segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Brasil já adota teoria dos alimentos compensatórios



Cada casal estabelece um modo próprio de viver: a rotina da casa, a divisão das tarefas domésticas e profissionais, a educação dos filhos, a construção e administração do patrimônio, as economias. O pacto firmado por cada casal para a vida em comum é bastante peculiar.
Assim, há casais que optam por investir no desenvolvimento profissional e acadêmico de apenas um dos cônjuges, cabendo ao outro a dedicação exclusiva à família e ao gerenciamento da vida doméstica.
As circunstâncias pessoais que levam o casal a essa ou aquela opção de projeto familiar não importam, contudo, havendo a ruptura da união, essa estrutura estabelecida é bastante relevante para definir os direitos dos cônjuges para o período pós casamento. Especialmente nos casos em que um dos cônjuges renuncia as suas expectativas profissionais e, durante o casamento, não exerce atividade profissional, deixando de lado sua carreira e cuidando unicamente da família consolida-se uma enorme dependência financeira.
Diante disso, é certo que esse cônjuge, havendo o rompimento da união, não estará apto a inserir-se no mercado de trabalho nem a conquistar uma posição profissional que lhe permita ter a mesma condição econômica e social de que usufruía durante o relacionamento conjugal. O tempo e as chances de desenvolvimento profissional dificilmente serão reconquistados.
Deve-se considerar que o cônjuge habilitado profissionalmente conseguirá manter semelhante padrão social, enquanto o outro não terá a mesma possibilidade. A desigualdade profissional vivida por anos consecutivos é determinante nesse momento.
Para casos como o explicitado acima, a doutrina e a jurisprudência brasileiras têm avançado no sentido de firmar a teoria dos alimentos compensatórios como forma objetiva de compensar esse cônjuge e evitar uma brusca queda nas condições de vida em razão do fim do casamento.
Como ensina a ilustre professora doutora Regina Beatriz Tavares da Silva[1]: “Os prejuízos que são ressarcidos com a prestação compensatória advêm do enriquecimento sem causa, ou seja, do fato de um dos cônjuges, na dissolução do casamento, enriquecer-se à custa do outro, porque recebeu dele auxílio em sua ascensão profissional, e contribuiu para o seu progresso, inclusive em razão da dedicação que o outro cônjuge deu à educação dos filhos comuns, deixando de progredir na mesma medida que o devedor da prestação compensatória, ou mesmo porque, após a dissolução, o credor dessa prestação não gozará mais dos benefícios, inclusive patrimoniais do outro cônjuge”.
A denominação “alimentos compensatórios” não é a mais adequada, pois confunde-se com o conceito da pensão alimentícia convencional. Não se trata, ressalte-se, de uma pensão alimentar. Não se estão custeando as despesas de sustento e sobrevivência do outro cônjuge. O objetivo dos alimentos compensatórios é indenizar, reequilibrar, o quanto possível, a eventual disparidade econômica verificada nas condições de vida de um cônjuge em relação à do outro por ocasião do divórcio.
Mas, o que significa isso? Significa a entrega de um capital, em dinheiro ou em bens, àquele cônjuge que ficou à mercê do desempenho profissional do outro durante o período de união conjugal.
Caracterizam-se, então, os pressupostos para concessão e quantificação dos alimentos compensatórios:
I. duração do casamento;
II. idade dos cônjuges;
III. estado de saúde dos cônjuges;
IV. qualificação profissional e acadêmica dos cônjuges;
V. probabilidade de efetivo ingresso ao mercado de trabalho.
Com base nesses critérios e ainda, após uma análise acerca da situação patrimonial de cada um dos cônjuges no início da vida conjugal, bem como na constância do casamento, nas chances perdidas por cada um deles e também no que cada um deixou de ganhar ou de produzir em razão do vínculo afetivo, é que o juiz fixará o montante da indenização, tendo como escopo a compensação daquele cônjuge que agora está em evidente posição de desvantagem econômica.
A pensão compensatória é, portanto, um direito pessoal do cônjuge que, com a ruptura da vida em comum, sofre uma diminuição de seu status econômico em comparação ao que usufruía na constância do casamento. Não se busca igualar economicamente os cônjuges e sim reduzir - na medida do possível - os efeitos da alteração do padrão de vida.
O pagamento pode ser feito de uma só vez, ou mediante prestações sucessivas. Ele tem caráter nitidamente indenizatório.
No direito europeu (alemão, francês e espanhol) já está regulamentado o instituto dos alimentos compensatórios. No direito brasileiro, ainda não há legislação específica sobre o tema, mas já existem alguns casos julgados nos estados do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e em particular no Distrito Federal[2].
Entendemos que o instituto dos alimentos compensatórios tem especial e relevante aplicação quando o vínculo afetivo é desfeito após longa união e na época em que o casal já está na terceira idade, tendo um dos cônjuges se dedicado integralmente ao casamento e a criação dos filhos. Respeita-se, assim, o projeto familiar estabelecido pelo casal, bem como se promove uma segurança pessoal e patrimonial nas relações familiares.

[1] Washington de Barros Monteiro, Regina Beatriz Tavares Da Silva. Curso de Direito Civil: Direito de Família,. 42ª edição, São Paulo, Saraiva, 2012, v.2.
[2] TJ-DFT, 5ª Turma Cível, Apelação Cível 201107101.44307 APC, Relator Desembargador João Egmont, Acórdão 636.744, 23/11/2012. TJ-DFT, 6ª Turma Cível , Agravo de Instrumento 20080020195721 AGI, Relator Desembargador Jair Soares, Acórdão 361.793, 10/06/2009.

Eliette Tranjan é advogada especialista em Direito de Família e Sucessões.
Revista Consultor Jurídico, 6 de outubro de 2013
http://www.conjur.com.br/2013-out-06/eliette-tranjan-brasil-adota-teoria-alimentos-compensatorios

Parentesco natural ou civil merece amparo jurídico



Cada família tem seu direito de família, diria Jean Carbonnier (a chaque famille son droit), indicando que o direito de família não pode ser feito por normas fechadas, exigindo-se que doutrina e jurisprudência se adicionem em visão aberta que enxergue a família em seu “locus” de realizações pessoais e digna, portanto, de compreensões metajurídicas.
Assim, parentalidades são diversas, consolidadas pelo sangue (bio), pela consanguinidade com afeto (bioafetiva) e pelo trato, fama e nome, como a posse de estado de filho (socioafetiva); todas elas importando seus vínculos, o reconhecimento jurídico das situações fáticas e legais e, sobremodo, atendidas as relações entre pais e filhos como fenômenos parentais que transcendem os normativos atuais por existirem, antes de mais, como verdades concretas de realidade vividas e fundadas no valor afeto como bem jurídico.
Bem é certo que há diferenças entre a “verdade do sangue” e a “verdade do coração”, que são verdades que funcionalizam a filiação, conforme Marie-Thèrese Meldeurs em seu pioneiro artigo sobre os novos fundamentos do conceito de filiação (1972).
Impende, daí, considerar distintas (i) as filiações apenas biológicas, (ii) as filiações bioafetivas concomitantes (vínculo biológico + afetividade) e (iii) as filiações socioafetivas ocorrentes, estas últimas predominantes ou não. As primeiras estão na mera genitura, sem a função paterna exercida. Genitor é apenas quem procria. Pai é algo que acrescenta nas relações de vida.
Sucede, então, cogitar sobre a multiparentalidade quando é de admitir-se, em situações pontuais, coexistentes a parentalidade socioafetiva e a biológica (filiações plurais). Cuida-se da teoria tridimensional da filiação, em seus critérios bio-afeto-ontológicos, reconhecidos presentes a um só tempo.
A lei não oferece conceitos jurídicos de paternidade/maternidade, sequer constrói os seus estatutos próprios. Mas ao tratar da parentalidade, cuida de defini-la em seu amplo espectro, dispondo o artigo 1.593 do Código Civil que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”.
Pois bem. A parentalidade socioafetiva como modalidade de parentesco civil, sob a cláusula “outra origem”, adicionada pelo novo Código (para além dos casos de adoção) não é apenas criação jurídica da lei. Antes, recepciona a lei as situações fáticas e variadas que plasmam espécies de parentalidades, como representações suficientes de pais e filhos, que assumem-se, recíproca e conscientemente, por afeição, como se pais e filhos fossem, inexistente o jus sanguinis. Nessa toada, tais parentalidades consolidadas são reconhecidas e merecem amparo jurídico.
De fato, uma nova ordem jurídica coloca-se ao encontro das situações parentais mais diversas, onde a família apresenta-se como “a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa.” Esse conceito de família, o primeiro que se conhece ofertado pelo ordenamento jurídico nacional é o contido na Lei 11.340/2006 (artigo 5º, II) e no ponto, faz acrescentar o elemento da “vontade expressa” como novo liame familiar-parental, no plano civil. Esse significante tem sua precisão cirúrgica, definindo outros vínculos que não os meramente biológicos.
Sobrevêm situações de fato que, inexoravelmente, estão a reclamar a multiparentalidade, em seus devidos efeitos jurídicos, à luz dos dispositivos legais existentes (artigo 1.593, Código Civil; Lei 11.340, artigo 5º, II), conforme as variantes de cada situação concreta. Vejamos hipóteses:
(i) A indução a erro daquele que registra suposto filho, sob a crença de ser o pai biológico por si só não pode macular o vinculo socioafetivo do pai registral, consolidado ao longo do tempo; a tanto permiti-lo defende-lo frente ao pai biológico quando este ciente da condição que lhe tenha sido até então sonegada;
(ii) Mesmo na ausência de ascendência genética, o registro feito de forma consciente, consolida a filiação socioafetiva. Essa circunstância opera-se quando o companheiro da mãe solteira registra o filho trazido por ela. Essa relação de fato deve ser reconhecida e amparada juridicamente. “Isso porque a parentalidade que nasce de uma decisão espontânea, deve ter guarida no Direito de Família” (STJ - 3ª Turma, RESp. 1.259.460-SP. Relatora Ministra Nancy Andrighi, j. em 19 de junho de 2012);
(iii) Filiações ectogenéticas, na espécie dos filhos havidos por inseminação artificial heteróloga, onde por ficção legal é genitor o marido da mulher (artigo 1.597, inciso V; do Código Civil), configuram este também como pai socioafetivo. Ao pai biológico (doador do esperma), a multiparentalidade pode ocorrer quando em face do reconhecimento da identidade genética por direito personalíssimo do filho, ocorram relações parentais também afetivas.
(iv) Posse errada de filho (troca de recém-nascidos), apurada ao depois, onde a filiação socioafetiva consolidada não cede e não haverá de prejudicar a biológica.
A família multiparental, formada por filiações plurais, já existe na jurisdição prestada. São significativos os julgados:
(i) 11/2011: a juíza Deisy Cristhian Lorena de Oliveira Ferraz, da 1ª Vara Cível da Comarca de Ariquemes, em Rondônia, declarou a dupla paternidade admitindo em registro o pai biológico que passou a se relacionar com a filha adolescente, mantendo o do pai registral e socioafetivo (Processo 0012530-95.2010.8.22.0002),
(ii) 10/2012: Acórdão da 1ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça, onde Relator o desembargador Alcides Leopoldo e Silva Jr., determinou o registro de um jovem com os nomes de seu pai biológico, de sua mãe biológica e de sua madrasta, como mãe socioafetiva (AC 0006422-26.2011.8.26.0286; DJESP 11/10/2012).
(iii) 08/2013: decisão da juíza Carine Labres, da Comarca de São Francisco de Assis (RS) admitiu pedido da madrasta e das crianças enteadas, em ação declaratória de maternidade, sem excluir o nome da mãe biológica do registro.
Bem de ver dos julgados que a multiparentalidade tem sido admitida, para todos os fins legais, podendo ser concomitante ou sucessiva, mas em todos os casos voluntária e não imposta.
De outro lado, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, definiu no voto do ministro relator Luís Felipe Salomão que a filiação socioafetiva desenvolvida com os pais registrais não afasta os direitos do filho resultantes da filiação biológica: certo que “a paternidade biológica gera, necessariamente, uma responsabilidade não evanescente”.
Parentalidade múltipla em todos os ditames é espiritual antes de jurídica, no melhor sentido canônico, como a de José, marido de Maria, que teve como filho socioafetivo o próprio filho de Deus. Por isso mesmo, pai é aquele que se a(pai)xona.
Disso é feita a multiparentalidade, pela fortuna de espírito de quem possui, por dádiva de vida, mais de um pai ou uma mãe. Direitos sucessórios de ambos? Sim, porque essa fortuna será sempre menor que aquela. Afinal, quem herda do procriador (herança de sangue, sem afeto), por lógica jurídica pode cumular heranças dos pais, cujos vínculos maiores da bioafeição e socioafeição o tornaram mais afortunado.

Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e coordenador da Comissão de Magistratura de Família. Autor de obras jurídicas de direito civil e processo civil. Integra a Academia Pernambucana de Letras Jurídicas (APLJ).

Revista Consultor Jurídico, 6 de outubro de 2013
 http://www.conjur.com.br/2013-out-06/jones-figueiredo-parentalidade-socioafetiva-merecem-amparo-juridico