terça-feira, 8 de outubro de 2013

Conclusão sobre princípios do contrato (Paulo Lôbo)



Os princípios sociais dos contratos ingressaram no novo Código Civil uma década após o advento do Código de Defesa do Consumidor e quase um século de concepção e vigência do anterior Código Civil, cuja ideologia liberal e oitocentista tornou-se incompatível com a ideologia constitucionalmente estabelecida desde a Carta de 1934, quando se inicia o Estado social brasileiro. Ao longo do século XX a convivência da Constituição social com o Código liberal gerou impasses e contradições, cujo fosso foi aprofundado com o Código de Defesa do Consumidor, com a distinção que se impôs entre contratos comuns civis e mercantis e contratos de consumo (a grande maioria). Aos primeiros, a difícil aplicação dos princípios sociais dos contratos deveu-se ao esforço argumentativo de parte da doutrina voltada à constitucionalização do direito civil, cujo principal postulado reside na eficácia imediata e prevalecente das regras e princípios constitucionais sobre o direito infraconstitucional, que melhor reproduzem os valores existentes na sociedade no seu momento histórico.
A introdução explícita dos princípios sociais do contrato no novo Código Civil chega com atraso de várias décadas e, por ironia da história, quando se fala em crise do Estado social. Parece, contudo, que a regulação da atividade econômica, para conter ou controlar os abusos dos poderes privados, é uma conquista que as sociedades organizadas não pretendem abrir mão. Sobretudo quando se assiste ao crescimento da concentração empresarial e de capital e da vulnerabilidade das pessoas que não detêm poder negocial, principalmente ante a utilização massiva de contratos de adesão a condições gerais unilateralmente predispostas.
Os princípios individuais ou liberais do contrato (liberdade de contratar, pacta sunt servanda e relatividade subjetiva) afirmaram a liberdade individual, contribuindo para o controle dos poderes públicos, mas foram insuficientes para controlar os abusos dos poderes privados.
Por essa razão, assumiu de importância no Estado social a consideração da vulnerabilidade em que se encontram as pessoas em certas situações negociais. A vulnerabilidade jurídica vai além da debilidade econômica da parte contratante, pois interessa o poder negocial dominante, ou seja, aquela que se presume em posição de impor sua vontade e seu interesse à outra. A presunção é definida em lei, como se dá com o consumidor, no CDC, e com o aderente, no novo é Código Civil. A presunção é absoluta e não pode ser contrariada pela consideração do caso concreto. O consumidor e o aderente, ricos ou pobres, são juridicamente vulneráveis, pois submetidos ao poder negocial da outra parte.
Os três princípios sociais dos contratos (função social, equivalência material e boa-fé objetiva) são comuns a todos os contratos, ainda quando não se configure o poder negocial dominante. Porém, nas hipóteses em que há presunção legal de sua ocorrência, alguns princípios complementares adquirem autonomia e com eles se equiparam. Tal se dá com os princípios da vulnerabilidade e da informação, nas relações de consumo, os quais, no plano geral, desdobram os princípios da equivalência material e da boa-fé. No direito do consumidor ainda se cogita do princípio da razoabilidade que atuaria como condição e limite dos princípios da equivalência material e da vulnerabilidade; a defesa do consumidor e a interpretação favorável vão até os limites da razoabilidade.
A compreensão que se tem hoje dos princípios sociais do contrato não é mais de antagonismo radical aos princípios individuais, pois estes como aqueles refletiram etapas da evolução do direito e do Estado moderno. No Estado social os princípios individuais são compatíveis quando estão limitados e orientados pelos princípios sociais, cuja prevalência se dá quando não são harmonizáveis.

LÔBO, Paulo. Princípios contratuais. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3750, 7 out. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25359>. Acesso em: 8 out. 2013.

Princípio da boa fé objetiva nos contratos em geral (Paulo Lôbo)



A boa-fé objetiva é regra de conduta dos indivíduos nas relações jurídicas obrigacionais. Interessam as repercussões de certos comportamentos na confiança que as pessoas normalmente neles depositam[8]. Confia-se no significado comum, usual, objetivo da conduta ou comportamento reconhecível no mundo social. A boa-fé objetiva importa conduta honesta, leal, correta. É a boa-fé de comportamento.
A boa-fé objetiva não é princípio dedutivo, não é argumentação dialética; é medida e diretiva para pesquisa da norma de decisão, da regra a aplicar no caso concreto, sem hipótese normativa pré-constituída[9], mas que será preenchida com a mediação concretizadora do intérprete-julgador.
O novo Código Civil brasileiro (art. 422) refere-se a ambos os contratantes do contrato comum civil ou mercantil, não podendo o princípio ser aplicado preferencialmente ao devedor, neste caso segundo a regra contida no art. 242 do Código Civil alemão. Nas relações de consumo, todavia, ainda que o inciso III do art. 4º do CDC cuide de aplicá-lo a consumidores e fornecedores, é a estes que ele se impõe, principalmente, em virtude da vulnerabilidade daqueles. Por exemplo, no que concerne à informação o princípio da boa-fé volta-se em grande medida ao dever de informar do fornecedor.
Além dos tipos legais expressos de cláusulas abusivas o Código de Defesa do Consumidor fixou a boa-fé como cláusula geral de abertura, que permite ao aplicador ou intérprete o teste de compatibilidade das cláusulas ou condições gerais dos contratos de consumo. No inciso IV do art. 51 a boa-fé, contudo, a boa-fé está associada ou alternada com a eqüidade (“...com a boa-fé ou a eqüidade”), a merecer consideração. No que respeita aos princípios do contrato a eqüidade não se concebe autonomamente, mas como critério de heterointegração tanto do princípio da boa-fé quanto do princípio da equivalência material. O juízo de eqüidade conduz o juiz às proximidades do legislador, porém limitado à decidibilidade do conflito determinado na busca do equilíbrio dos poderes contratuais. Apesar de trabalhar com critérios objetivos, com standards valorativos, a eqüidade é entendida no sentido aristotélico da justiça do caso concreto. O juiz deve partir de critérios definidos referenciáveis em abstrato não os podendo substituir por juízos subjetivos de valor.
Por seu turno, o art. 422 do Código Civil de 2002 associou ao princípio da boa-fé o que denominou de princípio da probidade (“... os princípios da probidade e boa-fé”).  No direito público a probidade constitui princípio autônomo da Administração Pública, previsto explicitamente no art. 37 da Constituição, como “princípio da moralidade” a que se subordinam todos agentes públicos. No direito contratual privado, todavia, a probidade é qualidade exigível sempre à conduta de boa-fé. Quando muito seria princípio complementar da boa-fé objetiva ao lado dos princípios da confiança, da informação e da lealdade. Pode dizer-se que não há boa-fé sem probidade.
Outro ponto relevante, em que se nota certa aproximação entre os dois códigos, é o dos limites objetivos do princípio da boa-fé nos contratos. A melhor doutrina tem ressaltado que a boa-fé não apenas é aplicável à conduta dos contratantes na execução de suas obrigações mas aos comportamentos que devem ser adotados antes da celebração (in contrahendo) ou após a extinção do contrato (post pactum finitum). Assim, para fins do princípio da boa-fé objetiva  são alcançados os comportamentos do contratante antes, durante e após o contrato. O Código de Defesa do Consumidor avançou mais decisivamente nessa direção, ao incluir na oferta toda informação ou publicidade suficientemente precisa (art. 30), ao impor o dever ao fornecedor de assegurar ao consumidor cognoscibilidade e compreensibilidade prévias do conteúdo do contrato (art. 46), ao tornar vinculantes os escritos particulares, recibos e pré-contratos (art. 48) e ao exigir a continuidade da oferta de componentes e peças de reposição, após o contrato de aquisição do produto (art. 32).
O novo Código Civil não foi tão claro em relação aos contratos comuns, mas, quando se refere amplamente à conclusão e à execução do contrato, admite a interpretação em conformidade com o atual estado da doutrina jurídica acerca do alcance do princípio da boa fé aos comportamentos in contrahendo  e post pactum finitum. A referência à conclusão deve ser entendida como abrangente da celebração e dos comportamentos que a antecedem, porque aquela decorre destes. A referência à execução deve ser também entendida como inclusiva de todos os comportamentos resultantes da natureza do contrato. Em suma, em  se tratando de boa-fé, os comportamentos formadores ou resultantes de outros não podem ser cindidos. 

LÔBO, Paulo. Princípios contratuais. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3750, 7 out. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25359>. Acesso em: 8 out. 2013.

Princípio da equivalência material (Paulo Lôbo)



O princípio da equivalência material busca realizar e preservar o equilíbrio real de direitos e deveres no contrato, antes, durante e após sua execução, para harmonização dos interesses. Esse princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual, seja para manter a proporcionalidade inicial dos direitos e obrigações, seja para corrigir os desequilíbrios supervenientes, pouco importando que as mudanças de circunstâncias pudessem ser previsíveis. O que interessa não é mais a exigência cega de cumprimento do contrato, da forma como foi assinado ou celebrado, mas se sua execução não acarreta vantagem excessiva para uma das partes e desvantagem excessiva para outra, aferível objetivamente, segundo as regras da experiência ordinária. O princípio clássico pacta sunt servanda passou a ser entendido no sentido de que o contrato obriga as partes contratantes nos limites do equilíbrio dos direitos e deveres entre elas.
No novo Código Civil o princípio teve introdução explícita nos contratos de adesão. Observe-se, todavia, que o contrato de adesão disciplinado pelo Código Civil tutela qualquer aderente, seja consumidor ou não, pois não se limita a determinada relação jurídica como a de consumo.
Esse princípio abrange o princípio da vulnerabilidade jurídica de uma das partes contratantes, que o Código de Defesa do Consumidor destacou.
O princípio da equivalência material rompe a barreira de contenção da igualdade jurídica e formal, que caracterizou a concepção liberal do contrato. Ao juiz estava vedada a consideração da desigualdade real dos poderes contratuais ou o desequilíbrio de direitos e deveres, pois o contrato fazia lei entre as partes, formalmente iguais, pouco importando o abuso ou exploração da mais fraca pela mais forte.
O princípio da equivalência material desenvolve-se em dois aspectos distintos: subjetivo e objetivo. O aspecto subjetivo leva em conta a identificação do poder contratual dominante das partes e a presunção legal de vulnerabilidade. A lei presume juridicamente vulneráveis o trabalhador, o inquilino, o consumidor, o aderente de contrato de adesão. Essa presunção é absoluta, pois não pode ser afastada pela apreciação do caso concreto. O aspecto objetivo considera o real desequilíbrio de direitos e deveres contratuais que pode estar presente na celebração do contrato ou na eventual mudança do equilíbrio em virtude de circunstâncias supervenientes que levem a onerosidade excessiva para uma das partes.

LÔBO, Paulo. Princípios contratuais. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3750, 7 out. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25359>. Acesso em: 8 out. 2013.

Princípio da função social do contrato (Paulo Lôbo)



O princípio da função social determina que os interesses individuais das partes do contrato sejam exercidos em conformidade com os interesses sociais, sempre que estes se apresentem. Não pode haver conflito entre eles pois os interesses sociais são prevalecentes. Qualquer contrato repercute no ambiente social, ao promover peculiar e determinado ordenamento de conduta e ao ampliar o tráfico jurídico.
Para Miguel Reale o contrato nasce de uma ambivalência, de uma correlação essencial entre o valor do indivíduo e o valor da coletividade. “O contrato é um elo que, de um lado, põe o valor do indivíduo como aquele que o cria, mas, de outro lado, estabelece a sociedade como o lugar onde o contrato vai ser executado e onde vai receber uma razão de equilíbrio e medida”[6].
No período do Estado liberal a inevitável dimensão social do contrato era desconsiderada para que não prejudicasse a realização individual, em conformidade com a ideologia constitucionalmente estabelecida; o interesse individual era o valor supremo, apenas admitindo-se limites negativos gerais de ordem pública e bons costumes, não cabendo ao Estado e ao direito considerações de justiça social.
A função exclusivamente individual do contrato é incompatível com o Estado social, caracterizado, sob o ponto de vista do direito, como já vimos, pela tutela explícita da ordem econômica e social na Constituição. O art. 170 da Constituição brasileira estabelece que toda a atividade econômica – e o contrato é o instrumento dela – está submetida à primazia da justiça social. Não basta a justiça comutativa que o liberalismo jurídico entendia como exclusivamente aplicável ao contrato[7]. Enquanto houver ordem econômica e social haverá Estado social; enquanto houver Estado social haverá função social do contrato.
Com exceção da justiça social, a Constituição não se refere explicitamente à função social do contrato. Fê-lo em relação à propriedade, em várias passagens, como no art.170, quando condicionou o exercício da atividade econômica à observância do  princípio da função social da propriedade. A propriedade é o segmento estático da atividade econômica, enquanto o contrato é seu segmento dinâmico. Assim, a função social da propriedade afeta necessariamente o contrato, como instrumento que a faz circular. 
Tampouco o Código de Defesa do Consumidor o explicitou, mas não havia necessidade porquanto ele é a própria regulamentação da função social do contrato nas relações de consumo.
No Código Civil de 2002 a função social surge relacionada à “liberdade de contratar”, como seu limite fundamental. A liberdade de contratar, ou autonomia privada, consistiu na expressão mais aguda do individualismo jurídico, entendida por muitos como o toque de especificidade do direito privado. São dois princípios antagônicos que exigem aplicação harmônica. No Código a função social não é simples limite externo ou negativo mas limite positivo, além de determinação do conteúdo da liberdade de contratar. Esse é o sentido que decorre dos termos “exercida em razão e nos limites da função social do contrato” (art. 421).
O princípio da função social é a mais importante inovação do direito contratual comum brasileiro e, talvez, a de todo o novo Código Civil. Os contratos que não são protegidos pelo direito do consumidor devem ser interpretados no sentido que melhor contemple o interesse social, que inclui a tutela da parte mais fraca no contrato, ainda que não configure contrato de adesão. Segundo o modelo do direito constitucional, o contrato deve ser interpretado em conformidade com o princípio da função social.
O princípio da função social do contrato harmoniza-se com a modificação substancial relativa à regra básica de interpretação dos negócios jurídicos introduzida pelo art. 112 do Código Civil de 2002, que abandonou a investigação da intenção subjetiva dos figurantes em favor da declaração objetiva, socialmente aferível, ainda que contrarie aquela.

LÔBO, Paulo. Princípios contratuais. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3750, 7 out. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25359>. Acesso em: 8 out. 2013.