segunda-feira, 22 de setembro de 2014

A desconsideração da personalidade jurídica


O principal fundamento da limitação da responsabilidade dos empreendedores é o estímulo à exploração das atividades econômicas. Poucos estariam dispostos a iniciar um novo negócio, a constituir uma nova sociedade, se seus patrimônios pessoais pudessem ser alcançados na hipótese de insucesso do empreendimento.
Todavia, existem situações específicas que autorizam a responsabilização dos sócios e administradores de sociedades limitadas por dívidas da pessoa jurídica quebrando, assim, o princípio geral da autonomia patrimonial da sociedade em relação ao patrimônio de seus sócios.
Neste contexto, a partir do "disregard of legal entity" do direito inglês e do direito americano, surgiu, no direito brasileiro, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica cujo objetivo é tornar ineficaz a separação existente entre os bens da sociedade e os bens pessoais dos sócios, para considerá-los como uma universalidade capaz de responder pelas obrigações contraídas, em nome da sociedade, através da consumação de fraude ou abuso de direito.
É sabido, como o próprio nome diz, que a principal característica das sociedades limitadas é a limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais. Assim, prescreve o artigo 1.052 do Código Civil que "Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social". Isto é, os sócios respondem apenas pelo valor das quotas com que se comprometeram no contrato social. É esse o limite de sua responsabilidade. Acrescenta ainda o Código Civil, no artigo 1.024, que "Os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais".
Uma das principais exceções a tal regra geral encontra amparo no artigo 1.080 do Código Civil, que estabelece que "as deliberações infringentes do contrato ou da lei tornam ilimitada a responsabilidade dos que expressamente as aprovaram", hipótese em que os sócios enquadrados nas práticas ilícitas responderão pelas dívidas da sociedade, direta, pessoal e ilimitadamente com seus bens particulares.
Dispõe também o Código Tributário Nacional, em seu artigo 135, de forma mais abrangente e não apenas em relação às sociedades limitadas, que "são pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:(iii) os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado".
Cabe ressaltar que, em qualquer ramo do Direito em que se deparar com a exceção à regra da autonomia patrimonial da sociedade em relação ao patrimônio de seus sócios, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica somente poderá ser aplicada em juízo e em face de situação de abuso da pessoa jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. Comumente tem ocorrido abusos por parte de magistrados, especialmente na justiça do trabalho, que determinam o bloqueio ou a penhora de bens pessoais de sócios de sociedades limitadas pelo simples fato de não terem sido encontrados recursos, na própria sociedade, para satisfação de crédito trabalhista.
Fica evidente a falta de regramento legal e de parâmetros jurisprudenciais rígidos para a aplicação da teoria da desconsideração, permitindo que excessos sejam cometidos em detrimento da segurança jurídica imprescindível ao estado democrático de direito.
É neste contexto de excessos e abusos que a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara aprovou, em maio deste ano, a redação final do texto do Projeto de lei 3.401/2008, que disciplina o procedimento de declaração judicial de desconsideração da personalidade jurídica e dá outras providências. A proposta tramita em caráter conclusivo e foi encaminhada para aprovação pelo Senado em junho de 2014.
Apesar de estar prevista em lei e consagrada no artigo 50 do Código Civil, não há até agora no direito pátrio um trâmite judicial específico para aplicação da teoria da desconsideração. O texto da proposta, que unifica dois projetos de lei de 2008, institui um rito procedimental para a aplicação da teoria, assegurando o prévio direito ao contraditório em hipóteses de responsabilidade pessoal do sócio por dívida da empresa e exigindo a indicação, em requerimento específico, dos atos que motivariam tal responsabilização. Ainda segundo a proposta, o sócio terá direito de produzir provas e o juiz somente poderá decretar a desconsideração da personalidade jurídica após oitiva do Ministério Público e desde que convencido da prática de abuso pelo sócio, em detrimento da sociedade, sendo vedada a sua decretação por analogia ou interpretação extensiva.
Além disso, o juiz não poderá decretar a desconsideração da personalidade jurídica antes de facultar à sociedade a oportunidade de satisfazer a obrigação em dinheiro, ou indicar os meios pelos quais a execução possa ser assegurada. A mera inexistência ou insuficiência de patrimônio para o pagamento de obrigações contraídas pela pessoa jurídica não autorizará a desconsideração quando ausentes os pressupostos legais.
Conforme já dito, a constituição das empresas e a autonomia de seu patrimônio contribuem de forma absolutamente relevantes para o desenvolvimento da atividade econômica, na medida em que alavancam os investimentos e geram segurança para os integrantes dessas sociedades, na hipótese de eventual insucesso das atividades produtivas. Certamente, a limitação da responsabilidade não poderia servir em favor da fraude perpetrada por sócios e administradores de sociedades em detrimento de credores com interesses legítimos, uma vez que o Direito não pode tutelar o ato ilícito. É nesse sentido que instrumentos como a desconsideração da personalidade jurídica são desenvolvidos.
Mas não se pode, por outro lado, permitir o abuso no uso dos institutos jurídicos de forma a prejudicar sócios e administradores que fazem jus à proteção de seus patrimônios. Parece-nos, pois, adequada a iniciativa do legislador pátrio ao tentar disciplinar o procedimento de declaração judicial da desconsideração da personalidade jurídica. Esperemos a aprovação final do projeto e que seus efeitos sejam sentidos de forma positiva em toda a sociedade.
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*Mariana Borlido de Lima Pereira é advogada do escritório Pinheiro, Mourão, Raso e Araújo Filho Advogados
 

Homem não pode alterar nome idêntico ao do pai


O desembargador Carlos Escher manteve sentença da 2ª vara da Fazenda Pública de Goiânia que indeferiu o pedido de Elígio Araújo Santos Júnior para alterar o nome dele, por ser idêntico ao do pai. Elígio interpôs apelação cível para reformar a sentença, alegando que não tem bom relacionamento com a figura paterna, por causa das condutas desregradas e alcoolismo do pai, tendo por isso sofrido bullying quando era criança.
 
Em sua decisão, o magistrado reconheceu a apelação, mas negou provimento, ressaltando que o motivo alegado por Elígio - não gostar de ter o mesmo nome do pai – não possui amparo legal. De acordo com ele, a lei de Registros Públicos (6.015/73) até prevê nos artigos 56 a 58 a possibilidade de alteração do 'prenome' da pessoa natural, mas que o caso do apelante não está previsto na lei.
 
O desembargador citou que a mudança de nome sem a indicação de motivo somente pode ser implementada no primeiro ano após completada a maioridade civil ou em idade posterior, quando tiver como fundamento a coação ou ameaça decorrente da colaboração com a apuração de crime.
 
Quando não se trata de nenhuma dessas hipóteses, o STJ também orienta que a alteração pode ocorrer se a situação for reconhecida como excepcional. “Elígio não comprovou qualquer justo motivo, como passar por vexame sempre que é identificado pelo seu prenome, idêntico ao do pai.
  • Processo : 201490137610
     

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Liberdade religiosa: Patologia? (William Douglas)

Li a seguinte manifestação do Leonardo Boff: “Diz-se por aí, que uma profetiza de sua igreja evangélica, a Assembleia de Deus, profetizou que ela, Marina, seria presidenta. E ela crê cegamente nisso como crê no que, diariamente lê na Bíblia, passagens abertas ao acaso, como se aí se revelasse a vontade de Deus para aquele dia. São as patologias de um tipo de compreensão fundamentalista da Bíblia que substitui a inteligência humana e a busca coletiva dos melhores caminhos para o país.

Não sei se Marina disse isso ou se Boff disse que ela disse. Quanto ao voto, não é tema desse artigo. Cada um que vote em quem achar melhor. A questão aqui é como um cidadão deve lidar com a fé alheia.
Eu leio a Bíblia, diariamente, como qualquer cristão, evangélico ou católico, deveria fazer. Tenho o direito humano de crer que a Bíblia é a Palavra de Deus e ser respeitado “apesar” disso. Creio que qualquer trecho dela, mesmo aberta ao acaso, revela a vontade de Deus para todo e qualquer dia. A interpretação também é livre. Assim, se alguém calhar de ler sobre o suicídio de Judas não deve entender que isso é uma orientação para aquele dia.
Não aceito, como professor de Direito Constitucional, que alguém, muito menos um teólogo que tem uma história tão interessante, chame minha prática e a de dezenas de milhões de cristãos, de uma "patologia". Não bastasse isso, disse que uma compreensão "fundamentalista da Bíblia substitui a inteligência humana e a busca coletiva dos melhores caminhos para o país".
A definição do que é "fundamentalista" é subjetiva. É um “fundamentalismo” dizer que a interpretação que não o agrada é a de um "fundamentalista". Isso ocorre, pois o crítico assume a perigosa tarefa de censor. E, por viés autoritário, de entender que é melhor intérprete que o outro. Isso é arrogante, antidemocrático e até mesmo mal educado.
A única patologia que vejo é desrespeitar a liberdade religiosa e de opinião, previstas na Constituição da República e em todas as cartas de direitos humanos reconhecidas pela Humanidade. Chamar a fé do outro de "patologia" é trabalhar pelo preconceito e discriminação, algo lamentável numa democracia, ainda mais quando parte de alguém com tantos anos de estudo. Não gostei também de ser chamado de "burro", já que ler a Bíblia é visto como "substituir a inteligência".
Quanto à busca coletiva dos melhores caminhos para o país, posso dizer que esses os evangélicos (segundo ele, “fundamentalistas”) são responsáveis por enorme auxílio a toxicômanos (com índice de recuperação de mais de 70%). Eles e os católicos visitam as penitenciárias, ajudam órfãos, alimentam famintos, providenciam roupa e abrigo para desvalidos, criam escolas, dão bolsas de estudo, etc. Eu, por exemplo, por ler a Bíblia, me tornei -apesar de branco e de olhos azuis - membro do movimento negro e defensor das cotas nas universidades, ministro aulas gratuitas, faço doação de livros, ajudo orfanatos católicos, espíritas e evangélicos (fome não tem religião, anoto) etc. Então, me perdoe, mas meu compromisso com "melhores caminhos para o país" veio justamente da leitura diária da Bíblia.
Vale registrar que em outro momento (ainda em julho do corrente ano) o mesmo Boff admitiu que esses leitores "patológicos" da Bíblia ajudam os necessitados. Indagado sobre a postura do Papa frente ao avanço das igrejas evangélicas, após dizer que Francisco não é proselitista, mas que tem interesse em servir à humanidade, disse o seguinte: "É aquilo que nós chamamos de 'ecumenismo de missão'. Estamos divididos, é um fato histórico, mas não é uma divisão dolorosa. Porque cada um tem seus antros, profetas e mestres. Mas como nós juntos nos reconhecemos nas diferenças e como juntos vamos apoiar os sem terras, os sem tetos, os marginalizados, as prostitutas. Esse serviço nós podemos fazer juntos."

Leonardo Boff sabe que aqueles –aos quais acusa de não terem “inteligência”, nem interesse em buscar por “melhores caminhos para o país" – ajudam bastante aos necessitados. Então como pode, de uma hora para outra, nos chamar de "patológicos" e, na prática, de burros? Pior, parece se esquecer de quantos católicos são leitores, diários, das Escrituras. Quanto a acreditar ou não em profecias, isto é mais um assunto onde cabe respeitar a fé de cada um. E, anoto: entre aqueles que acreditam nas profecias, alguns católicos carismáticos aí incluídos, há sempre o cuidado de distinguir a legitimidade do profeta. É, porém, e me perdoem ser repetitivo, um direito humano que esperamos seja respeitado por todos.
Lamento muito a fé de milhões de católicos e evangélicos tenha sido tratada como "patologia" e "substituição de inteligência". Isto me lembra o que disse Freud: "Quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo." Estou certo que ao falar de Marina, Leonardo disse mais sobre Leonardo.
 
William Douglas - Professor Universitário, Juiz Federal/RJ, Escritor, Mestre em Direito - Pós-graduado em Políticas Públicas e Governo (EPPG/UFRJ) e um “patológico” leitor cotidiano da Bíblia