associados ao desenvolvimento da personalidade, que justificam e justificariam a criação de um modelo de proteção jurídica para essas relações existentes, com base no princípio da igualdade, no princípio da liberdade, de autodesenvolvimento e no princípio da não discriminação por razão de opção sexual. Daí decorre, então, um dever de proteção. Mas é preciso mais uma vez dizer isso de forma muito clara, sob pena de cairmos num voluntarismo e numa interpretação ablativa, em que, quando nós quisermos, nós interpretamos o texto constitucional de uma ou outra maneira. Não se pode atribuir esse arbítrio à Corte, sob pena de nos deslegitimarmos.”.
E conclui a divergência:
“Por isso, neste momento, limito-me a reconhecer a existência da união entre pessoas do mesmo sexo, por fundamentos jurídicos próprios e distintos daqueles explicitados pelo Ministro Ayres Britto e, com suporte na teoria do pensamento do possível, determinar a aplicação de um modelo de proteção semelhante – no caso, o que trata da união estável –, naquilo que for cabível, nos termos da fundamentação aqui apresentada, sem me pronunciar sobre outros desdobramentos”.
Mais ainda, o próprio Ministro Joaquim Barbosa, no seu Voto, destacou que, ao assentir no reconhecimento da união homossexual, não o fazia, com fulcro no art. 226, §3º da Constituição Federal, que fala textualmente da união estável heterossexual e da facilitação desta no casamento civil. Diz o Ministro, in verbis:
“Assim, nessa ordem de idéias, eu concordo com o que foi sustentado da tribuna pelo ilustre professor Luís Roberto Barroso, isto é, creio que o fundamento constitucional para o reconhecimento da união homoafetiva não está no art. 226, § 3º da Constituição, que claramente se destina a regulamentar as uniões entre homem e mulher não submetidas aos rigores formais do casamento civil." [7]
Destarte, em nenhum momento, o STF se pronunciou no julgamento de 2011, de modo autorizativo, no tocante à admissão, sem a devida mudança legislativa, do sistema material civilista, do Casamento Civil gay. Neste sentido, é de se repudiar veementemente a inovação preconizada pela Resolução Nº 175 do Conselho Nacional de Justiça, proclamada pelo Ministro Joaquim Barbosa.
2) Sobre o decisum do RESP 1.183.378/RS do STJ (Superior Tribunal de Justiça):
Como fundamento para a edição da Res. 175/2013, o presidente do CNJ usa a decisão do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1.183.378/RS de 24/10/2011.
O referido RESP foi interposto por duas mulheres que tiveram negado, administrativamente, no Cartório, seu pedido de habilitação de casamento civil. Após ingressarem judicialmente com este pedido, elas tiveram sentença denegatória na primeira instância, sentença esta confirmada pelo egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, motivo pelo qual foi interposto Recurso Especial ao Superior Tribunal de Justiça.
No referido decisum do STJ, lavrado pelo Ministro Luis Felipe Salomão, reforma-se a decisão do TJRS no sentido de admitir a possibilidade do casamento civil gay, inobstante a sistemática atual do Código Civil.
Mas, evidentemente, que esta decisão – completamente esdrúxula e sem amparo constitucional e infraconstitucional ao nosso sentir – se aplica tão-somente às partes envolvidas no processo, não tendo eficácia erga omnes e efeito vinculante, como é o caso das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal.
Como não houve mutação legislativa, não existe, de plano, a institucionalização do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo no Brasil. Há necessidade de processo judicial encaminhado ao Juízo Estadual da Vara da Família competente, para que seja autorizado – se o juiz local assim entender – o pedido de habilitação para o casamento civil.
Assim, também este fundamento usado pelo Conselho Nacional de Justiça para instituir o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, inobstante os óbices legais, não se sustenta juridicamente.
3) Sobre o princípio constitucional da liberdade de consciência e seu corolário, o instituto da Objeção de Consciência.
Trata-se a Objeção de Consciência da possibilidade jurídica de recusa, por um indivíduo, da prática de um ato que colida frontalmente com suas convicções morais e religiosas, por imperativo categórico de sua consciência. Seria, assim, uma possibilidade de escusa de cumprimento de um dever legal baseada em princípios ou costumes de natureza e ordem religiosa, moral, filosófica e, lato sensu, ideológica. Nas palavras do jusfilósofo John Rawls [8] seria o não-cumprimento de uma injunção legal ou de uma ordem administrativa por razões de justiça e equidade. Tal possibilidade jurídica está assegurada pela nossa Constituição Federal de 1988.
Mais que isso, historicamente, este é um imperativo ético – que depois se tornou jurídico – que sempre foi utilizado, na história das sociedades, por razões fundadas na dignidade da pessoa humana e na liberdade de consciência. Os exemplos, neste sentido, desde os tempos bíblicos, são muitos. Também no chamado mundo da cultura clássica (Grécia e Roma) encontramos laivos do uso deste tipo de objeção, assim como no período medieval – especialmente, com os reformadores protestantes [9] – e na passagem para os tempos modernos, onde este instituto encontrou assento político-constitucional.
Em termos de legislação internacional ou supranacional, na Declaração Universal dos Direito do Homem (DUDH) de 1948, no art. 18, nº 1, está consagrado que “toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião”, e, como consequência disso, “a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos”. No bojo disso, temos como corolário deste dispositivo da DUDH, a objeção de consciência. Também, o nº 2, deste mesmo artigo da Declaração diz, in verbis: “ninguém pode ser objeto de pressões que atentem à sua liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma convicção da sua escolha”.
A Constituição Federal Brasileira de 1988 alude expressamente à objeção de consciência no art. 143, §1º, quando afirma: “Às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar”. Da mesma forma, estabelece em dois outros dispositivos uma espécie de cláusula geral de objeção de consciência, nos seguintes termos:
Art. 5º:
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias;
VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de confissão religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.
Destarte, nenhum servidor ou funcionário cartorário está obrigado a cumprir a Resolução nº 175/2013 do CNJ não só pelo direito humano fundamental de objeção de consciência que tem, mas também pelo fato de que, como deixamos in claris anteriormente, trata-se de uma resolução inconstitucional e mesmo ilegal.
4) Sobre o poder regulamentar do CNJ:
O STF já reconheceu em diversas oportunidades o poder regulamentar do Conselho Nacional de Justiça. Neste sentido, por exemplo: no julgamento da ADI 3.367/2005; mais recentemente o MS 27.621, onde o Plenário do Supremo Tribunal Federal considerou válido o ato do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que obrigou todos os juízes do país, com função executiva, a se cadastrarem no sistema Bacen Jud; também o MS 28.611 – que ressaltou os limites da competência do CNJ –; entre outros julgados. Ou seja, não há que se discutir o poder regulamentar do CNJ, quando se trata de regulamentação interna corporis do Poder Judiciário nacional.
Ocorre que, segundo está claramente estabelecido no art. 103-B, §4º da Constituição Federal, que trata da competência do CNJ, não se pode ampliar de tal modo, como se fez na Resolução nº 175/2013 sub examine, o poder regulamentar deste órgão de funções tipicamente administrativa. Neste sentido, está evidente que a própria CF não concedeu ao CNJ competência para, no exercício do seu poder regulamentar, extrapolar a sua função de “controle interno” do Poder Judiciário, imiscuindo-se em regular situações jurídicas que são da competência exclusiva do Poder Legislativo. Da mesma maneira, não é facultado ao CNJ, no exercício do seu poder regulamentar, imiscuir-se, mitigando, direitos individuais de natureza constitucional-fundamental.
Neste sentido, lecionam os publicistas Lenio Luiz Streck, Ingo Wolfgang Sarlet e Clemerson Merlin Clève, em clássico e insuperável artigo sobre “Os limites constitucionais das resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)" [10]:
“No Estado Democrático de Direito, é inconcebível permitir-se a um órgão administrativo expedir atos (resoluções, decretos, portarias, etc) com força de lei, cujos reflexos possam avançar sobre direitos fundamentais, circunstância que faz com que tais atos sejam ao mesmo tempo legislativos e executivos, isto é, como bem lembra Canotilho, a um só tempo ‘leis e execução de leis’.
(…)
O fato de a EC 45 estabelecer que os Conselhos podem editar atos regulamentares não pode significar que estes tenham carta branca para tais regulamentações. Os Conselhos enfrentam, pois, duas limitações: uma, stricto sensu, pela qual não podem expedir regulamentos com caráter geral e abstrato, em face da reserva de lei; outra, lato sensu, que diz respeito a impossibilidade de ingerência nos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. Presente, aqui, a cláusula de proibição de restrição a direitos e garantias fundamentais, que se sustenta na reserva de lei, também garantia constitucional. Em outras palavras, não se concebe – e é nesse sentido a lição do direito alemão – regulamentos de substituição de leis (gesetzvertretende Rechtsverordnungen) e nem regulamentos de alteração das leis (gesetzändernde Rechtsverordnungen). É neste sentido que se fala, com razão, de uma evolução do princípio da reserva legal para o de reserva parlamentar.
(…)
Portanto, as resoluções que podem ser expedidas pelos aludidos Conselhos não podem criar direitos e obrigações e tampouco imiscuir-se (especialmente no que tange à restrições) na esfera dos direitos e garantias individuais ou coletivas. O poder “regulamentador” dos Conselhos esbarra, assim, na impossibilidade de inovar. (…)Qualquer resolução que signifique inovação será, pois, inconstitucional”.
Infelizmente, ao contrario de tudo isso, o que a Resolução n.º 175/2013 do Conselho Nacional de Justiça fez foi exatamente o que prelecionam os juristas retromencionados. Em especial, apresenta-se, inconstitucionalmente, como um regulamento de substituição de leis (gesetzvertretende Rechtsverordnungen) ou mesmo como um regulamento de alteração de leis (gesetzändernde Rechtsverordnungen), invadindo, assim, sem temor ou cerimônia, a esfera de competência do Poder Legislativo. Mais ainda, avançando sobre o direito fundamental de objeção de consciência dos servidores cartorários de todo o país.
Por todas essas razões fácticas e jurídicas anteriormente explicitadas, entendemos que não merece, de fato e de direito, prosperar a Resolução nº 175/2013 do CNJ.
5) Medidas da ANAJURE para a Igreja Evangélica e os Cristãos que trabalham em Cartórios.
Ex positis, o Conselho Diretivo Nacional da ANAJURE – Associação Nacional de Juristas Evangélicos – no uso das suas atribuições estatutárias e regimentais, Resolve:
  • Aprovar Moção de Repúdio à publicação da Resolução Nº 175, de 14 de maio de 2013, do Presidente do Conselho Nacional de Justiça, Ministro Joaquim Barbosa, por entender ser esta flagrantemente inconstitucional, ilegítima e autoritária;
  • Posicionar-se publicamente em defesa do Estado Democrático de Direito e do respeito ao Princípio da Soberania Popular e ao Princípio da Separação de Poderes, basilares do Sistema Constitucional brasileiro;
  • Prestar assistência jurídica aos servidores e funcionários cristãos dos Cartórios, através da sua rede de juristas em todo o país, inclusive, a fim de que, em uma eventual ação judicial, se possa haver o Controle Difuso de Constitucionalidade da Resolução normativa editada pelo CNJ;
  • Conclamar os legitimados universais do art. 103 da Constituição Federal a fim de propor Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI – para que o Supremo Tribunal Federal exerça o devido Controle Abstrato de Constitucionalidade da Resolução normativa editada pelo CNJ. Em especial que algum Partido Político, com representação no Congresso Nacional (art. 103, VIII), faça-o por ser medida de extrema necessidade. Ou mesmo o Conselho Federal da OAB, historicamente guardião da sociedade contra os abusos do Poder Estatal, nos três níveis de poderes.
  • Enviar aos presidentes das diversas denominações evangélicas nacionais a presente Carta e Parecer a fim de orientar os líderes e igrejas no tocante aos fatos jurídicos aqui descritos e analisados.
Uziel Santana
Presidente do Conselho Diretivo Nacional
__________
Referências
[1] CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores. SAFE: Porto Alegre, 1993, p. 93.
[2] SANTANA, Uziel. “STF versus Nação Brasileira: a quem pertence o Poder Constituinte?”. In: Um Cristão do Direito num País torto. Paraíba: Editora da VINACC, 2012, p. 151-178.
[3] ADI n° 4277 e ADPF nº 132, Relatoria do Ministro Carlos Ayres Britto, julgada em maio de 2011, instituindo a união estável homossexual.
[4] Que, num caso específico, suprimiu as exigências do Código Civil para aceitar o "casamento" civil gay.
[5] O Ministro Ricardo Lewandovski em seu Voto bem acentuou que na: “i) Constituição de 1937: “Art. 124. A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. ii) Constituição de 1946: “Art. 163. A família é constituída pelo casamento de vinculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado. iii) Constituição de 1967: Art. 167. A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos. iv) Emenda Constitucional 1/1969: Art. 175. A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos” (grifos meus). A vigente Carta Republicana, todavia, não estabelece essa vinculação com o casamento para definir o conceito de família tal como o faziam as anteriores” [Conf.: STF. Coordenadoria de Análise de Jurisprudência. DJe n.º 198. Divulgação 13/10/2011. Publicação 14/10/2011. Ementário nº 2607-3, p.780-781 (http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635)].
[6] STF. Coordenadoria de Análise de Jurisprudência. DJe n.º 198. Divulgação 13/10/2011. Publicação 14/10/2011. Ementário nº 2607-3, p.780-781 (http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635)
[7] STF. Coordenadoria de Análise de Jurisprudência. DJe n.º 198. Divulgação 13/10/2011. Publicação 14/10/2011. Ementário nº 2607-3, p.780-781 (http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635)
[8] RAWLS, John. A Theory of Justice. Boston: The Belknap Press of Harvard University Press, 1971.
[9] Martinho Lutero, neste sentido, quando resistiu às inquirições e determinações da autoridade eclesiástica – na con­hecida Dieta de Worms (Wormser Reichstag), de 28/01 a 25/05 de 1521 – que lhe pressionava a se retratar do que havia escrito sobre a Igreja Católica, disse a famosa frase: “A não ser que seja persuadido por argumentos suficientes, tirados da Escritura e da razão, não posso e não desejo retratar-me; porque fazer qualquer coisa contra a consciência é arriscado e perigoso” (LUTERO, Martinho apud SCHAFF, Philip. A Liberdade Religiosa. Disponível em: . Acesso em 20 nov. 2011. p. 3.)
[10] STRECK, Lenio Luiz; SARLET, Ingo Wolfgang; CLÈVE, Clemerson Merlin. Ministério Público do Rio Grande do Sul. Disponível em: www.mp.rs.gov.br/areas/atuacaomp/anexos_noticias/cnjmp.doc‎ . Acesso em: 04/06/2013.
 
http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI180135,101048-Anajure+emite+carta+aberta+contra+a+resolucao+sobre+casamento

Outorga conjugal: a responsabilidade conjunta do casal na gestão do patrimônio

O CC/02 introduziu algumas mudanças no regime de proteção dos bens do casal. Uma delas foi a extensão para o aval da necessidade de outorga uxória ou marital, já exigida para a fiança, por exemplo.

Esse instituto é a autorização do cônjuge para atos civis do parceiro que tenham implicações significativas no patrimônio do casal. Conheça a jurisprudência do STJ sobre esse dispositivo.

Fiança em locação

O caso mais recorrente na jurisprudência é a fiança dada a locatário por um dos cônjuges sem a anuência do outro. Em regra, para a jurisprudência majoritária do STJ, esses casos geram nulidade plena da garantia. É o que retrata a súmula 332, de 2008: "A fiança prestada sem autorização de um dos cônjuges implica a ineficácia total da garantia".

Esse entendimento já era aplicado na vigência do CC/16, de que é exemplo o Agravo de Instrumento 2.798, julgado em maio de 1990. O STJ tem seguido essa linha desde então, como no REsp 1.165.837, julgado em 2011.

Boa-fé

No entanto, nesse recurso, como em outros mais recentemente, o STJ vem discutindo se a má-fé na garantia viciada pode relativizar a nulidade. Nesse caso, o fiador havia se declarado divorciado, quando na verdade era casado. Na cobrança do aluguel afiançado, seu cônjuge alegou nulidade da garantia, porque feita sem sua outorga.

O juiz entendeu que o fiador agiu de má-fé e a simples anulação por inteiro da fiança beneficiaria o garantidor, que teria agido com manifesta deslealdade contratual. Por isso, manteve a execução, reservando apenas o direito de meação do cônjuge.

O TJ manteve a decisão. No STJ, a ministra Laurita Vaz afirmou que mudar as conclusões da corte local sobre a má-fé do fiador, para afastar parcialmente o vício na fiança, exigiria reexame de provas, o que não poderia ser feito pelo Tribunal.

Mas a 5ª turma, por maioria, decidiu de forma contrária. Para os ministros, o ato do fiador poderia ser ilícito e até mesmo criminoso, mas não afastava a condição de validade do ato jurídico. Assim, sem a outorga, a fiança prestada pelo cônjuge não poderia ter qualquer eficácia jurídica. Caberia ainda ao locatário exigir e conferir os documentos que embasavam o negócio jurídico.

Junto e separado

A 6ª turma, porém, já relativizou a nulidade da fiança em caso idêntico, julgado no REsp 1.095.441. O fiador declarou-se separado, mas vivia em união estável. Na execução da garantia do aluguel, sua companheira alegou a nulidade da fiança porque não contava com sua anuência.

Para o ministro Og Fernandes, nesse caso, seria impossível aplicar a súmula, porque fazê-lo iria contrariar as conclusões fáticas das instâncias ordinárias e beneficiar o fiador que agiu com falta da verdade. Além disso, ele destacou que a meação da companheira foi garantida nas decisões impugnadas, o que afastava qualquer hipótese de contrariedade à lei.

Legitimidade

Em qualquer caso, o STJ entende que somente o cônjuge que não deu a outorga pode alegar a nulidade da fiança. Ou seja: o fiador que não buscou a anuência do cônjuge não pode alegar sua falta para eximir-se da obrigação. É o que foi decidido nos REsps 772.419 e 749.999, por exemplo.

No REsp 361.630, o STJ também entendeu que o cônjuge que não deu a autorização tem legitimidade ativa para a ação rescisória, mesmo quando não tenha integrado a ação original.

Referindo-se ainda ao CC/16, a decisão da ministra Laurita Vaz afirma que a meeira de bem penhorado para garantir execução de aluguel tem interesse jurídico – e não apenas econômico – na desconstituição do julgado.

Autorização dispensada

Por outro lado, no REsp 1.061.373, o STJ entendeu ser irrelevante a ausência de outorga conjugal no caso de o aluguel afiançado ter beneficiado a unidade familiar.

De modo similar, no AI 1.236.291, o STJ afirmou que, sob a vigência do CC/16, a garantia cambial dispensa a outorga. Assim, termo de confissão de dívida e promissória vinculada firmados antes do novo código são garantidas por aval e não fiança, dispensando a autorização.

Ainda no regime do CC/16, o STJ mitigou a exigência da autorização conjugal no REsp 900.255. Nesse caso, o Tribunal entendeu que a fiança concedida sem a participação da esposa do garantidor deveria ser validada.

Isso porque a cônjuge do fiador encontrava-se em local incerto e desconhecido havia mais de 13 anos. No recurso, a esposa, que havia abandonado o lar em 1982, questionava a penhora do imóvel – que resguardara sua meação.

A execução do aluguel em atraso teve início em 1995 e a declaração de ausência veio em 1998, após três anos da penhora e arrematação do imóvel pertencente ao casal, por terceiro de boa-fé e nos autos de execução do contrato de locação garantido pela fiança.

Solidariedade

O STJ também já entendeu que, se as instâncias ordinárias interpretaram que o contrato não trata de garantia, mas de obrigação solidária assumida pelo cônjuge, não há falar em outorga.

No REsp 1.196.639, o STJ afirmou ser impertinente a discussão sobre a autorização, já que o tribunal local negou a existência de fiança. Conforme afirmou a corte ordinária, a solidariedade a que se obrigou o cônjuge da recorrente dizia respeito a obrigação da vida civil sem qualquer restrição na lei, podendo ser praticada livremente por qualquer dos cônjuges.

Fiança e outorga

Para o STJ, a fiança deve ser ainda expressa e escrita, sendo sua interpretação restrita. Por isso, no REsp 1.038.774, o Tribunal entendeu que a mera assinatura do cônjuge no contrato não implica sua solidariedade.

Ela alegava ter assinado o ajuste apenas para fim de outorga uxória e não para se responsabilizar também pela dívida. Seu nome nem mesmo constava na cláusula contratual especificamente referente aos fiadores. O ministro Napoleão Nunes Maia Filho, que relatou o caso, citou Sílvio Venosa para esclarecer que o consentimento marital não se confunde com fiança conjunta.

"O cônjuge pode autorizar a fiança. Preenche-se desse modo a exigência legal, mas não há fiança de ambos: um cônjuge afiança e o outro simplesmente autoriza, não se convertendo em fiador", afirma o doutrinador citado.

"Os cônjuges podem, por outro lado, afiançar conjuntamente. Assim fazendo, ambos colocam-se como fiadores. Quando apenas um dos cônjuges é fiador, unicamente seus bens dentro do regime respectivo podem ser constrangidos. Desse modo, sendo apenas fiador o marido, com mero assentimento da mulher, os bens reservados desta, por exemplo, bem como os incomunicáveis, não podem ser atingidos pela fiança", conclui o civilista.

O caso julgado pelo STJ no REsp 690.401, porém, é inverso. Nele, o nome do cônjuge constava expressamente na cláusula sobre a fiança, afirmando que ambos do casal seriam "fiadores e principais pagadores, assumindo solidariamente entre si e com o locatário o compromisso de bem fielmente cumprir o presente contrato".

Testemunho e outorga

De modo similar, o STJ também entendeu que o cônjuge que apenas assina o contrato como testemunha não dá outorga conjugal de fiança. No caso analisado no REsp 1.185.982, o tribunal local afirmava que a cônjuge não podia alegar desconhecimento dos termos do contrato que testemunhara, sendo implícita a autorização para a fiança.

Porém, para a ministra Nancy Andrighi, a assinatura do cônjuge sobreposta ao campo destinado às testemunhas instrumentárias do contrato não fazem supor sua autorização para a fiança do marido. Ela apenas expressaria a regularidade formal do instrumento particular de locação firmado entre locador e afiançado. Isso não evidenciaria sua compreensão sobre o alcance da obrigação assumida pelo marido como fiador.

"A fiança é um favor prestado a quem assume uma obrigação decorrente de disposição contratual, de maneira que sempre estará restrita aos encargos expressa e inequivocamente assumidos pelo fiador. Se houver incerteza quanto a algum aspecto essencial do pacto fidejussório, como a outorga marital, não é possível proclamar a eficácia da garantia", asseverou a relatora.

Separação absoluta

No REsp 1.163.074, o STJ definiu qual regime de bens dispensa a outorga. É que o artigo que trata da autorização marital afirma que ela é dispensada no caso de separação absoluta, sem esclarecer se em tal caso se insere tanto a separação de bens consensual quanto a obrigatória, imposta por lei.

Em votação unânime, a 3ª turma entendeu que apenas o regime consensual de separação atrai a dispensa de outorga. Conforme a decisão, a separação de bens adotada por livre manifestação da vontade corresponderia a uma antecipação da liberdade de gestão dos bens de cada um, afastando qualquer expectativa de um em relação ao patrimônio do outro.

"A separação de bens, na medida em que faz de cada consorte o senhor absoluto do destino de seu patrimônio, implica, de igual maneira, a prévia autorização dada reciprocamente entre os cônjuges, para que cada qual disponha de seus bens como melhor lhes convier", explicou na ocasião o ministro Massami Uyeda, hoje aposentado.

"O mesmo não ocorre quando o estatuto patrimonial do casamento é o da separação obrigatória de bens. Nestas hipóteses, a ausência de comunicação patrimonial não decorre da vontade dos nubentes, ao revés, de imposição legal", concluiu.

Fonte: STJ
http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI180105,31047-Outorga+conjugal+a+responsabilidade+conjunta+do+casal+na+gestao+do

Decretação de ausência é solução para esposo sumido

O marido sumiu: e agora? Não há mandinga nem reza que traga de volta? Melhor se escorar nos ditames da lei.

A família veio de Mossoró, Rio Grande do Norte, em 1985. Atílio, o pai; Celiane, a mãe; Jandira e Antonio; o casal de filhos, ainda pequenos. O objetivo não era enriquecer propriamente, mas o casal queria que os filhos tivessem “um estudo melhor”. Compraram uma casa modesta na periferia de São Paulo e montaram um pequeno estabelecimento com artigos típicos do Nordeste, no mesmo bairro. Vez por outra, Atílio viajava a Mossoró, para fazer compras e abastecer a loja.

Ocorre que Mossoró cresceu muito depois dos anos 80. Ao longo das últimas décadas, tornou-se uma das principais cidades do interior nordestino, com infraestrutura para recebimento de investimentos de grande porte, com extração de petróleo e sal marinho. Essa situação trouxe oportunidades também para comerciantes menos abastados, como Atílio, especialmente no ramo imobiliário.

A loja da família na capital paulista ia bem, administrada com competência por Celiane; as crianças se mostravam bastante adaptadas e estudiosas. Assim, Atílio resolveu montar uma imobiliária em Mossoró, em sociedade com um amigo. Celiane entendeu que, no dia a dia, a única diferença seriam as viagens mais prolongadas; o marido teria de ficar mais tempo em Mossoró, pelo menos no começo, e depois eles decidiriam onde morar em definitivo.

Assim, a partir de 1995 e pelos três anos seguintes, Atílio ia e voltava. Começou a prosperar, e com o tempo os rendimentos da loja e da imobiliária cresceram. Atílio foi diminuindo as vindas para São Paulo, mas mandava dinheiro. Celiane foi mudando o perfil do seu estabelecimento, que de loja especializada em produtos do Nordeste foi se transformando em espécie de supermercado do bairro.

O ano de 1998 surpreendeu Celiane: o marido não voltou mais. Os telefones da imobiliária não atendiam; na pensão onde Atílio residia em Mossoró ninguém mais sabia dele. Celiane tentou contato com o sócio, nada conseguiu. Soube, por amigos e familiares, que ele tinha ganhado muito dinheiro e se mudado de Mossoró, mas ninguém sabia para onde. A princípio, Celiane achou que era algo passageiro, que em algum momento ele voltaria ou reapareceria em Mossoró. Não foi o que ocorreu. A esposa pensou no pior, contatou a polícia de lá; fizeram buscas. Com o tempo, a família e os amigos eram evasivos com seus pedidos de ajuda. Até que um deles disse: Celiane, acorda, mulher! Seu marido “enrabichou”.

O tempo passou, Celiane criou os meninos, hoje em dia já adultos, manteve seu estabelecimento de portas abertas, o que lhe deu sustento e vida digna. Mas sua vida ficou truncada. Ela era casada no civil com Atílio o que, entre outras tantas consequências, a impossibilitou de casar-se legalmente com outra pessoa, uma vez que não é possível se divorciar de quem sumiu sem deixar pistas. Mas um novo companheiro surgiu; os filhos estavam tomando conta dos negócios e Celiane queria deixar sua papelada em ordem. Como fazer?

Em primeiro lugar, é importante lembrar que, em casos assim, outros processos jurídicos, como reconhecimento de união estável, partilha de bens e inventário também ficam impossibilitados. O que empresta certo caráter de urgência a demandas como essa. As leis, entretanto, andam de mãos dadas com a prudência, daí não ser tão simples assim resolver uma situação dessas.

De acordo com a Constituição brasileira, o casamento só se extingue com a morte de um dos cônjuges, por anulação, ou ainda, pela separação judicial ou divórcio. Como já foi mencionado, Atílio sumiu e não há ninguém para assinar o divórcio. Anulação? Também não é o caso aqui, pois os processos de anulação se vinculam mais a questões em que um dos cônjuges comete “erro essencial”. Eu explico: uma anulação é possível quando, por exemplo, algo muito grave, que estava escondido ou camuflado antes do casamento, vem à tona e torna a vida a dois impraticável. Não é o caso de Celiane e Atílio que, inclusive, tiveram de fato vida em comum e filhos.

Então, resta a morte do cônjuge, hipótese que é a única saída para Celiane poder resolver seus impasses. Hoje em dia, o Código Civil admite a dissolução do casamento por “morte presumida”, o que não era possível, por exemplo, nas primeiras décadas do século passado, em que a “morte presumida” não era aceita como motivo para dissolução do casamento. Ou seja, se o marido sumisse, ainda que houvesse fortes suspeitas de que o marido pudesse estar morto, a esposa continuava para sempre casada com um fantasma.

Hoje em dia, a “morte presumida” é admitida como motivo para suspender as obrigações matrimoniais, mesmo quando não se sabe o paradeiro do corpo do falecido. Mas isso é admissível em casos de envolvimento em alguma grande tragédia, como incêndios, inundações ou acidente de avião. Mas será que Atílio morreu? E se ele voltar depois do sumiço de 15 anos? Essa dúvida que paira sobre o leitor é a mesma que paira sobre os juízes ao decidirem casos assim. Por isso, obter a certidão de morte presumida é extremamente difícil e moroso.

O que realmente Celiane pode fazer é ingressar com um pedido judicial para obter a “decretação de ausência”, que é concedida quando a pessoa desaparece definitivamente de sua casa, sem deixar pistas ou alguém que a represente legalmente. Mas, para isso, ela terá de provar que empreendeu esforços para encontrar o “esposo”, inclusive com buscas atuais em Mossoró. Se alguém – de lá, daqui ou de outro lugar - souber do paradeiro de Atílio, Celiane terá de entrar em contato e providenciar o divórcio. Caso contrário, ela terá de aguardar o desenrolar dos acontecimentos nos tribunais até conseguir seu intento. Parece injusto? É, parece, mas a lei pretende ser justa com todos, inclusive com quem some e deixa tudo para trás.

Ivone Zeger é advogada especialista em Direito de Família e Sucessão, integrante da Comissão de Direito de Família da OAB-SP e autora dos livros Herança: Perguntas e Respostas e Família: Perguntas e Respostas.

Revista Consultor Jurídico, 8 de junho de 2013
http://www.conjur.com.br/2013-jun-08/ivone-zeger-decretacao-ausencia-solucao-esposo-sumido

Renúncia de herança não pode prejudicar credores

A 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça manteve decisão que reconheceu fraude no ato de renúncia à herança por parte do executado. O colegiado entendeu que, se o herdeiro prejudicar seus credores, renunciando à herança, o ato será ineficaz perante aqueles com quem litiga. Por unanimidade, os ministros negaram o Recurso Especial.

No caso, o exequente alega que houve fraude, uma vez que o executado, em prejuízo de seus credores, renunciou à herança a que teria direito por causa da morte de seu filho. Para o pai, a renúncia foi um “método planejado para preservar bens” e que, enquanto o processo tramita, o executado “transfere bens, faz escritura e, enfim, procrastina”.

O juízo de primeiro grau reconheceu que houve fraude à execução e que o ato afronta a dignidade da Justiça, e com base no artigo 601 do Código de Processo Civil, arbitrou multa de 10% do valor atualizado da execução. O executado interpôs Agravo de Instrumento para o Tribunal de Justiça de São Paulo, que somente diminuiu o percentual da multa para 1%.

“Hipótese que caracteriza fraude à execução, em razão de que a ação executiva foi ajuizada em primeiro lugar, não podendo o executado, beneficiário da herança, dela abrir mão para prejudicar credores. Multa, contudo, que cabe ser reduzida para 1%”, assinalou o acórdão do TJ-SP.

Ineficácia
O relator do caso, ministro Luis Felipe Salomão, destacou em seu voto que os bens presentes e futuros do devedor respondem pelo inadimplemento da obrigação, à exceção daqueles impenhoráveis. Como é o patrimônio que garante suas dívidas, caracteriza fraude à execução a disponibilidade de bens pelo demandado, após a citação, que resulte em sua insolvência, frustrando a atuação da Justiça.

“Não se trata de invalidação da renúncia à herança, mas sim da sua ineficácia perante o credor, atingindo apenas as consequências jurídicas exsurgidas do ato. Por isso, não há cogitar das alegadas supressão de competência do juízo do inventário, anulação da sentença daquele juízo ou violação à coisa julgada”, afirmou o ministro Salomão.

Não há modo, segundo o relator, de presumir a má-fé do beneficiado pela renúncia. Mas ele ressalta que é impossível permitir o enriquecimento daquele que recebeu gratuitamente os bens do quinhão hereditário do executado, em detrimento do interesse do credor e da atividade jurisdicional da execução. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.

Revista Consultor Jurídico, 8 de junho de 2013
http://www.conjur.com.br/2013-jun-08/renuncia-heranca-nao-efeito-relacao-credores-prejudica-los