quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Um presente para a reflexão no dia das crianças (Rizzatto Nunes)

Como estamos na semana do Dia das crianças, apresento, mais uma vez, um texto para reflexão sobre a relação de pais e filhos. Hoje abordarei a questão dos incentivos.
Penso que praticamente todo mundo já ouviu dizer que há pais que prometem dar de presente um automóvel ao filho ou filha, acaso ele ou ela ingresse na Faculdade. Isso, quanto aos mais abonados. Os de menores posses prometem viagens ou outros presentes mais baratos. Isso também ocorre com os mais jovens que ganham alguma coisa em troca de boas notas como, por exemplo, a ida a um evento desejado pelo pequeno ou ao McDonald's. Ou, ao contrário, deixam de levá-los se as notas foram fracas.
Pergunto, então, que tal oferecer, de uma vez por todas, e sem rodeios, dinheiro para que a criança ou adolescente tire boas notas ou leia um livro? Ao invés de automóvel, viagem, roupas ou acessórios, pagamento cash ou depósito em conta!
Pode até parecer estranho, mas isso já acontece nos Estados Unidos da América e, como quase tudo que por lá se inventa, acaba, mais cedo ou mais tarde, desembarcando por aqui - nesse nosso país catequizado e que adora copiar o grande irmão norte americano -, faço algumas considerações para que pensemos a respeito.
Michael J. Sandel, em livro que aqui já citei mais de uma vez1, conta que um amigo dele costumava pagar um dólar aos filhos pequenos toda vez que escreviam um bilhete de agradecimento. Ele revela que, geralmente, dava para perceber que os bilhetes haviam sido escritos sob pressão. Sandel levanta a hipótese de que, "pode acontecer que, depois de escrever muitos bilhetes, as crianças acabem apreendendo seu real significado e continuem manifestando gratidão ao receber alguma coisa, mesmo se não forem mais pagas para isso"2. No entanto, também é possível, observa ele, que aprendem a lição errada e encarem esses bilhetes como uma obrigação, como uma tarefa a ser desempenhada em troca de remuneração. Pior: esse modelo pode "corromper sua educação moral e tornar mais difícil para elas o aprendizado da virtude da gratidão".3
Sandel conta que, em várias partes dos Estados Unidos, o sistema escolar passou a tentar melhorar o desempenho acadêmico com a remuneração das crianças para estimulá-las a tirar boas notas ou obter boa pontuação em testes de avaliação. E que, cada vez mais, os incentivos financeiros são considerados um elemento-chave do melhor desempenho educacional, especialmente no caso de alunos de escolas em centros urbanos com resultados medíocres.
Um professor de economia de Harvard, Roland G. Fryer Jr, colocou em prática essa ideia de incentivos destinando US$6,3 milhões a alunos de 261 escolas urbanas de produção predominantemente afro-americanos hispânica, provenientes de famílias de baixa renda. Diferentes esquemas de incentivos foram usados em diferentes cidades4. Vejamos alguns exemplos referidos por Sandel:
"- Em Nova York, as escolas envolvidas pagavam US$ 25 a alunos da 4ª série que se saíssem bem em testes padronizados de avaliação. Os alunos da 7ª série podiam ganhar US$ 50 por teste. Esses ganhavam em media um total de US$ 231,55.
- Em Washington, as escolas pagavam a alunos do ensino médio por comparecimento, bom comportamento e entrega dos trabalhos de casa. As crianças mais compenetradas podiam ganhar US$ 100 quinzenalmente. O aluno médio recebia cerca de US$ 40 nesse período e um total de US$ 532,85 ao longo do ano escolar.
- Em Chicago, os alunos da 9ª série recebiam dinheiro pelas boas notas: US$50 por um A, US$ 35 por um B e US$20 por um C. O melhor aluno tinha uma arrecadação de US$ 1.875 durante o ano escolar.
- Em Dallas, pagam US$ 2 aos alunos da 2ª série para cada livro que lerem. Para receber o dinheiro os alunos devem responder a um questionário computadorizado e provar que leram o livro."5
Michael Sandel observa que "esses pagamentos em dinheiro deram resultados variáveis. Em Nova York, a remuneração da garotada por boas notas nos testes em nada contribuía para melhorar seu desempenho acadêmico. O dinheiro em troca das boas notas em Chicago levou a melhores níveis de comparecimento, mas não melhorou os resultados dos testes padronizados.
Em Washington, os pagamentos ajudaram alguns alunos (hispânicos, meninos e alunos com problemas comportamentais) a alcançar melhor desempenho de leitura. O dinheiro funcionou, sobretudo, com os alunos de 2ª. série em Dallas; as crianças que receberam US$ 2 por livro chegaram ao fim do ano com melhor nível de compreensão na leitura"6.
Muito bem. Os economistas costumam dizer e sempre pretendem mostrar que as pessoas reagem a uma política de incentivos. Por que, então, não pagar para que uma criança ou um adolescente tire boas notas ou leia um livro? Embora certas crianças ou adolescentes possam sentir-se motivadas a ler livros pelo prazer da própria leitura e pelo aprendizado, com outras isso não acontece. Por que "não usar o dinheiro como um incentivo a mais?"7
Sandel responde do seguinte modo: "o mercado é um instrumento, mas não um instrumento inocente. O que começa como um mecanismo de mercado se torna norma de mercado. O motivo mais óbvio de preocupação é que o pagamento acostume as crianças a pensar na leitura de livros como uma forma de ganhar dinheiro e comprometa, sobrepuje ou corrompa o gosto da leitura pela leitura".8
Esses são apenas alguns exemplos de como o pensamento contemporâneo tem uma tendência enorme a reduzir tudo à oferta, preço, pagamento e em dinheiro. Talvez em alguns casos isso não seja um problema. O perigo é que, cada vez mais, os valores morais mais elevados acabem sendo substituídos pela simples ideia de troca de algo pelo dinheiro, gerando uma precificação do comportamento humano e fazendo com que as pessoas esquecem as virtudes e percam a generosidade (ou nunca conheçam o seu sentido).
É isso. Algo para refletirmos nesse dia das crianças.
__________
1O que o dinheiro não compra – os limites morais do mercado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 5ª. ed, 2013.
2Livro acima citado, p. 61.
3Idem, p. 62.
4"Financial Incentives and Student Achievemnent: Evidence from Randomized Trials" in Quarterly Journal of Economics, 126, nov. 2011. Apud Sandel, livro citado, p. 53.
5Idem, p. 54
6Idem, mesma p.
7Idem, p. 62

8Idem, mesma p.

Autor: Rizzatto Nunes é desembargador aposentado do TJ/SP, escritor e professor de Direito do Consumidor.
Fonte:http://www.migalhas.com.br/ABCdoCDC/92,MI209073,31047-Um+presente+para+a+reflexao+no+dia+das+criancas