quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Juntada não é casada

Mas você é casada ou juntada?”, perguntou uma moça para a outra, dentro do elevador. “Juntada, e que eu saiba tenho os mesmos direitos de casada”, respondeu a outra. A porta se abriu, eu saí e pensei: “não tem não”. Não conheço as moças do elevador, mas considerei que retomar esse tema pode ser de grande valia, afinal, a informação dita com tanta certeza pela moça ainda é recorrente não só em elevadores. Para o senso comum, essa ideia de simetria entre casamento e união estável permanece.
É verdade que as uniões estáveis são reconhecidas por lei, e já ficou no passado a ideia de que só o papel – no caso, o registro do casamento civil – atesta a existência de um núcleo familiar. Entretanto, fosse a mesma coisa estar casado ou “juntado” e a comunidade homossexual nem brigaria tanto pelos direitos ao casamento civil, só para citar um exemplo atual e bastante pertinente.
Em dois momentos limites faz toda a diferença estar num casamento ou em uma união estável: no momento de separar-se e quando sobrevém a morte de um dos companheiros. Pois bem, no primeiro caso, o direito à partilha dos bens, guarda de filhos, pensão alimentícia, enfim, todos os institutos que sempre foram relativos ao casamento e também estão presentes na união estável, podem ser apreciados e analisados. No caso de falecimento, também esses institutos têm relevância, no entanto, ainda há versões contraditórias quanto à posição dos companheiros na linha sucessória. A meação – ou seja, a metade dos bens adquiridos onerosamente ao longo da união estável – está garantida aos companheiros. Mas meação não é herança, e quanto a esta, os companheiros podem estar tanto no último lugar da fila, após parentes de todas as classes – filhos, pais, irmãos, tios, sobrinhos – como podem também figurar entre os herdeiros necessários e, a partir dessa versão, sim, podem ganhar os mesmos direitos do cônjuge.
Mas há um detalhe pouco alardeado, uma daquelas frases que parecem designar apenas um ato burocrático, uma canetada, mas que na prática é super importante: o reconhecimento judicial da união estável. Todo o episódio de união estável que chega aos tribunais – seja por uma razão simples como rompimento da união e consequente necessidade de estipular partilha, pensão, etc., seja para o recebimento de herança, vultosa ou não–, a primeira providência é: reconhecer a união estável. Sem esse reconhecimento, os demais procedimentos jurídicos não têm lugar.
Vou dar um exemplo que pode ajudar a esclarecer. Recentemente, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) não reconheceu uma união estável e acabou com qualquer possibilidade de uma mulher receber a herança de seu companheiro sobrevivente, ou suposto companheiro, já que foi justamente o excesso de dúvidas e a falta de provas concretas da existência da união estável que nortearam a decisão dos juízes. Nesse caso, a ministra Nancy Andrighi, que votou contra o reconhecimento, alegou que não ficou provado que a relação da mulher com o companheiro falecido estava dentro dos parâmetros da lei nº 9.278, de 10 de maio de 1996. Quais são esses parâmetros? A própria juíza os elencou, caracterizando o vínculo familiar: “durabilidade, publicidade, continuidade, objetivo de constituição de família e observância dos deveres de respeito e consideração mútuos, assistência moral e material recíproca, bem como de guarda, sustento e educação dos filhos”. Normalmente, constituem prova de união estável o registro de nascimento de filhos, fotos que flagram a convivência duradoura, correspondências etc.
No caso citado, a mulher que requeria o reconhecimento o obteve em primeira instância. Os filhos do falecido, porém, interpuseram recurso junto ao STJ. Alegaram que os dois filhos da requerente não eram do falecido e que, nos últimos anos, foi a irmã do falecido quem se ocupou em ampará-lo na doença e não a mulher que se dizia companheira. Para a mulher que requeria a união estável, entre os direitos que o reconhecimento garantiria, estava o de obter, por meio de herança, pelo menos parte do imóvel pertencente ao falecido, ou ainda, se fosse a única casa, o direito à propriedade e moradia. O falecido, entretanto, legou o imóvel em testamento a um asilo. A requerente ainda tentou objetar, afirmando que o testamento deve ter sido feito sob pressão da família. Nada feito, não houve o reconhecimento.
Agora, imaginemos uma situação quase similar: filhos brigando na justiça contra a madrasta, que não esteve presente nos anos mais duros da doença, que tem filhos de relacionamentos anteriores, mas que era casada com o falecido até o momento de sua morte. E quando menciono “casada” significa que há um registro de casamento civil, pouco importando se houve ou não uma cerimônia religiosa, ou festa, ou comunicação ao demais familiares. Mesmo com a alegada ausência no trato com a doença, os filhos do falecido ganhariam a causa? Dificilmente. Mais certo que a briga judicial ganhasse contornos de uma briga familiar sem consequências mais graves. Além disso, jamais um testamento legando uma casa para uma instituição de caridade, como no caso citado, poderia ser feito. Pois o cônjuge é herdeiro necessário e concorreria em pé de igualdade com os filhos do falecido. Eventualmente, ainda que para justificar a ausência ao longo da doença os filhos conseguissem provar uma separação de fato – uma separação não consumada com o divórcio legal –, os direitos da cônjuge estariam intactos.
Quem imagina a situação, logo pensa que, no caso citado, a requerente agia de má fé. Hipótese possível, mas também não se pode descartar que a ex suposta companheira talvez estivesse mesmo mal informada. O relacionamento pode ter sido para ela uma união estável, com expectativa de futuro casamento; enquanto para ele pode ter sido apenas um namoro.
E atenção: um namoro, ainda que prolongado, não constitui união estável. Essa ideia tem sido muito propagada, mas é falsa. Um namoro recente não é considerado união estável simplesmente porque duas pessoas que estão namorando resolveram morar juntas. Implícita na concepção do que seja a união estável está a durabilidade, a fidelidade, a união de propósitos. Nem mesmo um filho pode ser a prova de união estável. Uma vez que a paternidade foi declarada ou comprovada, a criança tem todos os direitos garantidos, mas seus pais não têm, em função disso, os direitos e deveres recíprocos que caracterizam a união estável e o casamento.
Por mais que a lei proteja a família – e realmente o faz – ao reconhecer as uniões estáveis, ainda não se pode falar de simetria de direitos. Aspectos como durabilidade, união de propósitos, auxílio mútuo, respeito ainda estão mais bem provados legalmente por meio de uma certidão de casamento.

Por: Ivone Zeger
Fonte: http://zeger.jusbrasil.com.br/artigos/148145205/juntada-nao-e-casada?utm_campaign=newsletter-daily_20141028_258&utm_medium=email&utm_source=newsletter