segunda-feira, 31 de março de 2014

As cotas para negros: por que mudei de opinião (William Douglas)

Roberto Lyra, Promotor de Justiça, um dos autores do Código Penal de 1940, ao lado de Alcântara Machado e Nelson Hungria, recomendava aos colegas de Ministério Público que "antes de se pedir a prisão de alguém deveria se passar um dia na cadeia". Gênio, visionário e à frente de seu tempo, Lyra informava que apenas a experiência viva permite compreender bem uma situação.
Quem procurar meus artigos, verá que no início era contra as cotas para negros, defendendo - com boas razões, eu creio - que seria mais razoável e menos complicado reservá-las apenas para os oriundos de escolas públicas. Escrevo hoje para dizer que não penso mais assim. As cotas para negros também devem existir. E digo mais: a urgência de sua consolidação e aperfeiçoamento é extraordinária.
Embora juiz federal, não me valerei de argumentos jurídicos. A Constituição da República é pródiga em planos de igualdade, de correção de injustiças, de construção de uma sociedade mais justa. Quem quiser, nela encontrará todos os fundamentos que precisa. A Constituição de 1988 pode ser usada como se queira, mas me parece evidente que a sua intenção é, de fato, tornar esse país melhor e mais decente. Desde sempre as leis reservaram privilégios para os abastados, não sendo de se exasperarem as classes dominantes se, umas poucas vezes ao menos, sesmarias, capitanias hereditárias, cartórios e financiamentos se dirigirem aos mais necessitados.
Não me valerei de argumentos técnicos nem jurídicos dado que ambos os lados os têm em boa monta, e o valor pessoal e a competência dos contendores desse assunto comprovam que há gente de bem, capaz, bem intencionada, honesta e com bons fundamentos dos dois lados da cerca: os que querem as cotas para negros, e os que a rejeitam, todos com bons argumentos.
Por isso, em texto simples, quero deixar clara minha posição como homem, cristão, cidadão, juiz, professor, "guru dos concursos" e qualquer outro adjetivo a que me proponha: as cotas para negros devem ser mantidas e aperfeiçoadas. E meu melhor argumento para isso é o aquele que me convenceu a trocar de lado: "passar um dia na cadeia". Professor de técnicas de estudo, há nove anos venho fazendo palestras gratuitas sobre como passar no vestibular para a EDUCAFRO, pré-vestibular para negros e carentes.
Mesmo sendo, por ideologia, contra um pré-vestibular "para negros", aceitei convite para aulas como voluntário naquela ONG por entender que isso seria uma contribuição que poderia ajudar, ou seja, aulas, doação de livros, incentivo. Sempre foi complicado chegar lá e dizer minha antiga opinião contra cotas para negros, mas fazia minha parte com as aulas e livros. E nessa convivência fui descobrindo que se ser pobre é um problema, ser pobre e negro é um problema maior ainda.
Meu pai foi lavrador até seus 19 anos, minha mãe operária de "chão de fábrica", fui pobre quando menino, remediado quando adolescente. Nada foi fácil, e não cheguei a juiz federal, a 350.000 livros vendidos e a fazer palestras para mais de 750.000 pessoas por um caminho curto, nem fácil. Sei o que é não ter dinheiro, nem portas, nem espaço. Mas tive heróis que me abriram a picada nesse matagal onde passei. E conheço outros heróis, negros, que chegaram longe, como Benedito Gonçalves, Ministro do STJ, Angelina Siqueira, juíza federal. Conheço vários heróis, negros, do Supremo à portaria de meu prédio.
Apenas não acho que temos que exigir heroísmo de cada menino pobre e negro desse país. Minha filha, loura e de olhos claros, estuda há três anos num colégio onde não há um aluno negro sequer, onde há brinquedos, professores bem remunerados, aulas de tudo; sua similar negra, filha de minha empregada, e com a mesma idade, entrou na escola esse ano, escola sem professores, sem carteiras, com banheiro quebrado. Minha filha tem psicóloga para ajudar a lidar com a separação dos pais, foi à Disney, tem aulas de Ballet. A outra, nada, tem um quintal de barro, viagens mais curtas. A filha da empregada, que ajudo quanto posso, visitou minha casa e saiu com o sonho de ter seu próprio quarto, coisa que lhe passou na cabeça quando viu o quarto de minha filha, lindo, decorado, com armário inundado de roupas de princesa.
Toda menina é uma princesa, mas há poucas das princesas negras com vestidos compatíveis, e armários, e escolas compatíveis, nesse país imenso. A princesa negra disse para sua mãe que iria orar para Deus pedindo um quarto só para ela, e eu me incomodei por lembrar que Deus ainda insiste em que usemos nossas mãos humanas para fazer Sua Justiça. Sei que Deus espera que eu, seu filho, ajude nesse assunto. E se não cresse em Deus como creio, saberia que com ou sem um ser divino nessa história, esse assunto não está bem resolvido. O assunto demanda de todos nós uma posição consistente, uma que não se prenda apenas à teorias e comece a resolver logo os fatos do cotidiano: faltam quartos e escolas boas para as princesas negras, e também para os príncipes dessa cor de pelé.
Não que tenha nada contra o bem estar da minha menina: os avós e os pais dela deram (e dão) muito duro para ela ter isso. Apenas não acho justo nem honesto que lá na frente, daqui a uma década de desigualdade, ambas sejam exigidas da mesma forma. Eu direi para minha filha que a sua similar mais pobre deve ter alguma contrapartida para entrar na faculdade. Não seria igualdade nem honesto tratar as duas da mesma forma só ao completarem quinze anos, mas sim uma desmesurada e cruel maldade, para não escolher palavras mais adequadas.
Não se diga que possamos deixar isso para ser resolvido só no ensino fundamental e médio. É quase como não fazer nada e dizer que tudo se resolverá um dia, aos poucos. Já estamos com duzentos anos de espera por dias mais igualitários. Os pobres sempre foram tratados à margem. O caso é urgente: vamos enfrentar o problema no ensino fundamental, médio, cotas, universidade, distribuição de renda, tributação mais justa e assim por diante. Não podemos adiar nada, nem aguardar nem um pouco.
Foi vendo meninos e meninas negros, e negros e pobres, tentando uma chance, sofrendo, brilhando nos olhos uma esperança incômoda diante de tantas agruras, que fui mudando minha opinião. Não foram argumentos jurídicos, embora eu os conheça, foi passar não um, mas vários "dias na cadeia". Na cadeia deles, os pobres, lugar de onde vieram meus pais, de um lugar que experimentei um pouco só quando mais moço. De onde eles vêm, as cotas fazem todo sentido.
Se alguém discorda das cotas, me perdoe, mas não devem faze-lo olhando os livros e teses, ou seus temores. Livros, teses, doutrinas e leis servem a qualquer coisa, até ao nazismo. Temores apenas toldam a visão serena. Para quem é contra, com respeito, recomendo um dia "na cadeia". Um dia de palestra para quatro mil pobres, brancos e negros, onde se vê a esperança tomar forma e precisar de ajuda. Convido todos que são contra as cotas a passar conosco, brancos e negros, uma tarde num cursinho pré-vestibular para quem não tem pão, passagem, escola, psicólogo, cursinho de inglês, ballet, nem coisa parecida, inclusive professores de todas as matérias no ensino médio.
Se você é contra as cotas para negros, eu o respeito. Aliás, também fui contra por muito tempo. Mas peço uma reflexão nessa semana: na escola, no bairro, no restaurante, nos lugares que freqüenta, repare quantos negros existem ao seu lado, em condições de igualdade (não vale porteiro, motorista, servente ou coisa parecida). Se há poucos negros ao seu redor, me perdoe, mas você precisa "passar um dia na cadeia" antes de firmar uma posição coerente não com as teorias (elas servem pra tudo), mas com a realidade desse país.
Com nossa realidade urgente. Nada me convenceu, amigos, senão a realidade, senão os meninos e meninas querendo estudar ao invés de qualquer outra coisa, querendo vencer, querendo uma chance.
Ah, sim, "os negros vão atrapalhar a universidade, baixar seu nível", conheço esse argumento e ele sempre me preocupou, confesso. Mas os cotistas já mostraram que sua média de notas é maior, e menor a média de faltas do que as de quem nunca precisou das cotas. Curiosamente, negros ricos e não cotistas faltam mais às aulas do que negros pobres que precisaram das cotas. A explicação é simples: apesar de tudo a menos por tanto tempo, e talvez por isso, eles se agarram com tanta fé e garra ao pouco que lhe dão, que suas notas são melhores do que a média de quem não teve tanta dificuldade para pavimentar seu chão. Somos todos humanos, e todos frágeis e toscos: apenas precisamos dar chance para todos.
Precisamos confirmar as cotas para negros e para os oriundos da escola pública. Temos que podemos considerar não apenas os deficientes físicos (o que todo mundo aceita), mas também os econômicos, e dar a eles uma oportunidade de igualdade, uma contrapartida para caminharem com seus co-irmãos de raça (humana) e seus concidadãos, de um país que se quer solidário, igualitário, plural e democrático. Não podemos ter tanta paciência para resolver a discriminação racial que existe na prática: vamos dar saltos ao invés de rastejar em direção a políticas afirmativas de uma nova realidade.
Se você não concorda, respeito, mas só se você passar um dia conosco "na cadeia". Vendo e sentindo o que você verá e sentirá naquele meio, ou você sairá concordando conosco, ou ao menos sem tanta convicção contra o que estamos querendo: igualdade de oportunidades, ou ao menos uma chance. Não para minha filha, ou a sua, elas não precisarão ser heroínas e nós já conseguimos para elas uma estrada.
Queremos um caminho para passar quem não está tendo chance alguma, ao menos chance honesta. Daqui a alguns poucos anos, se vierem as cotas, a realidade será outra. Uma melhor. E queremos você conosco nessa história.
Não creio que esse mundo seja seguro para minha filha, que tem tudo, se ele não for ao menos um pouco mais justo para com os filhos dos outros, que talvez não tenham tido minha sorte. Talvez seus filhos tenham tudo, mas tudo não basta se os filhos dos outros não tiverem alguma coisa. Seja como for, por ideal, egoísmo (de proteger o mundo onde vão morar nossos filhos), ou por passar alguns dias por ano "na cadeia" com meninos pobres, negros, amarelos, pardos, brancos, é que aposto meus olhos azuis dizendo que precisamos das cotas, agora.
E, claro, financiar os meninos pobres, negros, pardos, amarelos e brancos, para que estudem e pelo conhecimento mudem sua história, e a do nosso país comum pois, afinal de contas, moraremos todos naquilo que estamos construindo.
Então, como diria Roberto Lyra, em uma de suas falas, "O sol nascerá para todos. Todos dirão - nós - e não - eu. E amarão ao próximo por amor próprio. Cada um repetirá: possuo o que dei. Curvemo-nos ante a aurora da verdade dita pela beleza, da justiça expressa pelo amor."
Justiça expressa pelo amor e pela experiência, não pelas teses. As cotas são justas, honestas, solidárias, necessárias. E, mais que tudo, urgentes. Ou fique a favor, ou pelo menos visite a cadeia.

 Fonte: http://www.folhasocial.com/2013/11/as-cotas-para-negros-por-que-mudei-de.html

sábado, 29 de março de 2014

Caracterização do dano moral pela psicologia aplicada


(...)

7. Lesão à psique

Nosso trabalho está baseado na abordagem Freudiana para definir a profundidade das marcas ocasionadas pelos fatos que podem arranhar as relações sociais, comerciais e ainda aquelas que são passíveis de apreciação do poder judiciário na busca de uma reparação.
A psique de Sigmund Freud estabelece-se pela subjetividade humana como águas onde somente o próprio indivíduo pode navegar, e, portanto deixando aparentemente hermético seu conteúdo.Se assim considerado, o conteúdo da mente humana, a psique, somente poderia ser observada pelo próprio ser, o que faria impossível qualquer avaliação das lesões não patrimoniais intentadas contra o indivíduo e que conseqüentemente afetam sua dignidade e subjetividade sem vínculos de proteção civil relacionada ao patrimônio.
Porém, há que se lembrar do patrimônio intelectual, aquele formado pelas experiências e sensações vividas por um ser e que podem ser únicas e irrepetíveis do sentido leigo, e cuja reposição jamais poderiam ser reconstruídas. Freud desenvolveu mecanismos de acesso a esse espaço mental que precipuamente necessita ser avaliado para estabelecer caminho seguro ou minimamente passível de apreciação para que confrontado ao fato gerador da insatisfação, esta possa ser medida em sua profundidade e para tanto, a psicanálise pode ser também ferramenta para investigar a mente humana que busca reparação judicial.

7.1. Lesão do Ego

Primeiramente, havemos de conceituar o ego estabelecido por Freud, para então passarmos a analisar a modalidade de entendimento da sua aplicabilidade como forma de mensurar a profundidade de certa lesão moral. Assim, temos que o Ego é a parte do aparelho psíquico que está em contato com a realidade externa.
O Ego se desenvolve a partir do Id, à medida que a pessoa vai tomando consciência de sua própria identidade, vai aprendendo a aplacar as constantes exigências do Id. Como a casca de uma árvore, o Ego protege o Id, mas extrai dele a energia suficiente para suas realizações. Ele tem a tarefa de garantir a saúde, segurança e sanidade da personalidade. Uma das características principais do Ego é estabelecer a conexão entre a percepção sensorial e a ação muscular, ou seja, comandar o movimento voluntário. Ele tem a tarefa de auto preservação. Com referência aos acontecimentos externos, o Ego desempenha sua função dando conta dos estímulos externos, armazenando experiências sobre eles na memória, evitando o excesso de estímulos internos (mediante a fuga), lidando com estímulos moderados (através da adaptação) e aprendendo, através da atividade, a produzir modificações convenientes no mundo externo em seu próprio benefício.

7.2. Lesão do Id

O Id contém tudo o que é herdado, que se acha presente no nascimento e está presente na constituição, acima de tudo os instintos que se originam da organização somática e encontram expressão psíquica sob formas que nos são desconhecidas[6].
O Id é a estrutura da personalidade original, básica e central do ser humano, exposta tanto às exigências somáticas do corpo às exigências do ego e do superego. As leis lógicas do pensamento não se aplicam ao Id, havendo assim, impulsos contrários lado a lado, sem que um anule o outro, ou sem que um diminua o outro. [7] O Id seria o reservatório de energia de toda a personalidade.O Id pode ser associado a um cavalo cuja força é total, mas que depende do cavaleiro para usar de modo adequado essa força. Os conteúdos do Id são quase todos inconscientes, eles incluem configurações mentais que nunca se tornaram conscientes, assim como o material que foi considerado inaceitável pela consciência. Um pensamento ou uma lembrança, excluído da consciência, mas localizado na área do Id, será capaz de influenciar toda vida mental de uma pessoa.A lesão ao Id é sempre mais profunda, vez que infere golpe aos valores de base de cada ser, daquilo que carrega consigo somando ações da vida comum e do senso de ética e razão para pautar-lhe o caminho da ética e da sublimação da sociedade em detrimento da individualidade nociva, mas sem que se perca a sensibilidade de percebermos, o Judiciário também, que é a soma dos Ids que deve se sobrepor aos Egos.

8. Conclusão

O Ego é referenciado como a parte do ser que se preocupa com a externalidade de si.
Uma lesão ao Ego difere basicamente da lesão ao Id no que tange aos valores e princípios protegidos, vez que somos a somatória do Ego e do Id, porém, mais de nós é o Id, pois coincide com a nossa essência, com aquilo que realmente somos ou queremos ser em prol de um mundo melhor.
A qualidade de vida está intimamente ligada a esta equação de Egos e Ids feridos e frustrados, na medida em que damos mais valor a um que a outro. À essência e a superficialidade, o mero aborrecimento e o dano moral, ou dano à moral derivada do Id, da estrutura básica de cada ser humano e que o direito precisa proteger fortemente, caso contrário, corre-se o risco de valorização exacerbada do Ego em detrimento do Id de uma sociedade que precisa e merece ser mais Id que Ego.
Ao magistrado, caberia distinguir a parte da psique lesada para que obtivesse rapidamente uma ferramenta prática e útil para definir a lesão como rasa ou profunda, Ego ou Id.Temos ainda que após tal distinção, fica claro ao sol que as lesões de ordem moral quando restritas ao Ego, poderiam ser classificadas como aquelas derivadas do mero aborrecimento, das frustrações do cotidiano, reparáveis pelas próprias atitudes subseqüentes ao dissabor.
Enquanto aquelas ações que ferem a essência, o conteúdo psicológico de cada ser, o seu Id, onde residem valores morais não mutáveis facilmente e que são levados em cada alma ferida e portanto, passíveis de reparação indenizatória pelo dano moral causado.

AMORIM, Eduardo Cesar Elias de. Caracterização do dano moral pela psicologia aplicada. Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 3922, 28 mar. 2014. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/27141>. Acesso em: 29 mar. 2014.

segunda-feira, 24 de março de 2014

É preciso definir a função do Supremo Tribunal Federal

O Supremo Tribunal Federal é o órgão de cúpula do Poder Judiciário. Essa frase, tão repetida e acatada, está de tal modo assimilada pela cultura jurídica brasileira, que chega a ser acaciano iniciar com ela esta coluna do Observatório Constitucional.
Entretanto, o óbvio pode suscitar questionamentos, as platitudes nunca são plenamente estremes de dúvidas. O que significa, afinal, dizer que o STF é o órgão de cúpula do Poder Judiciário? Tal pergunta requer, para uma adequada resposta, a compreensão prévia do que se entende por Poder Judiciário; o que pode ser sintetizado na obra clássica — e ainda muito atual — de Pedro Lessa, Do Poder Judiciário, de 1915:
“§ 1º. O poder judiciário é o que tem por missão aplicar contenciosamente a lei a casos particulares.
A três se reduzem os principais caracteres distintivos do poder judiciário: 1º as suas funções são as de um árbitro; para que possa desempenhá-las, importa que surja um pleito, uma contenda; 2º só se pronuncia acerca de casos particulares, e não em abstrato sobre normas ou preceitos jurídicos, e ainda menos sobre princípios; 3º não tem iniciativa, agindo – quando provocado, o que é mais uma conseqüência da necessidade de uma contestação para poder funcionar”.[1]
Assim, dizer que o STF é o órgão de cúpula do Poder Judiciário é afirmar que tal tribunal, impondo-se sobre os demais, tem a função de, de modo definitivo, aplicar contenciosamente a lei a casos particulares, observando que, para repetir as palavras de Pedro Lessa, deve haver uma contenda a ser arbitrada, deve levar em consideração casos particulares e deve ser provocado.
Qualquer pessoa que acompanha o dia a dia do Supremo e o desenvolvimento de sua jurisprudência pode perceber, sem maiores reflexões, que essa descrição do órgão de cúpula do Poder Judiciário não é a mais adequada, não é a que expressa com mais acuidade a atual quadra vivida pelo mais importante órgão jurisdicional brasileiro.
O Supremo Tribunal Federal cada vez mais abandona sua função de árbitro máximo das contendas particulares, nas quais discussões específicas são travadas, para adquirir um perfil de definidor de padrões amplos e abstratos de conduta, a serem seguidos por uma generalidade de pessoas e não somente pelas partes de um determinado processo.
É verdade que esse movimento se iniciou há muito, desde a regulamentação mais ampla da antiga representação de inconstitucionalidade e, depois, com o incremento do modelo abstrato de controle de constitucionalidade promovido pela Constituição de 1988.
Entretanto, ainda que temperado por esses institutos, a função do Tribunal permanecia a de órgão de cúpula do Poder Judiciário, resolvendo as controvérsias concretas que lhe eram submetidas pelas partes.
Prova disso é o rol de competências previsto no artigo 102 da Constituição Federal, que majoritariamente contempla atribuições típicas de um órgão judiciário nos termos expostos por Pedro Lessa em 1915.
De alguns anos para cá, porém, a ênfase da Corte foi alterada. Aquelas competências, que se apresentam como majoritárias no rol do artigo 102, transformaram-se em melancólicas minorias nas pautas de julgamento do Plenário do Supremo. As sessões do Pleno (com específicas exceções, como a da AP 470) são cada vez mais voltadas para as funções hoje consideradas pelos ministros como mais nobres, quais sejam, as funções de controle concentrado e abstrato, que caracterizariam o Supremo Tribunal Federal como o Tribunal Constitucional brasileiro.
Esse novo padrão de atuação fez com que a doutrina mitigasse a afirmação tradicional de que o STF é o órgão de cúpula do Poder Judiciário. André Ramos Tavares, por exemplo, afirma que o Supremo Tribunal Federal é o “órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro, exercendo, em tempo parcial, as funções próprias de um tribunal constitucional, já que também desempenha as funções de tribunal comum, resolvendo litígios concretos”.[2]
Tal análise é a projeção, na doutrina, do fato de que o STF se autoproclama como o Tribunal Constitucional brasileiro, como a Corte Constitucional a guardar o texto de 1988.
Essa constatação já basta para colocar em xeque a afirmação com que se iniciou — de modo supostamente óbvio — este artigo. Isso porque é sabido que um dos traços próprios dos tribunais constitucionais é sua autonomia. Kelsen registra que o órgão encarregado de exercer a jurisdição constitucional deve ser independente de “qualquer outra autoridade estatal”[3], inclusive do Poder Judiciário.
Esse aspecto da construção teórica do modelo de tribunal constitucional fica claro na seguinte análise de Roger Stiefelmann Leal:
“A primeira característica básica dos Tribunais Constitucionais reside na sua própria autonomia em relação aos demais poderes do Estado. (...) O Tribunal Constitucional deve, portanto, compor uma magistratura independente do aparato jurisdicional ordinário e das estruturas dos demais poderes. Nesse sentido, configura um poder autônomo, distinto e organicamente independente do Poder Legislativo, do Poder Executivo e do Poder Judiciário. É este, segundo Favoreu, o atributo que diferencia um Tribunal Constitucional de um Tribunal Supremo de última instância”.[4]
Assim, quando o STF se afirma Corte Constitucional, apresenta-se como estranho ao Poder Judiciário. E estando alheio ao Poder Judiciário, está também alheio aos limites tradicionais desse poder, expressos nos caracteres arrolados por Pedro Lessa.
A análise dos julgados nos quais o STF se intitula Corte Constitucional é prova desse movimento de descolamento entre o Poder Judiciário e seu pretenso órgão de cúpula. A simples leitura dos precedentes em que o Supremo se põe expressamente como Tribunal Constitucional demonstra, de ordinário, a ocorrência de situação em que algum aspecto da tradicional função jurisdicional está sendo desvirtuado.
Isso pode ser verificado, por exemplo, no acórdão do Mandado de Injunção 708, (rel. min. Gilmar Mendes, DJ de 31/10/2008), por meio do qual o Supremo instaurou um regime jurídico genérico para a greve dos servidores públicos;[5] ou em decisões que admitem a manifestação de amici curiae nos processos de controle concentrado de constitucionalidade.[6]
É evidente que, nesse último caso, extrapolando o limite das partes, o Tribunal busca a articulação de um consenso legitimador de suas decisões. Exatamente porque essas decisões — agora gerais e abstratas — precisam da mesma legitimação que caracteriza as decisões gerais e abstratas tomadas pelo Poder responsável pela construção do consenso, qual seja, o Legislativo. Isso fica patente na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.677 (rel. min. Gilmar Mendes, DJ 12/06/2006.[7]
Exatamente por atuar em função análoga à do Parlamento, o STF — em sua face Tribunal Constitucional — deve buscar os instrumentos legitimadores da atividade parlamentar, e os amici curiae parcialmente cumpririam essa tarefa, assim como cumpririam essa função as audiências públicas, previstas no artigo 9º da Lei 9.868/1999.
O STF também se apresenta como Tribunal Constitucional quando afirma o efeito vinculante de suas decisões[8], afastando-se de suas tradicionais funções de Corte Suprema.
A produção do Parlamento, dentro da lógica da tripartição clássica, orienta a atuação dos demais poderes, já que o Executivo aplica a lei de ofício e o Judiciário contenciosamente. A lei, portanto, é naturalmente vinculante.
O Tribunal Constitucional, afastando-se da missão típica do Judiciário, que é aplicar a lei contenciosamente, também produz provimentos que devem gozar da mesma força vinculante da lei. Mais uma vez aqui, o Tribunal Constitucional, por estar fora do Poder Judiciário, tem poderes estranhos ao Poder Judiciário.
Por outro lado, cabe lembrar que a via processual mais importante da Suprema Corte — enquanto verdadeiro órgão de cúpula do Poder Judiciário — adquiriu contornos novos, no que se tem chamado de “objetivação do recurso extraordinário”.
Esse fenômeno é perceptível na repercussão geral, introduzido no ordenamento constitucional pela Emenda 45, de 2004.[9] Com o advento desse instituto, não é mais a demanda particular e concreta que importa para o STF quando do julgamento do recurso extraordinário, mas sim características objetivamente consideradas na controvérsia dos autos, as quais permitem identificar sua repercussão geral. O provimento jurisdicional no extraordinário passa a ser um provimento geral e abstrato, que repercute, nas instâncias inferiores, em todos os casos análogos. E essa repercussão automática já é, certamente, um ensaio de um efeito vinculante a ser reconhecido nas decisões proferidas em recurso extraordinário.
E tanto o provimento é geral e abstrato com força similar à de lei, que o STF — também nos casos de repercussão geral — busca a legitimação de suas decisões por meio da admissão de manifestações de amici curiae.[10]
Mesmo fora da dinâmica da repercussão geral, já há discussões no Supremo acerca dos efeitos das decisões em controle difuso de constitucionalidade. Exemplo disso é a tese, defendida pelo ministro Gilmar Mendes, de que o artigo 52, X, da Constituição Federal não mais se aplica, tendo ocorrido verdadeiro desuetudo. A perda da eficácia da norma declarada inconstitucional em controle difuso decorreria do próprio provimento do STF e não mais seria necessária a manifestação do Senado Federal.[11]
Esse entendimento demonstra como a lógica exorbitante do Tribunal Constitucional tem invadido as funções da Suprema Corte, afastando o STF cada vez mais de sua posição de órgão de cúpula do Poder Judiciário.
Entretanto, o Supremo continua a se apresentar como órgão de cúpula do Poder Judiciário. E o faz, principalmente, na defesa de questões institucionais suas e na defesa dos interesses corporativos da magistratura.
É verdade que a expressão “órgão de cúpula do Poder Judiciário” tem rareado nas decisões do Supremo Tribunal Federal. Uma pesquisa no site do STF demonstrará que, nos últimos anos, foi a expressão utilizada num único julgado de destaque.
Cuida-se da ADI 3.367 (rel. min. Cezar Peluso, DJ de 22/09/2006, por meio da qual a AMB questionou a constitucionalidade da criação, pela EC 45/2004, do Conselho Nacional de Justiça.
O STF afirmou, nesse julgado, que a existência de um órgão de controle do Poder Judiciário não afeta a separação de poderes, mas que o poder do Conselho não se aplica ao próprio STF.[12] A redação do artigo 103-B não permite, com o devido respeito, essa conclusão. Todo o Poder Judiciário deveria ser alvo do controle efetuado pelo CNJ; e a presença de um ministro do STF na sua presidência poderia ser tomada, inclusive, como uma tentativa de legitimação do conselho em sua atuação perante a Suprema Corte.
Mas o Tribunal Constitucional brasileiro, no exercício de uma de suas funções típicas, julgando uma ação direta, atribuiu-se a condição de órgão de cúpula do Poder Judiciário, exatamente para afirmar que não é Poder Judiciário para fins de fiscalização do Conselho Nacional de Justiça.
Trata-se da decretação expressa de sua libertação, de sua autonomia em relação ao Poder Judiciário, que continua — como Poder do Estado — submetido ao CNJ. Ou seja, a retórica do “órgão de cúpula” serviu exatamente para afirmar uma característica do modelo clássico do Tribunal Constitucional, sua autonomia institucional em relação à jurisdição ordinária.
Nesse contexto, é possível afirmar que, do ponto de vista de modelos ideais, há uma indefinição na atuação do STF, cujo perfil institucional varia, conforme a oportunidade, entre o Tribunal Constitucional e o “órgão de cúpula do Poder Judiciário”.
E nessa indefinição, as discussões acerca do aprimoramento do modelo brasileiro de controle de constitucionalidade ganham relevo, como adquirem dimensão as propostas de emenda à Constituição que revisam do papel do STF; em debate que necessariamente acrescentará um ponto de interrogação à frase que abre este artigo: o Supremo Tribunal Federal é o órgão de cúpula do Poder Judiciário?
Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio). 

[1] Pedro Lessa. Do Poder Judiciário, edição fac-similar, Brasília: Senado Federal, 2003, p. 1.
[2] André Ramos Tavares. “Supremo Tribunal Federal”. Dicionário brasileiro de direito constitucional, Dimitri Dimoulis (coordenador-geral), São Paulo: Saraiva – Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais, 2007, p. 370.
[3] Hans Kelsen. “A garantia jurisdicional da constituição”. Jurisdição constitucional, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 150.
[4] Roger Stiefelmann Leal. O efeito vinculante na jurisdição constitucional, São Paulo: Saraiva, 2006, p. 59-60.
[5] Lê-se no acórdão em questão: “3.3. Tendo em vista as imperiosas balizas jurídico-políticas que demandam a concretização do direito de greve a todos os trabalhadores, o STF não pode se abster de reconhecer que, assim como o controle judicial deve incidir sobre a atividade do legislador, é possível que a Corte Constitucional atue também nos casos de inatividade ou omissão do Legislativo”.
[6] “A admissão de terceiro, na condição de amicus curiae, no processo objetivo de controle normativo abstrato, qualifica-se como fator de legitimação social das decisões da Suprema Corte, enquanto Tribunal Constitucional, pois viabiliza, em obséquio ao postulado democrático, a abertura do processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade, em ordem a permitir que nele se realize, sempre sob uma perspectiva eminentemente pluralística, a possibilidade de participação formal de entidades e de instituições que efetivamente representem os interesses gerais da coletividade ou que expressem os valores essenciais e relevantes de grupos, classes ou estratos sociais. Em suma: a regra inscrita no art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99 - que contém a base normativa legitimadora da intervenção processual do amicus curiae - tem por precípua finalidade pluralizar o debate constitucional” (ADI nº 2.130-MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 02.02.2001).
[7] “Essa construção jurisprudencial sugere a adoção de um modelo procedimental que ofereça alternativas e condições para permitir, de modo cada vez mais intenso, a interferência de uma pluralidade de sujeitos, argumentos e visões no processo constitucional. Essa nova realidade pressupõe, além de amplo acesso e participação de sujeitos interessados no sistema de controle de constitucionalidade de normas, a possibilidade efetiva de o Tribunal Constitucional contemplar as diversas perspectivas na apreciação da legitimidade de um determinado ato questionado”.
[8] E isso pode ser verificado no julgamento da AC 258-MC, Min. Cezar Peluso, DJ 07.12.2004: “Observe-se, ademais, que, se entendermos que o efeito vinculante da decisão está intimamente vinculado à própria natureza da jurisdição constitucional em um dado Estado Democrático e à função de guardião da Constituição desempenhada pelo tribunal, temos de admitir, igualmente, que o legislador ordinário não está impedido de atribuir, como, aliás, fez por meio do art. 28, parágrafo único, da Lei n. 9.868, essa proteção processual especial a outras decisões de controvérsias constitucionais proferidas pela Corte. Em verdade, o efeito vinculante decorre do particular papel político-institucional desempenhado pela Corte ou pelo Tribunal Constitucional, que deve zelar pela observância estrita da Constituição nos processos especiais concebidos para solver determinadas e específicas controvérsias constitucionais”.
[9] Art. 102, § 3º, da Constituição: “§ 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros”.
[10] Tal como se pode verificar, por exemplo, no RE 566.471, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 20.05.2009; no RE 583.955, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ de 24.03.2009; e no RE 567.110, Rel. Minª Cármen Lúcia, DJ de 1º.04.2009.
[11] Essa tese chegou a seu extremo na apreciação, pelo Plenário do Supremo, da Rcl 4.335, Rel. Min. Gilmar Mendes, cujo julgamento foi concluído no último dia 20 de março.
Neste caso, o reclamante pedia a cassação de uma decisão de um Juiz de Execução Penal do Acre que não seguira a orientação fixada pelo STF no julgamento do HC 82.959, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 1º.09.2006, no qual fora declarada a inconstitucionalidade da Lei dos Crimes Hediondos, no ponto que impedia a progressão de regime.
Em suma, o reclamante buscava o reconhecimento do efeito vinculante do decido pela Corte em controle difuso de constitucionalidade, operado em sede de habeas corpus. O Relator e o Ministro Eros Grau reconheceram esse efeito vinculante.
Na conclusão do julgamento, a maioria, seguindo o voto do Ministro Teori Zavascki, considerou que a decisão da Justiça acreana violava a Súmula Vinculante 26, ainda que proferida mais de três anos antes de sua edição. Ver: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=262988
[12] A ementa do julgado, na parte que nos interessa, tem o seguinte teor: “4. PODER JUDICIÁRIO. Conselho Nacional de Justiça. Órgão de natureza exclusivamente administrativa. Atribuições de controle da atividade administrativa, financeira e disciplinar da magistratura. Competência relativa apenas aos órgãos e juízes situados, hierarquicamente, abaixo do Supremo Tribunal Federal. Preeminência deste, como órgão máximo do Poder Judiciário, sobre o Conselho, cujos atos e decisões estão sujeitos a seu controle jurisdicional. Inteligência dos art. 102, caput, inc. I, letra "r", e § 4º, da CF. O Conselho Nacional de Justiça não tem nenhuma competência sobre o Supremo Tribunal Federal e seus ministros, sendo esse o órgão máximo do Poder Judiciário nacional, a que aquele está sujeito”.

Carlos Bastide Horbach é advogado em Brasília, professor doutor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP e professor do programa de mestrado e doutorado em Direito do UniCEUB.
Revista Consultor Jurídico, 22 de março de 2014, 8h01
http://www.conjur.com.br/2014-mar-22/observatorio-constitucional-preciso-definir-funcao-supremo-tribunal-federal

STJ: Enfermidade mental não justifica interdição, mas motiva internação.

Sem a real noção das regras sociais, limites individuais, dor e sofrimento de outras pessoas, um sociopata — pessoa que apresenta comportamento antissocial — que comete atos de violência pode ser interditado para acompanhamento psiquiátrico. Isso ocorre porque tal comportamento coloca a vida do próprio cidadão e de outras pessoas em risco, o que demanda acompanhamento e restrição à liberdade, dependendo do quadro. Com base nesse entendimento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça acolheu Recurso Especial do Ministério Público de Mato Grosso e determinou a interdição de um jovem que, aos 16 anos, assassinou a mãe de criação, o padrasto e o irmão.
Após cometer os crimes, ele passou três anos cumprindo medida socioeducativa em diversas instituições, nas quais foi apontada a insanidade mental e vontade de continuar matando. Isso levou o MP-MT, em 2009, a apresentar Ação de Interdição, negada em primeira instância sob a alegação de que a situação não se enquadra nas previstas no artigo 1.767 do Código Civil. Segundo a sentença, para a interdição é necessária a constatação de que a doença retirou da pessoa em questão “o necessário discernimento para os atos da vida civil, não bastando qualquer tipo de enfermidade”. Houve Apelação ao TJ-MT, rejeitada com argumento semelhante, pois não foi "comprovada a incapacidade da pessoa para gerir atos da vida civil e bens, não há falar-se em interdição".
Relatora do Recurso Especial levado ao Superior Tribunal de Justiça, a ministra Nancy Andrighi apontou a condição do jovem como transtorno não especificado da personalidade. De acordo com ela, “a mera presença de comportamentos antissociais e/ou agressivos, podem não refletir uma personalidade sociopática, mas na verdade, tratar-se de reflexos do meio no qual o indivíduo foi criado”, aumentando a complexidade da situação. Citando especialistas na área, ela informou que o melhor tratamento é o terapêutico, por remédios ou de forma psicoterapêutica. A impossibilidade de qualquer dos dois tratamentos “gera o inevitável questionamento sobre a possibilidade de recorrência comportamental, que leve aquele que já praticou um determinado ilícito a fazê-lo novamente no futuro”, sendo esse o cerne da questão, disse a ministra.
Entre a sanidade mental e a loucura há uma zona fronteiriça, continuou. Quando as medidas legais não garantem a proteção e uma vida digna ao sociopata, buscam-se “alternativas, dentro do arcabouço legal para, de um lado, não vulnerar as liberdades e direitos constitucionalmente assegurados a todos e, de outro turno, não deixar a sociedade refém de pessoas, hoje, incontroláveis nas suas ações, que tendem à recorrência criminosa”, informou Nancy. Isso é necessário porque não há como controlar completamente o comportamento dos sociopatas violentos, e “a reincidência comportamental é quase uma certeza”.
Para a ministra, a questão opõe o direito à liberdade após o cumprimento da medida socioeducativa e a garantia à sociedade de que tais atos não se repetirão. Como não é possível prever o comportamento de tais pessoas, apontou, é preciso buscar uma solução plausível e possível para o caso. A base para o entendimento adotado pela ministra é o artigo 1.767, inciso III, do Código Civil, pois nele permite-se a interdição — ainda que parcial — de viciados em drogas e alcoólatras. Nesses casos, informou Nancy, há prejuízo incontrolável à capacidade civil da pessoa, “com riscos para si, que extrapolam o universo da patrimonialidade, e que podem atingir até a sua própria integridade física”. Mesmo oculto, há também risco para a sociedade, especialmente nos casos com violência prévia.
Como é impossível controlar a psicopatia — e a sociopatia — de forma total, é preciso “albergar esse sociopata em rede de proteção social multidisciplinar, que inclui um curador designado, o Estado-Juiz, o Ministério Público, profissionais da saúde mental e outros mais que se façam necessários”, apontou a ministra. Isso não vale para demonstrações genéricas de sociopatia, mas sim para casos com histórico de tal prática e de desrespeito às regras sociais, continuou. Baseando-se na possibilidade de internação compulsória, medida de internação psiquiátrica autorizada pela Lei 10.216/2001, Nancy Andrighi votou por dar provimento ao Recurso Especial, determinando a internação do homem. Ela foi acompanhada pelos ministros Sidnei Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino, ficando vencido o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.
Clique aqui para ler a decisão.
http://www.conjur.com.br/2014-mar-22/enfermidade-mental-nao-justifica-interdicao-motiva-internacao-stj

Paternidade socioafetiva não afasta direitos sucessórios

 Imagem: Revista Isto É.
 
A paternidade socioafetiva, mantida com o pai registral, não afasta os direitos decorrentes da paternidade biológica, sob pena de violar o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Além disso, o registro não pode servir de obstáculo para que o filho queira investigar sua origem genética, com todos os efeitos daí decorrentes.

Com este entendimento, a 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul manteve sentença que julgou procedente Ação Investigatória de Paternidade, cumulada com Petição de Herança, ajuizada contra um espólio. O caso foi parar no colegiado porque os três herdeiros legítimos do falecido se insurgiram contra a decisão que reconheceu os direitos hereditários/sucessórios do filho-autor, nascido fora do casamento. O acórdão foi lavrado na sessão de 27 de fevereiro.

Os desembargadores entenderam que, uma vez reconhecida a paternidade, em exame de DNA, é cabível o pedido de herança. E, aí, os sucessores do investigado não têm legitimidade para propor a prevalência da paternidade socioafetiva sobre a biológica, sobretudo quando o próprio pai registral concordou com o pleito do autor.

Para o relator dos recursos, desembargador Ricardo Moreira Lins Pastl, se o próprio autor foi que buscou o reconhecimento do vínculo biológico, assim que completou 18 anos, não é razoável que seja imposta a prevalência da paternidade socioafetiva, a fim de impedir sua pretensão. ‘‘O fato de o autor haver ocasionalmente afirmado na seara fática uma relação socioafetiva com seu pai registral e de haver bem usufruído desse relacionamento, [tal] não tem força para obstar a declaração de sua verdade biológica, o que é direito seu — e para todos os fins’’, destacou no acórdão.

Por fim, ao se referir à jurisprudência, o relator citou a ementa do Recurso Especial 1.274.240/SC, julgado em outubro de 2013 pela ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça. ‘‘A paternidade traz em seu bojo diversas responsabilidades, sejam de ordem moral ou patrimonial, devendo ser assegurados os direitos sucessórios decorrentes da comprovação do estado de filiação. Todos os filhos são iguais, não sendo admitida qualquer distinção entre eles, sendo desinfluente a existência, ou não, de qualquer contribuição para a formação do patrimônio familiar’’.

Clique aqui para ler o acórdão.
Jomar Martins é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.
Revista Consultor Jurídico, 23 de março de 2014
 http://www.conjur.com.br/2014-mar-23/descoberta-pai-biologico-desconstituir-paternidade-socioafetiva

sexta-feira, 21 de março de 2014

Ação de Manutenção de Posse

A defesa da posse e da propriedade é uma matéria extremamente importante.
Antes de falarmos sobre a ação de manutenção de posse, devo mencionar o conceito que o próprio legislador se encarregou de trazer de "possuidor", em seu artigo 1.196 do Código Civil:
Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno, ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”.
O objeto da possessória é apenas proteger a posse de uma violência que venha a se caracterizar no campo da ameaça, turbação ou esbulho. Delineado esse objeto, só resta reconhecer as três espécies de ações previstas no Código de Processo Civil, como possessórias: o interdito proibitório, a reintegração e manutenção de posse.
O artigo aqui versará sobre a ação de manutenção de posse.
Cuida-se de ação destinada à conservação na posse, protegendo-o contra a turbação.
É a ação que compete ao possuidor de qualquer coisa, seja móvel ou imóvel, corpórea ou incorpórea, contra quem venha perturbar (turbação) a sua posse.
São diversos sinônimos acerca desta ação como: força turbativa, ação de força nova, de preceito cominatório ou interdito de manutenção. Para fundamentar a ação, deve o autor, em cuja posse se encontra a coisa, provar a turbação praticada contra a dita posse, afirmando a data em que ela se iniciou, a fim de que dentro de ano e dia, possa fruir a expedição liminar do mandado de manutenção.
Isto é, sem a devida constatação comprovada sobre o início da turbação, não haverá interesse processual legítimo.
Essa turbação há que ser material. É como esclarece COELHO DA ROCHA: “A turbação se dá por vias de fato, consistindo, pois, em atos materiais, não em palavras ou intenções. E, por se exigir turbação material, ela deve ser evidenciada turbação de fato, pois que a turbação de direito buscaria outro remédio processual para garantia da ameaça.”
Seja na turbação, seja no esbulho, a posse deve ser julgada, preferentemente, a favor daquele que prova o domínio sobre a coisa.
Segue o raciocínio os autores JOÃO LUÍS ALVES, CARVALHO SANTOS E CLÓVIS BEVILÁQUA: “Não se deve julgar a posse em favor daquele a quem evidentemente não pertencer o domínio.”
É a exceptio proprietatis, que os doutrinadores colhem na interpretação do art. 505 do Código Civil. Para intentar a ação de manutenção, deve o requerente provar:
a) a sua posse;
b) a turbação; e
c) a continuação da posse, embora turbada.
Tal como na ação de reintegração, o réu pode exigir, na manutenção, que o autor preste caução, sob pena de depósito da coisa litigiosa.
Na ação de manutenção cabe ao autor pedir perdas e danos, como ao réu, em sua contestação.
A contestação da ação transforma o seu rito processual em ordinário.

Por: Dr. Marco André Clementino Xavier. Advogado Militante. Membro da Comissão do Jovem Advogado. Ex-Assessor Jurídico do MPF. Colunista de Jornais e autor de artigos jurídicos. Assessoria Jurídica em Direito Imobiliário.

http://marcoandreclementinoxavier.jusbrasil.com.br/artigos/114231867/acao-de-manutencao-de-posse?utm_campaign=newsletter&utm_medium=email&utm_source=newsletter

Vai comprar um imóvel novo? Além da construção, confira também a documentação!

É como um sonho materializado: você encontrou aquele lugar que tanto sonhou! Seja casa, sobrado ou apartamento, o seu imóvel está finalmente ao seu alcance!
Depois de muita procura, apareceu uma oportunidade que parece imperdível. A construção te agrada, o preço cabe no seu bolso e o vendedor (ou o corretor) deixa tudo ainda mais atrativo. Parece mesmo uma decisão certa e segura.
Neste momento de tanta empolgação, é normal o comprador deixar passar algumas perguntas fundamentais que deveria fazer ao vendedor ou corretor. Ao me deparar com alguns casos apresentados por compradores notei que em geral deixam de conferir a papelada referente ao imóvel, na verdade é comum que nem mesmo toquem no assunto durante a negociação imobiliária, presumindo na mais pura expectativa de boa-fé no negócio que o vendedor não estaria oferecendo ao mercado aquele imóvel se não estivesse tudo certo.
No entanto, a profusão de ocorrências que temos visualizado nos demonstra que, infelizmente, esta presunção não deveria ser tão frequente. Menos vistas nos grandes empreendimentos imobiliários, como os novos e modernos edifícios residenciais, as irregularidades na documentação final das obras em pequenas casas e sobrados têm gerado grandes transtornos aos compradores.
O momento atual do mercado imobiliário é muito bom para os construtores, a procura por novos imóveis aumentou muito com os programas de financiamento imobiliário oferecidos pelos Bancos, com aval do governo federal, nos últimos anos. Por isso temos visto muitos pequenos construtores investindo na produção de residências populares.
O problema surge quando o vendedor, ansioso por colher os frutos de seu investimento, fecha negócio com um comprador igualmente ansioso, muitas vezes antes da conclusão da obra.
São as condições perfeitas para acontecerem diversos contratempos, desde diferenças entre o projeto sobre o qual foi feita a compra e o resultado final da construção e, principalmente, defeitos na documentação final do imóvel - que é o objeto deste nosso comentário.
O comprador deve ter a iniciativa e não deve ter nenhum receio de exigir o projeto do imóvel, algo que não acontece em mais de 90% das aquisições imobiliárias, simplesmente porque não é habitual em nosso país. Mas entendo que deveria ser. A partir daí, o comprador também não conhece o Alvará de Construção e deixa de saber importantes informações sobre seu objeto de desejo.
O que temos visto é que o comprador dá o sinal de negócio, muitas vezes equivalente a significativa parte do preço total (mais de 10% e até mesmo 30% do preço), compromete-se em contrato com a compra, e é só quando surge algum problema (em geral o atraso na entrega do imóvel ou então se dá a entrega com muitos problemas na construção) é que procura um advogado imobiliário. Ao ser interpelado sobre a documentação do imóvel, mesmo a mais básica como o registro imobiliário (também conhecido por “matrícula”), é que se dá conta de que nunca se preocupou em analisar qualquer documento.
Portanto, ao se decidir por comprar um imóvel, se vale um conselho, além da planta baixa, exija do vendedor todos os detalhes técnicos do projeto, da autorização para a construção, do registro imobiliário, entre outros, antes de comprometer o orçamento.
Publicado por André C. Neves Advogado 
 http://andreneves.jusbrasil.com.br/artigos/114233352/vai-comprar-um-imovel-novo-alem-da-construcao-confira-tambem-a-documentacao?utm_campaign=newsletter&utm_medium=email&utm_source=newsletter

Fissuras, rachaduras, problemas no imóvel, como proceder?

Em primeiro lugar, cumpre destacar duas situações: a primeira é se o imóvel foi comprado diretamente da construtora; a segunda é se o imóvel é financiado por alguma instituição financeira.

Em se tratando de imóvel comprado da construtora, a mesma é responsável por qualquer dano estrutural pelo prazo de 05 (cinco) anos, inicialmente. Todavia, há a questão do vício oculto, aquele em que só aparece com o tempo, nestes casos para se entrar com ação contra a construtora responsável pela obra, o prazo prescricional é de 20 (vinte) anos, contado a partir da constatação de vícios ou defeitos da construção.

A Terceira Turma do STJ proferiu decisão neste sentido no REsp 903.771, onde foi determinado que o prazo que o dono do imóvel tem para ingressar em juízo contra a construtora, por danos relacionados à segurança e solidez da obra, começa a contar a partir da ciência das falhas construtivas.

Nesse sentido, os consumidores que, mesmo passado os 05 anos de garantia da obra, podem entrar na Justiça para pedir reparo ou indenização, não importando se já passou o tempo de garantia da construtora. Somente a partir desse momento começa a correr o prazo vintenário.

Ressalte-se que esse prazo vale somente para os chamados vícios ocultos, já que o prazo para reclamação de vícios aparentes, como portas quebradas, paredes mal pintadas, pequenas trincas, etc. É de 90 dias após a entrega da chave.

Para requerer indenização por perdas e danos por vícios nas obras, a ação prescreve em 20 anos, a partir de quando for constatado o problema por um perito.

Por fim, quanto aos imóveis financiados, os mesmos contam com cobertura securitária para danos físicos do imóvel, assim ocorrendo situações desta natureza, devem ser acionados imediatamente.

Mas cumpre atentar-se que algumas instituições financeiras, também são responsáveis pelo empreendimento, uma vez tem engenheiros em seu quadro de funcionários, além de que contratam a construtora e seguradora que serão responsáveis pelo empreendimento.
 
Publicado por Liz Werner 
http://lizwf.jusbrasil.com.br/artigos/114233155/fissuras-rachaduras-problemas-no-imovel-como-proceder?utm_campaign=newsletter&utm_medium=email&utm_source=newsletter

quarta-feira, 19 de março de 2014

Comoriência como solução de questões de interesse na herança

Determinar quem faleceu primeiro, nem sempre é possível em certas circunstâncias quando ocorrem mortes simultâneas, como num acidente automobilístico, numa explosão, queda de aeronave, dentre tantas outras possibilidades que poderíamos inclui-las.
Consideremos então que: dentre estas pessoas que morreram simultaneamente, estavam aquelas que são herdeiras reciprocamente umas das outras. Pergunto: Como enfrentar os reflexos desta questão no direito sucessório? Como a legislação brasileira trata deste assunto, para dirimir as questões dos conflitos de interesses decorrentes, na transmissão da herança?
A legislação civil remete a questão concreta para aplicação da comoriência.
Qual é o significado deste termo jurídico do Direito Civil? Quais seus efeitos para o Direito Sucessório? Se existente na questão concreta a comoriência contrariando os interesses no resultado da causa, é cabível a contrariedade se já presumida a comoriência? Vejamos:
Pois bem, o nosso ordenamento jurídico vigente adotou a presunção da morte simultânea, quando num evento fático, ocorre à morte de duas ou mais pessoas e não há como estabelecer com precisão, o momento exato da morte de cada uma delas.
O Código Civil, Lei nº10.406, de 10 de janeiro de 2002, assim estabeleceu:
“Art. 8º Se dois ou mais indivíduos falecerem na mesma ocasião, não se podendo averiguar se algum dos comorientes precedeu aos outros, presumir-se-ão simultaneamente mortos.”
Entendo que tal presunção é juris tantum mesmo a considerar que a aplicação da simultaneidade das mortes, somente ocorrerá, por força da lei, quando não se pode averiguar a precedência, ou seja, quem morreu primeiro.
Feita estas considerações, concluímos que a comoriência ocorre, quando não é possível identificar o momento das mortes dos envolvidos, num evento fático, com morte de duas ou mais pessoas, reciprocamente herdeiras umas das outras, presumindo-se então que falecerem no mesmo evento, e no mesmo momento, por presunção legal de comoriência.
Analisando o tema da comoriência, Washington de Barros Monteiro (Curso de Direito Civil, 1º vol.- São Paulo: Saraiva, p. 71) edição de 1985, a define como "a morte de duas ou mais pessoas, na mesma ocasião e por força do mesmo evento sendo elas reciprocamente herdeiras umas das outras".
Todavia, ainda que seja imperativo o acolhimento da comoriência, continuamos entendendo que a presunção da morte simultânea, é puramente conceitual e relativa, ou seja, válida até prova em contrário. Sendo assim, e existindo prova robusta e inequívoca da proeminência esta será capaz sim de afastar a comoriência. Este tem sido o entendimento amparado pela doutrina e pela jurisprudência dominante. Mais adiante vou citar um interessante exemplo prático como ilustração do tema.
Comoriência como solução de conflitos de efeitos imediatos na Sucessão:
O Direito das Sucessões tem fundamento na Constituição Federal, artigo , inciso XXX, que consagra o direito de herança.
Aproveitando as palavras do iluminado jurista, Dr. Euclides de Oliveira (Juiz Aposentado do 2º TAC.), proferidas na ocasião do congresso jurídico, em que se debatia a reforma da lei civil brasileira nos dias 07 a 11 de abril de 2003, in verbis:
"A transmissão dos bens da herança dá-se logo após a morte do titular, aplicando-se o chamado “droit de saisine” termo originário do direito francês, segundo o qual o morto transmite ao vivo, por consequência automática e imediata, independente da abertura do inventário, que se dá posteriormente, para mera formalização do ato transmissivo."
Saber o exato momento da morte daquele que vai transmitir a herança, ou ter ela declarada, é a questão determinante, porque é a partir deste dia, desta hora, desse fato jurídico ocorrido, ou seja: “MORTE”, que gera o momento da aplicação do direito dos herdeiros e legatário de sucederem o morto, porque a existência da pessoa natural termina com a morte, abrindo-se a sua sucessão.
Lembramos que: Não há sucessão entre comorientes.
Morrendo no mesmo momento, o autor da herança e o herdeiro, este não herdaria, pois não estava vivo quando da morte do autor da herança, devendo essa herança ser destinada a outro herdeiro, de acordo com a contemplação da ordem da vocação hereditária.
A comoriência, se de um lado resolve de pronto uma questão um tanto complexa de conflitos de interesses na herança, de outro trará consequências determinantes na ordem da vocação hereditária, e na partilha dos bens da herança.
Por questões de delimitação do assunto, não vou aprofundar-me sobre estes efeitos, entretanto vou comentar abaixo, no sub item vivenciando a questão, um interessante exemplo prático para esboçar uma posição defendida sobre o tema, tão somente para aclarar o argumentado.
Vivenciando a questão - Exemplo prático - Afastamento da comoriência.
Resumo Histórico: A viúva-meeira, era casada há duas décadas com o “de cujus” pelo regime da comunhão universal de bens, com quem sempre conviveu até a morte deste. Tiveram 03 (três) filhos, que estavam vivos e eram adolescentes naquela ocasião da morte trágica do pai.
O casal possuía um considerável patrimônio e, entre outros bens, uma casa de alto padrão, destinada ao lar conjugal, onde o “de cujus” residiu até a morte com a família.
Anotação 01. O acidente ocorreu não por culta do “de cujus”, entretanto, no evento fático também ocorreu a morte “simultânea” do seu 4º (quarto) filho, menor impúbere, legítimo e legalmente reconhecido, porém, sem convivência com a família conjugal, ainda que ciente deste fato, fruto de uma relação extraconjugal. A mãe deste filho morto, também estava no veículo acidentado, porém sobreviveu aos ferimentos. Ela com o filho eram residentes e domiciliados numa das propriedades rurais do “de cujus”, sendo esta propriedade rural em questão, considerada a de maior valor, (aproximadamente 25% do valor de todos os bens do casal). A mulher mãe do menino morto, era empregada do “de cujus” nesta propriedade rural, mantendo vínculo empregatício CLT, em cargo administrativo.
Anotação 02. Existência de um testamento válido e pela forma autorizada na lei, em que o “de cujus” em manifestação de vontade deixava a noticiada propriedade rural, uma fazenda, com porteiras fechadas, para o 4º filho, existindo porém, cláusula com 03 hipóteses condicionais, em síntese a saber: (resumindo as condições da doação).
a) Se o doador falecer primeiro que o filho donatário, a este se destinará em sua totalidade a fazenda identificada com todos os bens, que a compõe, com cláusula de usufruto vitalício em benefício da mãe do donatário;
b) Se o donatário falecer primeiro que o doador, ficará revogado e sem efeito algum o presente testamento;
c) Em caso de comoriência entre o Doador e o Donatário, o imóvel em questão ficará em sua totalidade, incluindo todos os bens que a compõe, para a mãe do donatário, ficará revogado e sem efeito algum o presente testamento se esta não estiver viva.
§ 1º Parte dos semoventes desta fazenda, quanto bastem, deverão ser vendidos, para quitação da rescisão de contrato de trabalho bem como de todas as verbas trabalhistas, por ventura existentes em relação à beneficiária e a empresa do “de cujus”, devendo ser homologada em juízo.
Anotação 03 - Situação Processual - Testamento válido. Inventário em regular tramitação, todas as partes devidamente representadas. O esboço de partilha nesta fase processual estava assim:
Do total dos bens do casal = 100%: Para a legatária 25% dos bens do casal, (ficando com a Fazenda com porteiras fechadas, e quitação de suas verbas trabalhistas, por força do testamento válido, letra C e parágrafo), com o saldo de 75% restante, Meação = 37,5% dos bens do casal e 37,5%, destinados aos 03 herdeiros necessários (filhos do casal) divididos em partes iguais.
Indignada pelos fatos, pelo conteúdo do testamento válido, e pela divisão da herança e desrespeito à meação, pretendia contrariar.
Análise dos documentos - Conclusão
A interessada portava no momento do contato preliminar, apenas os recortes dos jornais que noticiaram o acidente, uma cópia do boletim de ocorrência da Polícia Rodoviária Estadual, uma fita VHS contendo a reportagem exibida na televisão sobre o acidente, e uma fita K-7, contendo a gravação da notícia radiofônica “ao vivo”, do local do acidente, feita por um repórter da região.
Analisados, nada a contribuir, entretanto na fita K-7, continha uma declaração importantíssima para ser explorada mais precisamente, quando o repórter entrou do local do acidente, na programação ao vivo daquela emissora de rádio, e assim se expressou aos ouvintes: (resumindo)
“Acidente grave com 02 vítimas fatais e uma hospitalizada... (identificava-os etc)... E concluía: o cadáver da vítima (criança), somente agora a pouco foi retirado das ferragens, e vai ser transportado para o necrotério da cidade tal, onde já está o corpo de seu pai...(identificou-o etc) e concluiu dizendo que: segundo informações dos socorristas este, (o pai), foi retirado das ferragens agonizando e morreu no caminho, antes de dar entrada ao hospital”
Esta preciosa informação foi o ponto de partida para após um longo trabalho, constituir um conjunto probatório inequívoco e conclusivo. Finalmente, contrariada a comoriência e provada a premoriência, outro foi o desfecho nos autos do inventário, senão vejamos:
a) Testamento válido - eficácia da letra b acima noticiada e por consequência, foi ao final homologado o novo esboço de partilha apresentado.
b) Meação = 50% do total dos bens do casal. A parte disponível correspondente aos 50%, foi repartida aos 04 filhos herdeiros necessários em partes iguais, tendo a mãe herdado a parte do filho morto.
Valdir Antônio Ponchio – advogado
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Fonte de Consulta:
1. Artigo , inciso XXXConstituição da Republica Federativa do Brasil de 1988,
2. Artigos 1784 a 2017, Livro V do Código Civil Brasileiro, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002,
3. Dr. Euclides de Oliveira -Juiz Aposentado do 2º TAC. (DIREITO DAS SUCESSÕES – “DIREITO DE HERANÇA – SUCESSÃO LEGITIMA E TESTAMENTÁRIA”) comentário no congresso jurídico, em que se debatia a reforma da lei civil brasileira, e repercussões na administração pública e no controle externo, publicado no site do Tribunal de Contas do Município de São Paulo, Abril 2003,
4. Washington de Barros Monteiro (CURSO DE DIREITO CIVIL, 1º vol.- São Paulo: Saraiva, p. 71.) 1985.

Publicado por Valdir Antonio Ponchio
http://valdirponchio.jusbrasil.com.br/artigos/114068410/comoriencia-como-solucao-de-questoes-de-interesse-na-heranca?utm_campaign=newsletter&utm_medium=email&utm_source=newsletter

Obrigação de trato sucessivo

Obrigação de tratos sucessivos ou de execução continuadaé a que se protrai no tempo, caracterizando-se pela pela prática ou abstenção de atos reiterados, solvendo-se num espaço mais ou menos longo de tempo; por exemplo, a obrigação do locador de ceder ao inquilino, por certo tempo, o uso e o gozo de um bem infungível, e a obrigação do locatário de pagar o aluguel convencionado.[1]
Segundo Carlos Roberto Gonçalves “é a que se prolonga no tempo, sem solução de continuidade ou mediante prestações periódicas ou reiteradas. No último caso, tem-se uma obrigação de trato sucessivo, que é aquela cuja prestação se renova em prestações singulares e sucessivas, em períodos consecutivos, como sucede na compra e venda a prazo, no pagamento mensal do aluguel pelo locatário, etc”.
Ocorre sempre que as obrigações são caracterizadas pela prática ou abstenção de atos reiterados, dando-se o seu adimplemento num espaço de tempo mais ou menos longo. É a que se protrai no tempo, caracterizando-se pela prática ou abstenção de atos reiterados, solvendo-se mais ou menos ao longo do tempo.[2]
É o que ocorre, por exemplo, num contrato de locação, com a obrigação do locador de ceder ao inquilino, ao certo tempo, o uso e gozo do imóvel locado e, da mesma forma, com a obrigação do inquilino de pagar periodicamente o aluguel ajustado (arts. 565, 566, 569, II, CC, e Lei n. 8.245/91, arts. 22 e 23); ou, ainda, o que acontece nas vendas a prestações, quando o adquirente se obriga a pagar as parcelas do preço ajustado mês a mês; e nos contratos de fornecimento de mercadorias em quantidade previamente ajustada, mas distribuída por várias partidas, como por exemplo, dez mil litros de álcool em cinco partidas semanais de dois mil litros cada uma. Nessa situação, o descumprimento da terceira prestação, por exemplo, não atinge as prestações já cumpridas (I a e 2a), já que seu adimplemento tem força extintiva.
Desses exemplos, é fácil depreender que a obrigação é única, existindo, porém, vários créditos, cada qual com sua própria prestação.
Nesta espécie de obrigação há maior probabilidade de conflitos espaço-temporais, pois, relativamente ao seu inadimplemento, sobreleva o fato de que sua resolução será irretroativa, todavia as prestações seriadas e autônomas ou independentes já cumpridas não serão atingidas pelo descumprimento das demais prestações, cujo vencimento se lhes seguir, uma vez que o seu adimplemento possui força extintiva.
Isso quer dizer que, nos contratos de execução continuada, consideram-se as prestações seriadas e autônomas, que vez cumpridas, não mais podem ser afetadas pelo inadimplemento das demais prestações, cujo vencimento se lhe seguiram (v. G. O locador, cujo aluguel de um determinado mês não foi pago, embora possa ensejar a rescisão contratual por descumprimento da obrigação, não pode exigir o pagamento dos locativos já realizados).
Em síntese, nos contratos de execução continuada, os efeitos do inadimplemento são, em regra, dirigidos ao cumprimento das obrigações futuras e não às prestações pretéritas.

Jurisprudências:
http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre=obriga%E7%E3o+de+trato+sucessivo&b=ACOR&thesaurus=JURÍDICO
http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre=tratos+sucessivos&b=ACOR&thesaurus=JURÍDICO

Publicado por Amanda Patussi 
http://amandapatussi.jusbrasil.com.br/artigos/114094428/obrigacao-de-trato-sucessivo?utm_campaign=newsletter&utm_medium=email&utm_source=newsletter

Por extravio de bagagem em volta da Espanha, empresário receberá R$ 48 mil

A 1ª Câmara de Direito Civil fixou em R$ 48,2 mil o valor da indenização por danos morais e materiais devida por uma companhia aérea a empresário, que teve sua bagagem extraviada ao voltar de viagem de negócios à Espanha. A decisão reformou sentença da comarca de Balneário Camboriú, cidade de atuação do profissional, e negou apenas o pedido de pagamento de nova viagem para firmar contratos que teriam sido danificados com o extravio. Segundo os integrantes da câmara, não há prova de que outra viagem é indispensável para a assinatura de novos documentos.

Em apelação, o profissional relatou ter feito a viagem em outubro de 2009, e ressaltou o fato de a companhia confirmar a compra e o uso da passagem aérea, bem como o extravio da bagagem. Apresentou fotos das condições em que a mala foi devolvida e a lista de pertences extraviados, além de notas fiscais de compra de mercadorias.

Esses fatos foram destacados no voto da relatora, desembargadora substituta Denise de Souza Luiz Francoski, que considerou os itens indicados pelo passageiro compatíveis com a viagem e sua duração. Assim, fixou em R$ 18,2 mil os danos materiais. Quanto aos danos morais, fixou-os em R$ 30 mil e os entendeu presumidos pelo transtorno e constrangimento do autor ao não poder dispor de seus pertences ou não ter a certeza de sua devolução.

No caso em questão, o consumidor é empresário e a operadora aérea é empresa de grande porte econômico. A bagagem foi entregue apenas 48 horas após a chegada do apelante no Brasil, sem diversos objetos de sua propriedade, o que configura grave violação do dever de transporte, com segurança, dos pertences do passageiro, justificou a magistrada. A decisão foi unânime (Apelação Cível n. 2011.038784-1).
 
http://tj-sc.jusbrasil.com.br/noticias/114109712/por-extravio-de-bagagem-em-volta-da-espanha-empresario-recebera-r-48-mil?utm_campaign=newsletter&utm_medium=email&utm_source=newsletter

terça-feira, 18 de março de 2014

Pai registral é quem deve prover alimentos, decide TJ-RS

O dever de sustentar o menor decorre do poder familiar. Por isso, cabe ao pai registral arcar com este compromisso, independentemente do fato de o pai biológico ser conhecido. O entendimento levou a 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a acolher recurso do pai biológico de uma menor, inconformado com a decisão que deferiu o pagamento de alimentos provisórios no montante de 30% sobre seus rendimentos.

No Agravo de Instrumento manejado contra a decisão, o pai biológico argumentou que nunca soube da existência da menina, até o ajuizamento da Ação de Investigação de Paternidade, que só foi proposta porque a mãe desta se separou do co-réu, o pai registral. Logo, cabe a este último prover os alimentos, já que convive com a menor desde o seu nascimento, há 11 anos, e exerce a paternidade socioafetiva.

O relator do recurso, desembargador Alzir Felippe Schmitz, afirmou no acórdão que o pai registral, que confirmou a paternidade socioafetiva, deve continuar arcando com a responsabilidade de sustento. Isso porque ainda não é possível afirmar qual vínculo será privilegiado quando for proferida a sentença.

Para reforçar o seu entendimento, Schmitz citou jurisprudência da própria Câmara, da lavra do desembargador Luiz Felipe Brasil Santos. Registra o excerto da ementa, na parte que interessa: ‘‘Na medida em que ainda não houve a desconstituição do registro civil, o pai registral continua com a obrigação de mantença da autora, uma vez que o vínculo consanguíneo não repercute, automaticamente, no estado de filiação’’. O acórdão foi lavrado na sessão do dia 27 de fevereiro.

Clique aqui para ler o acórdão modificado. 
 
http://www.conjur.com.br/2014-mar-16/ciencia-pai-biologico-nao-afasta-dever-sustento-pai-registral