terça-feira, 27 de agosto de 2013

A Carteira (Machado de Assis)


...De repente, Honório olhou para o chão e viu uma carteira. Abaixar-se, apanhá-la e guardá-la foi obra de alguns instantes. Ninguém o viu, salvo um homem que estava à porta de uma loja, e que, sem o conhecer, lhe disse rindo:

- Olhe, se não dá por ela; perdia-a de uma vez.

- É verdade, concordou Honório envergonhado.

Para avaliar a oportunidade desta carteira, é preciso saber que Honório tem de pagar amanhã uma dívida, quatrocentos e tantos mil-réis, e a carteira trazia o bojo recheado. A dívida não parece grande para um homem da posição de Honório, que advoga; mas todas as quantias são grandes ou pequenas, segundo as circunstâncias, e as dele não podiam ser piores. Gastos de família excessivos, a princípio por servir a parentes, e depois por agradar à mulher, que vivia aborrecida da solidão; baile daqui, jantar dali, chapéus, leques, tanta cousa mais, que não havia remédio senão ir descontando o futuro. Endividou-se. Começou pelas contas de lojas e armazéns; passou aos empréstimos, duzentos a um, trezentos a outro, quinhentos a outro, e tudo a crescer, e os bailes a darem-se, e os jantares a comerem-se, um turbilhão perpétuo, uma voragem.

- Tu agora vais bem, não? dizia-lhe ultimamente o Gustavo C..., advogado e familiar da casa.

- Agora vou, mentiu o Honório.

A verdade é que ia mal. Poucas causas, de pequena monta, e constituintes remissos; por desgraça perdera ultimamente um processo, em que fundara grandes esperanças. Não só recebeu pouco, mas até parece que ele lhe tirou alguma cousa à reputação jurídica; em todo caso, andavam mofinas nos jornais.

D. Amélia não sabia nada; ele não contava nada à mulher, bons ou maus negócios. Não contava nada a ninguém. Fingia-se tão alegre como se nadasse em um mar de prosperidades. Quando o Gustavo, que ia todas as noites à casa dele, dizia uma ou duas pilhérias, ele respondia com três e quatro; e depois ia ouvir os trechos de música alemã, que D. Amélia tocava muito bem ao piano, e que o Gustavo escutava com indizível prazer, ou jogavam cartas, ou simplesmente falavam de política.

Um dia, a mulher foi achá-lo dando muitos beijos à filha, criança de quatro anos, e viu-lhe os olhos molhados; ficou espantada, e perguntou-lhe o que era.

- Nada, nada.

Compreende-se que era o medo do futuro e o horror da miséria. Mas as esperanças voltavam com facilidade. A idéia de que os dias melhores tinham de vir dava-lhe conforto para a luta. Estava com, trinta e quatro anos; era o princípio da carreira: todos os princípios são difíceis. E toca a trabalhar, a esperar, a gastar, pedir fiado ou: emprestado, para pagar mal, e a más horas.

A dívida urgente de hoje são uns malditos quatrocentos e tantos mil-réis de carros. Nunca demorou tanto a conta, nem ela cresceu tanto, como agora; e, a rigor, o credor não lhe punha a faca aos peitos; mas disse-lhe hoje uma palavra azeda, com um gesto mau, e Honório quer pagar-lhe hoje mesmo. Eram cinco horas da tarde. Tinha-se lembrado de ir a um agiota, mas voltou sem ousar pedir nada. Ao enfiar pela Rua. da Assembléia é que viu a carteira no chão, apanhou-a, meteu no bolso, e foi andando.

Durante os primeiros minutos, Honório não pensou nada; foi andando, andando, andando, até o Largo da Carioca. No Largo parou alguns instantes, - enfiou depois pela Rua da Carioca, mas voltou logo, e entrou na Rua Uruguaiana. Sem saber como, achou-se daí a pouco no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda, sem saber como, entrou em um Café. Pediu alguma cousa e encostou-se à parede, olhando para fora. Tinha medo de abrir a carteira; podia não achar nada, apenas papéis e sem valor para ele. Ao mesmo tempo, e esta era a causa principal das reflexões, a consciência perguntava-lhe se podia utilizar-se do dinheiro que achasse. Não lhe perguntava com o ar de quem não sabe, mas antes com uma expressão irônica e de censura. Podia lançar mão do dinheiro, e ir pagar com ele a dívida? Eis o ponto. A consciência acabou por lhe dizer que não podia, que devia levar a carteira à polícia, ou anunciá-la; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto, vinham os apuros da ocasião, e puxavam por ele, e convidavam-no a ir pagar a cocheira. Chegavam mesmo a dizer-lhe que, se fosse ele que a tivesse perdido, ninguém iria entregar-lha; insinuação que lhe deu ânimo.

Tudo isso antes de abrir a carteira. Tirou-a do bolso, finalmente, mas com medo, quase às escondidas; abriu-a, e ficou trêmulo. Tinha dinheiro, muito dinheiro; não contou, mas viu duas notas de duzentos mil-réis, algumas de cinqüenta e vinte; calculou uns setecentos mil-réis ou mais; quando menos, seiscentos. Era a dívida paga; eram menos algumas despesas urgentes. Honório teve tentações de fechar os olhos, correr à cocheira, pagar, e, depois de paga a dívida, adeus; reconciliar-se-ia consigo. Fechou a carteira, e com medo de a perder, tornou a guardá-la.

Mas daí a pouco tirou-a outra vez, e abriu-a, com vontade de contar o dinheiro. Contar para quê? era dele? Afinal venceu-se e contou: eram setecentos e trinta mil-réis. Honório teve um calafrio. Ninguém viu, ninguém soube; podia ser um lance da fortuna, a sua boa sorte, um anjo... Honório teve pena de não crer nos anjos... Mas por que não havia de crer neles? E voltava ao dinheiro, olhava, passava-o pelas mãos; depois, resolvia o contrário, não usar do achado, restituí-lo. Restituí-lo a quem? Tratou de ver se havia na carteira algum sinal.

"Se houver um nome, uma indicação qualquer, não posso utilizar-me do dinheiro," pensou ele.

Esquadrinhou os bolsos da carteira. Achou cartas, que não abriu, bilhetinhos dobrados, que não leu, e por fim um cartão de visita; leu o nome; era do Gustavo. Mas então, a carteira?... Examinou-a por fora, e pareceu-lhe efetivamente do amigo. Voltou ao interior; achou mais dois cartões, mais três, mais cinco. Não havia duvidar; era dele.

A descoberta entristeceu-o. Não podia ficar com o dinheiro, sem praticar um ato ilícito, e, naquele caso, doloroso ao seu coração porque era em dano de um amigo. Todo o castelo levantado esboroou-se como se fosse de cartas. Bebeu a última gota de café, sem reparar que estava frio. Saiu, e só então reparou que era quase noite. Caminhou para casa. Parece que a necessidade ainda lhe deu uns dous empurrões, mas ele resistiu.

"Paciência, disse ele consigo; verei amanhã o que posso fazer."

Chegando a casa, já ali achou o Gustavo, um pouco preocupado, e a própria D. Amélia o parecia também. Entrou rindo, e perguntou ao amigo se lhe faltava alguma cousa.

- Nada.

- Nada?

- Por quê?

- Mete a mão no bolso; não te falta nada?

- Falta-me a carteira, disse o Gustavo sem meter a mão no bolso. Sabes se alguém a achou?

- Achei-a eu, disse Honório entregando-lha.

Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado para o amigo. Esse olhar foi para Honório como um golpe de estilete; depois de tanta luta com a necessidade, era um triste prêmio. Sorriu amargamente; e, como o outro lhe perguntasse onde a achara, deu-lhe as explicações precisas.

- Mas conheceste-a?

- Não; achei os teus bilhetes de visita.

Honório deu duas voltas, e foi mudar de toilette para o jantar. Então Gustavo sacou novamente a carteira, abriu-a, foi a um dos bolsos, tirou um dos bilhetinhos, que o outro não quis abrir nem ler, e estendeu-o a D. Amélia, que, ansiosa e trêmula, rasgou-o em trinta mil pedaços: era um bilhetinho de amor.

Achado não é roubado

O insuperável Machado de Assis, no conto "A carteira", relata as angústias psicológicas do personagem Honório após achar uma carteira na rua, contendo uma considerável importância em dinheiro, suficiente para quitar uma dívida prestes a vencer. Suficiente também para dar início ao seu dilema de entregar ou não a carteira, cujo dono desconhecia até então. Acabou descobrindo que pertencia ao seu dileto amigo Gustavo que, por coincidência, encontrava-se em sua casa, conversando com sua esposa, D. Amélia. O amigo recebeu a carteira e com olhar desconfiado, como que duvidando de sua posse, não foi direto na repartição apropriada para o dinheiro e sim na vizinha, naquela que trazia os cartões, anotações e bilhetes.

Percebe-se pela narrativa machadiana que a conduta se ajustaria ao tipo penal de apropriação de coisa achada se Honório não a devolvesse ao legítimo possuidor, ou se não a entregasse à autoridade competente, no prazo de 15 dias, de acordo com o disposto no inciso II do parágrafo único do artigo 169 do Código Penal. O Código Civil é mais exigente. Além de determinar a entrega da coisa ao dono ou legítimo possuidor e se não o conhecer "o inventor fará por descobri-lo, e, quando se lhe não depare, entregará o objeto achado à autoridade competente no lugar"1. Tudo para excluir a achada de coisas perdidas de modalidade de aquisição excepcional de propriedade.

O jornal O Estado de S. Paulo2 recentemente veiculou uma notícia informando que Universidade de São Paulo estaria pleiteando a devolução das obras de arte que foram encontradas por um marceneiro no lixo da própria Instituição de ensino.

Consta na matéria jornalística que o marceneiro Antônio Luiz Góis Passos, em 2011, encontrou 15 quadros de obras de arte em uma lixeira do Departamento de Química daquela universidade. Os quadros, por si sós, não são de grande valor, mas juntos somam cerca de R$ 50 mil. São reproduções originais francesas de artistas como Edgar Degas, Maurice de Vlaminck, Maurice Utrillo, Paul Gauguin e Maurice Utrillo.

Ao perceber que os quadros seriam descartados, Antônio ainda se preocupou em procurar os responsáveis para saber se o destino daquelas obras seria realmente a caçamba. Segundo ele, nem os professores nem a Instituição queriam aqueles entulhos. Pois então, seduzido pela beleza das telas e pela simplicidade de quem sabe apreciar o belo, decidiu levá-las para sua casa, onde até hoje permanecem enfeitando suas paredes.

Após dois anos, a USP agora pretende a devolução dos quadros. Seria justo?

O senso de justiça social aponta que os quadros devem permanecer com o marceneiro. Ora, foi ele quem deu um fim digno às obras que seriam esquecidas em meio a toneladas de lixo. O raciocínio é simples: quem descarta um objeto no lixo o faz porque não precisa mais dele. Pensando assim, aplausos para Antônio que agiu de boa-fé e tornou-se legítimo possuidor das obras. O direito lhe socorre.

Primeiramente, é importante entender que os bens foram voluntariamente descartados do patrimônio da Instituição. A responsabilidade civil, em tese, seria do funcionário responsável pela ordem dada. As obras depositadas na lixeira pela instituição são consideradas coisas abandonadas, isto é, o dono não tem mais interesse em sua propriedade e a despreza, deixando-a disponível para quem tiver interesse. É a chamada res derelicta.

Assim, de antemão, é possível descartar hipótese de crime de furto, art. 155, do CP, isto porque o tipo penal pressupõe a subtração de coisa alheia. Portanto, considerando que as obras perderam seu caráter de coisa alheia no momento do descarte, não há que se falar em subtração.

E quanto ao ditado popular, "o achado não é roubado"? Inicialmente, o bem que é encontrado tem relevância no mundo jurídico, pois se pressupõe a existência de um proprietário. Trata-se da res desperdicta, ou coisa perdida. Nesta senda, podemos caminhar por dois sentidos.

De um lado, se a coisa é realmente perdida, de modo que se encontra distante de seu dono, fora de sua esfera de proteção, o sujeito que se apropria do bem incide no delito do art. 169, parágrafo único, II, do CP, que é a apropriação de coisa achada. Pelo artigo citado, constitui crime "quem acha coisa alheia perdida e dela se apropria, total ou parcialmente, deixando de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor ou de entregá-la à autoridade competente, dentro no prazo de quinze dias".

Por outro lado, caso a coisa perdida esteja ainda sob a esfera de proteção da vítima, mas essa não percebe tê-la perdido, a subtração da coisa por outrem, então, passa a configurar o delito de furto. É o caso da vítima que, sem notar, deixa sua carteira cair e o autor, vendo a cena, nada faz, esperando o melhor momento para subtrai-la.

Na mesma esteira da res derelicta caminha a res nullius, que é a coisa de ninguém. A única diferença entre elas é que a coisa abandonada um dia já teve dono, enquanto que a outra nunca teve um proprietário. Deste modo, ambas não podem ser objeto de furto. Impossível, portanto, a subtração de um bem que foi abandonado, perdido ou que nunca teve dono.

Adiante, também podemos descartar a hipótese de apropriação indébita, do artigo 168, do CP, que pressupõe que a coisa, além de ser alheia, deve estar na posse ou detenção do sujeito ativo do delito. Veja que a hipótese é incabível ao caso em tela pelo simples fato de que o bem deve ter dono – aplica-se aqui o raciocínio visto acerca da hipótese do furto.

Ainda no estudo da apropriação indébita, também é de total improcedência a segunda parte do tipo penal, pois para configuração do delito é necessário que o sujeito ativo esteja na posse ou detenção da coisa. Ficou claro pelo noticiado que os bens não estavam na posse ou detenção do marceneiro, mas sim que foram descartados como entulho e, posteriormente, por ele recolhidos.

Por fim, a conduta de Antônio melhor se enquadra na tese de atipicidade do fato, tendo em vista que as obras de arte por ele encontradas, naquele momento, não possuíam dono, ou seja, já gozavam do status de res derelicta – coisa abandonada. Tal razão exclui a hipótese de serem os quadros classificados como res desperdicta, uma vez que eles não foram achados, e sim propositadamente dispensados.

Se justo ou não, a USP agora vai tentar reaver os quadros que por ela foram abandonados. Mas, vai encontrar um obstáculo instransponível à frente: o título de propriedade de Antonio, que lhe assegura o direito de se deliciar e mirar as obras que descansam nas paredes de sua casa. Será que Degas, destacado pintor impressionista que, como Machado de Assis, dava vida a seus personagens, fazendo com que se parecessem reais, aceitaria ser despejado do lar que o abrigou?

Agora, voltando ao conto do mestre que prima pela ironia. Quer saber por quê Gustavo desconfiou quando Honório lhe entregou a carteira com o dinheiro? Justamente porque continha em seu interior bilhetes de amor que havia escrito para Da. Amélia, com quem tinha um caso...
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1 - Artigo 603 e seu parágrafo único do Código Civil.
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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado e advogado; Pedro Bellentani Quintino de Oliveira é advogado.
http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI185103,51045-Achado+nao+e+roubado