É comum vermos
reviews de filmes, sejam bons ou ruins, tais como
O Retorno de Jedi,
O Retorno da Múmia,
O Retorno de Goku e Seus Amigos.
Mas no Poder Legislativo o
review de projetos de lei, com a utilização de casas diversas do Congresso Nacional, é chocante e lamentável.
Deveria
haver mais respeito pelo Poder Legislativo brasileiro, evitando-se a
apresentação de projeto com roupagem diferente, mas com o mesmo
conteúdo, por uma das casas do Congresso, quando o mesmo projeto está em
tramitação na outra.
Dever-se-ia aguardar a tramitação do projeto
na casa de origem para, desde que ali aprovado, após sua remessa à
outra casa, haver o exame das proposições legislativas.
É um
descrédito para o Legislativo que um projeto de lei, como o chamado
Estatuto das Famílias, apoiado pelo IBDFAM (Instituto Brasileiro de
Direito de Família), tenha sido apresentado no Senado, em 12/11/2013,
sob o n. 470/2013, embora esteja em tramitação na Câmara dos Deputados,
onde teve início sob o n. 2.285/2007, posteriormente apensado ao PL
674/2007.
Note-se que, quando esse PL chegou à Comissão de
Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara, quis-se atribuir-lhe
apreciação conclusiva, o que foi obstado por quatro recursos de
parlamentares. Portanto, o PL Estatuto das Famílias está sujeito à
deliberação do Plenário da Câmara dos Deputados, na conformidade de seu
Regimento Interno (Resolução n. 17/1989).
Portanto dever-se-ia
aguardar que as proposições constantes do PL Estatuto das Famílias
fossem para a Mesa, com a sua inclusão em pauta do Plenário da Câmara
dos Deputados.
No entanto, esse mesmo projeto de lei, com as
mesmas atrocidades propositivas, foi apresentado como de autoria da
Senadora Lídice da Mata (PSB-BA) – portanto, de iniciativa do Senado
Federal, em 12/11/2013, sob o n. 470/2013, com idêntico apoio do IBDFAM.
Isso
nos leva a ter de retomar os esclarecimentos necessários para que os
nobres membros do Congresso Nacional não sejam levados a erro.
Foi
o que fizemos no PL n. 2.285/2007, apensado ao PL 674/2007, também
denominado Estatuto das Famílias, de iniciativa da Câmara dos Deputados,
participando de Audiência Pública e apresentando Parecer que foi
aprovado pelo Conselho do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP,
entre outras manifestações .
Vamos lá, novamente, no que podemos chamar de
O Retorno do PL Estatuto das Famílias.
Esse
projeto de lei n. 470/2013, em seu art. 303, pretende substituir todo o
Livro do Direito de Família do Código Civil brasileiro (Lei
10.406/2002).
Aí começam as falhas, porque não se deram ao
trabalho, seus elaboradores, de apresentar conjuntamente outro projeto
sobre o Livro do Direito das Sucessões. Já que o Direito de Família é
uma das partes do Direito Civil, ligada ao Direito das Sucessões, como
se pode tentar substituir o primeiro sem querer alterar o segundo?
Mas
os malefícios do PL Estatuto das Famílias são muito maiores e seu texto
é incorrigível, já que parte de premissas individualistas e, portanto,
materialistas, aparentemente baseadas em afeto, que é sentimento e não
valor jurídico. Passemos a apontar algumas dessas desastrosas
proposições.
Bigamia
Esse PL propõe que as denominadas relações paralelas, expressão
enganosa porque suaviza seu conteúdo de relações extraconjugais ou
mancebia, sejam alçadas ao patamar de entidade familiar.
Assim,
consta do título das Entidades Familiares, art. 14, caput e parágrafo
único, que “As pessoas integrantes da entidade familiar têm o dever
recíproco de assistência, amparo material e moral, sendo obrigadas a
concorrer, na proporção de suas condições financeiras e econômicas, para
a manutenção da família.” Parágrafo único. “A pessoa casada, ou que
viva em união estável, e que constitua relacionamento familiar paralelo
com outra pessoa, é responsável pelos mesmos deveres referidos neste
artigo, e, se for o caso, por danos materiais e morais.”
Quer o
tal PL institucionalizar a poligamia em nosso país. Para perpetrar esse
plano, o PL tenta iludir com a outra proposição de que o duplo casamento
seria nulo, ou seja, de que, diante da bigamia, o segundo casamento não
valha (art. 1.516, § 3º).
Quem tem um senso mínimo de
conhecimentos gerais, nem mesmo precisam ser jurídicos, sabe que a
bigamia – duplo casamento – é raríssima. No entanto, algo que não é tão
incomum, é a mancebia, a relação extraconjugal, a manutenção de amante
fora do casamento ou da união estável.
Assim, a amante ou o amante
(coloquemos por educação as “senhoras” antes) terá direito à pensão
alimentícia e poderá ainda requerer reparação dos danos morais e
materiais que o amásio ou a amásia lhe tenha causado. Quiçá porque a
amante ou o amante não tenha recebido igual tratamento econômico que a
família oriunda do casamento ou da união estável do respectivo amásio ou
amásia.
Afinal, propõe esse PL que tudo possa ser reconhecido
como entidade familiar, ao prever no art. 3º que “É protegida a família
em qualquer de suas modalidades e as pessoas que a integram”, sendo
confundida a dignidade, que não é um conceito que cada um forja como
quer, com a dignidade da pessoa humana protegida pela Constituição da
República Federativa do Brasil (art. 1º, III), ao dizer, aquele PL, no
art. 4º que “Todos os integrantes da entidade familiar devem ser
respeitados em sua dignidade pela família, sociedade e Estado”,
completando no art. 5º que “Constituem princípios fundamentais para a
interpretação e aplicação deste Estatuto... a afetividade;... a
convivência familiar;... a igualdade das entidades familiares... o
direito à busca da felicidade e ao bem- estar”.
Ora, tudo pela
felicidade, individualista, egoísta, perversa, que passa como um trator
sobre os anseios da sociedade e sobre os valores da família brasileira,
que quer atender os desejos de poucos, sem qualquer representatividade
da maioria.
O PL Estatuto das Famílias chega ao cúmulo, nas suas
justificativas, de argumentar que “A realidade social subjacente obriga a
todos, principalmente a quem se dedica ao seu estudo, a pensar e
repensar o ordenamento jurídico para que se aproxime dos anseios mais
importantes das pessoas”.
Desde quando é anseio social no Brasil
que as relações conjugais ou de união estável admitam relações
paralelas, ou seja, a mancebia? Vê-se, facilmente, que esse PL distorce o
pensamento social e quer enfiar “goela abaixo” de nosso ordenamento
legal a poligamia.
Quem recebe um trio formado por duas mulheres e
um homem ou por dois homens e uma mulher em sua casa e lhe diz, venha,
sente-se e coma à minha mesa? Ditado que bem representa e resume o que
queremos mostrar. Esse tipo de relação paralela, seja consentida ou não
consentida, não é aceita pela sociedade e deve assim também ser
repudiada pela legislação e por todas as formas de expressão do direito.
Mas
não para por aí. Também é prevista a família pluriparental. Na
proposição do art. 69, § 2º: “Família pluriparental é a constituída pela
convivência entre irmãos, bem como as comunhões afetivas estáveis
existentes entre parentes colaterais”.
Nas famílias chamadas
recompostas, o padrasto e a madrasta têm direitos e deveres perante os
enteados, compartilhando da autoridade dos pais, conforme art. 70 desse
PL. Esses padrastos e madrastas passarão a ter o dever de pagar pensão
alimentícia aos enteados, em complementação ao sustento que já lhes deem
seus pais ou suas mães, conforme prevê o art. 74 do PL. No art. 90, §
3º, o PL é retomada a mesma proposição, no sentido de que “O cônjuge ou
companheiro de um dos pais pode compartilhar da autoridade parental em
relação aos enteados, sem prejuízo do exercício da autoridade parental
do outro”.
Multiparentalidade, é o que pretende esse PL, com
incentivo ao ócio, porque se um jovem tem duas fontes pagadoras de
alimentos (pai e padrasto, por exemplo), por qual razão esforçar-se-ia a
trabalhar? Incentivo ao ócio também porque a mãe de uma criança ou
adolescente sustentada por dois homens concomitantemente (pai e
padrasto), pela natureza humana, que cultiva ainda que no íntimo de seu
ser, a preguiça, ficaria sem incentivo a buscar recursos para auxiliar
no sustento do filho.
Incentivo ao desafeto, igualmente, porque
uma pessoa em sã consciência evitará unir-se a quem tenha filhos, porque
poderá ser apenado com o pagamento de pensão alimentícia aos jovens que
não são seus filhos caso se separe da mãe desses menores.
Sem
falar da absurda proposição de atribuir estado civil às uniões estáveis,
que são uniões fáticas e que, exatamente por isso, não têm o atributo
do estado civil, o que sequer exige maiores digressões, para que se
verifique como há distorções nesse PL.
Vamos agora à presunção da
paternidade, que se propõe ocorra no casamento, na união estável e em
qualquer convivência entre a mãe e o suposto pai. Propõe o art. 82, I,
que sejam havidos como filhos “os nascidos durante a convivência dos
genitores à época da concepção”. Assim, até mesmo em relação eventual,
sem estabilidade e sem certeza na paternidade, o que infelizmente é
natural face às liberdades existentes nos costumes de nossos já
excessivamente “alegres” dias, o homem será presumidamente havido como
pai da criança e para que esse vínculo se desfaça caberá a ele promover
ação de contestação da paternidade; enquanto essa ação tem andamento –
moroso ou até mesmo suspenso o processo por poder absoluto do juiz
previsto no art. 149 -, esse homem, se não for pai desse filho, prestará
pensão alimentícia ao rebento. E, também, na família chamada paralela o
amante será havido como pai do filho da amásia. Tudo um despautério!
O
review de
O Grande Gatsby,
que retrata a sociedade dos idos de 1920, com suas perversões, nos
induz a fazer a comparação com o retorno das proposições legislativas
constantes do PL Estatuto das Famílias, não pela qualidade incontestável
do referido filme, mas pela deturpação familiar que esse projeto
acarretará na sociedade, que viverá quiçá ao estilo dos personagens do
filme, com excessivo materialismo e completa imoralidade, em meio à
lascívia e à perdição.
Afinal, por ser inconstitucional e
desqualificado em suas proposições, inclusive em termos técnicos
legislativos, o PL Estatuto das Famílias está mais para
O Retorno de Goku e Seus Amigos, para não dizer
O Retorno da Múmia.
Como
se não bastasse, os pais e as mães sofreriam diminuição do poder
familiar perante os filhos, não só por ter de dividi-lo com o padrasto
ou a madrasta dos menores, mas também porque segundo o art. 104 desse
PL, “O direito à convivência pode ser estendido a qualquer pessoa com
quem a criança ou o adolescente mantenha vínculo de afetividade”.
O
que é afeto, algo de natureza evidentemente subjetiva e, portanto,
individual, em que se pretende embasar todas as normas sobre direito de
família? Esse PL trata efetivamente de afeto ou de devassidão nas
relações familiares?
Como já afirmamos em relação ao mesmo PL
denominado “Estatuto das Famílias”, que tramita, ou melhor, está bem
“adormecido” na Câmara dos Deputados, com algumas diferenças
redacionais, mas com o mesmo conteúdo e os mesmos objetivos, essas
proposições legislativas agora de iniciativa do Senado deveriam ser
chamadas de “PL de Destruição da Família” (Curso de Direito Civil:
Direito de Família, em coautoria com Washington de Barros Monteiro. 42ª
ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 31).
Apontaremos em breve outras
tantas perversidades propositivas à família brasileira que são
realizadas por esse PL denominado Estatuto das Famílias.
Regina Beatriz Tavares da Silva é pós-Doutora em
Direito da Bioética pela FDUL- Portugal, doutora e mestre em Direito
Civil pela FADUSP, conselheira do IASP e advogada e sócia fundadora da
Regina Beatriz Tavares da Silva Sociedade de Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 19 de novembro de 2013
http://www.conjur.com.br/2013-nov-19/regina-tavares-silva-estatuto-familias-retoma-proposicoes-desastrosas