Em
artigo publicado no dia 18 de novembro de 2014 nesta
ConJur,
o professor Lenio Luiz Streck escreveu que os dispositivos do Projeto
do novo Código de Processo Civil que tratam da separação judicial seriam
inconstitucionais. Argumenta que a “separação foi varrida do mapa
jurídico” em razão da EC 66/2010. Diz, ainda, que o projeto quer
“ressuscitar” o instituto “ao mundo dos vivos”. Afirma, também, que a
regulamentação do procedimento da separação seria uma violação ao estado
laico.
Discordamos do eminente articulista. Seu texto é fundado
na premissa de que, no ponto, o projeto do novo CPC seria contrário ao
§6º do art. 226, com redação atribuída pela EC 66/2010. Partimos de
premissa diversa. A alteração constitucional, aplaudida por todos,
acabou com o sistema dual
obrigatório que vigorava no Brasil, mas não proibiu, não vedou, não impediu duas pessoas casadas de, apenas, se separarem.
E
isto por uma premissa essencial no âmbito do Direito Constitucional de
que o Estado não pode invadir a intimidade e privacidade das pessoas. A
título exemplicativo, poderíamos indicar a linha de precedentes iniciado
na
US Supreme Court pelo caso
Griswold v Connectictut (381 U.S. 479, 1965), passando por
Eisenstadt v. Baird (405 U.S. 438, 1975),
Roe v Wade (410 U.S. 113, 1973) em que se consolidou a
ratio decidendi,
embasada na 14ª Emenda da Constituição daquele país, de que o Estado
não poderia invadir a escolha das pessoas no que tange ao controle de
sua natalidade. Consolidou-se a autonomia privada e a impossibilidade de
que o Estado invada suas escolhas.
Voltando-se ao âmago da
questão em comento, o Estado não poderia, especialmente por ser Laico e
respeitar a autonomia privada de nossos cidadãos, impedir que as
pessoas, por livre escolha, optem pela separação judicial, caso não se
sintam preparadas para o divórcio e isto somente diz respeito ao casal e
as suas escolhas. E, para demonstrar isto, podemos traçar um breve
histórico.
Antes da alteração constitucional os brasileiros eram
obrigados a observar o chamado “prazo de dureza”, herdado do Direito
Canônico. Tinham, portanto, obrigatoriamente, antes de buscar a extinção
do vínculo pelo divórcio, de se submeter à separação, seja a jurídica,
seja a de fato.
A EC 66/2010 acabou, sim, com essa obrigatoriedade
e, com isso, como diz o articulista, “ponto para secularização”. Mas
isso não significa, ao nosso juízo, que a “separação foi banida do mapa
jurídico”.
O sistema dual
obrigatório foi substituído pelo sistema dual
opcional,
facultativo.
Nesta nova quadra da história do direito brasileiro, o casal pode
optar, desde logo, por se divorciar; como também, se essa for a livre
vontade comum, optar por, apenas, se separar judicialmente.
Diferentemente do cenário anterior, não existe mais a
proibição do imediato divórcio. Mas, isso é fundamental, o novo sistema também
não impõe
o imediato divórcio. Assim, a separação consensual está mantida. E esta
ainda é, com frequência, depois de mais de quatro anos de vigência da
nova redação do parágrafo 6º do artigo 226, utilizada por muitos casais
país afora, sendo salutar que, justamente em razão disso, o novo Código
de Processo Civil continue a regular o seu procedimento.
O texto
constitucional diz expressamente que o divórcio pode ser decretado
independentemente da separação prévia. Não diz, contudo, que a separação
prévia está proibida. Eis o texto da Constituição: “O casamento civil
pode ser dissolvido pelo divórcio.” Esse é o ponto.
O sistema dual
obrigatório antes da EC 66/2010 era lamentável, uma verdadeira afronta à
autonomia privada das partes, assegurada em nossa Constituição. A
principal virtude da alteração do artigo 226 da Constituição foi
justamente permitir que as pessoas decidam como e quando irão extinguir o
vínculo do casamento.
E é justamente a autonomia privada das
partes e a proibição de que o Estado invada a privacidade dos cidadãos
que nos impede de concordar com qualquer interpretação do parágrafo 6º
do artigo 226 da Constituição que desprestigie o livre querer do casal.
Não é admissível que a tal secularização sacrifique a liberdade!
O
casal é livre para decidir sua vida. Livre para se divorciar ou livre
para se separar. Pensar diferentemente é concordar com a instituição de
nova ditadura, inversa daquela existente no passado: a ditadura do
divórcio obrigatório.
Repetimos: se o casal,
consensualmente, por qualquer razão, até mesmo a religiosa, decidir apenas se separar, a Constituição não proíbe essa opção.
O
sistema dual opcional vigora em diversos países como a Bélgica,
Portugal, Espanha, França, dentre outros. Há diversos civilistas
renomados que sustentam que a separação consensual está mantida mesmo
depois da nova redação do parágrafo 6º do artigo 226 da Constituição,
como Regina Beatriz Tavares da Silva, Maria Helena Diniz, Youssef Said
Cahali e Walsir Edson Rodrigues Jr.
A
V Jornada de Direito Civil
de 2010, que reúne diversos estudiosos sobre o assunto, aprovou o
Enunciado 514 nos seguintes termos: “A Emenda Constitucional 66/2010 não
extinguiu o instituto da separação judicial e extrajudicial”.
Até
mesmo o CNJ, quando provocado pelo Instituto Brasileiro de Direito de
Família (IBDFAM) para que vedasse aos notários a celebração de
escrituras de separação, ressaltou que a separação não foi extirpada do
sistema jurídico (pedido de providências 0005060-32.2010.2.00.0000). A
consulta a diversos tribunais do país comprova a sua recorrente
utilização.
A interpretação mais adequada da EC 66/2010 não é a
que prega a proibição da separação consensual. O fim da separação em
todas as suas modalidades, seja a obrigatória ou opcional, foi, apenas,
mencionada na justificativa da proposta da EC 66/2010.
Mas com
todo respeito à obra e à pessoa do admirável ex-deputado federal Sérgio
Barradas Carneiro, que deu início a então proposta de alteração
legislativa, é consenso que a vontade do legislador
(mens legislatoris)
não deve prevalecer sobre as demais regras de interpretação do texto
constitucional, sem olvidar que as leis vivem um processo de
aprendizagem social constante que as desgarram, em sua interpretação, da
intenção dos elaboradores dos textos.
Ademais, é de conhecimento
geral que o parlamento bicameral funde-se em opiniões múltiplas, de modo
que o resultado final do processo legislativo quase sempre é bem
distante da vontade originária do autor do projeto.
Dizer que a
separação acabou é o mesmo que dizer que as disposições contidas nos
artigos 1.571 a 1.578, 1.580 e 1.704 do Código Civil não foram
recepcionados pela nova disposição constitucional, assim como o disposto
nos artigos 1.120 a 1.124-A do CPC/73. Isso parece um grande exagero.
Ocorre que a interpretação do parágrafo 6º do artigo 226 da CF deve observar o
princípio da continuidade
da ordem jurídica. E, neste caso, não há como em um passe de mágica se
desprezar toda a ordem jurídica infraconstitucional que trata da
separação. O
princípio da continuidade da ordem jurídica deve
ser observado na interpretação da alteração da norma constitucional,
como já advertiu Luis Roberto Barroso (
Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 141). Em outras palavras, extirpar a separação é ferir o
princípio da continuidade, já que a dissolução da sociedade conjugal sempre existiu no Brasil e ainda existe.
Vale
lembrar que quando a separação foi tratada pelo CPC de 1973, o texto
constitucional proibia o divórcio e nem por isso o diploma processual
foi tido como inconstitucional.
As pessoas decidem (apenas) se
separar pelas mais diversas razões. Alguns, como já dito, por opção
religiosa, outros pela incerteza da decisão. O fato é que o divórcio
acaba definitivamente com o casamento, enquanto que a separação põe fim
apenas ao regime de bens e aos deveres conjugais.
A separação
consensual está viva e a regulamentação do instituto no Projeto do
Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados, onde o projeto esteve
sob a relatoria do Deputado Paulo Teixeira, merece todos os nossos
aplausos.
Prestigiar o direito de liberdade, a autonomia privada
dos cidadãos, não ofende a secularização. E por isso mesmo que nenhum
texto legislativo proíbe a separação, pois tal dispositivo, este sim se
existisse, certamente seria inconstitucional. Talvez, com o passar do
tempo, a separação caia em desuso, mas isso será uma resposta natural da
sociedade e não uma imposição de legisladores ou intérpretes.
Esperamos
que o Senado Federal, prestigiando a liberdade de escolha dos
destinatários da norma, no ponto, mantenha a versão apresentada pela
Câmara dos Deputados. Daqui, estaremos prontos para dar aos Senadores
nossos mais efusivos aplausos.
Lauane Andrekowisk Volpe Camargo é advogada no escritório Volpe Camargo Advogados Associados e doutora em Direito Civil pela PUC-SP.
Dierle Nunes é
advogado, doutor em Direito Processual, professor adjunto na UFMG e
PUCMinas e sócio do escritório Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes
Advocacia (CRON Advocacia).
Luiz Henrique Volpe Camargo é advogado, mestre e doutorando em Direito Processual Civil pela PUC-SP.
Revista
Consultor Jurídico, 24 de novembro de 2014, 7h52
http://www.conjur.com.br/2014-nov-24/regulamentacao-separacao-consensual-cpc-merece-aplausos