sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Charlie Hebdo, mídia e democracia autodestrutiva



Não é apanágio da mídia ser ambivalente. Praticamente todas as coisas são dotadas de alguma ambivalência. No entanto, chama-se a atenção para este seu aspecto no que diz respeito à Democracia, sua construção e, mais importante, sua manutenção.
Os diversos recursos midiáticos (imprensa em suas várias vertentes, televisão, teatro, internet, redes sociais, rádio etc.) podem ser e são veículos excelentes para a promoção do debate democrático e para a disseminação de mensagens positivas. Não obstante, também podem facilmente descambar para o lado oposto, defendendo ideologias antidemocráticas, insuflando anarquia e, mais intensamente ainda, contribuindo para a fixação de um pensamento único de interesse de dado setor social ou da própria mídia. Aqui também entra em jogo a questão do poder financeiro que se impõe nos meios midiáticos, seja no que diz respeito à posse desses meios, seja em seu financiamento, sua mantença em viabilidade econômica, que se dá pela publicidade, e então a esfera de influência do poder financeiro se amplia sobremaneira. Muitos, para não dizer a grande esmagadora maioria dos veículos de mídia são reféns do poder financeiro privado e/ou público. Nos grandes centros as propagandas dos governos centrais e suas agências, bem como das grandes empresas e conglomerados econômicos são capazes de ditar tranquilamente os rumos da mídia. Nas pequenas cidades interioranas a situação é ainda pior, principalmente sob o prisma público. Pequenos jornais impressos ou programas radiofônicos, por exemplo, vivem praticamente de financiamentos públicos da municipalidade executiva ou do Poder Legislativo municipal. O dano à real atuação da mídia em prol de uma Democracia nessa conjuntura é mais que evidente.
Além disso, surge a tormentosa questão da Liberdade de Expressão que invariavelmente conduz àquela bifurcação entre dois extremos: a ilimitação dessa liberdade e seus efeitos destrutivos para a Democracia e a limitação exagerada, o controle milimétrico ou domínio que mata a referida liberdade e, juntamente com ela, a Democracia.
Todorov é incisivo sobre o tema:
“A liberdade de expressão certamente tem seu lugar entre os valores democráticos, mas é difícil imaginar como se poderia fazer dela o fundamento comum desses valores. Tal liberdade representa uma exigência de tolerância integral (nada do que se diz pode ser declarado intolerável), e portanto um relativismo generalizado de todos os valores: ‘Eu reclamo o direito de defender publicamente qualquer opinião, assim como  o de denegrir qualquer ideal’. Ora, cada sociedade precisa de uma base de valores compartilhados: substituí-los por ‘eu tenho o direito de dizer tudo o que quiser’ não basta para fundamentar uma vida em comum. Evidentemente, o direito de subtrair-se a certas regras não pode ser a única regra a organizar a vida de uma coletividade! ‘É proibido proibir’ é uma bela frase, mas nenhuma sociedade pode limitar-se a ela.
Ao lado da liberdade de escolha que ele proporciona aos seus cidadãos, o Estado tem (ou deveria ter) outros objetivos: proteger-lhes a vida, a integridade física e os bens, combater as discriminações, atuar levando em conta a justiça, a paz e o bem – estar comuns, defender a dignidade de todos. Por esse motivo, como Burke já sabia bem, a palavra ou as outras formas de expressão sofrem restrições, impostas em razão dos outros valores aos quais a sociedade adere.
Se levarmos a sério essas reservas quanto ao caráter absoluto da liberdade de expressão, estaremos obrigados a ir até o outro extremo e exigir que a lei, ou o poder público, controle tudo? Estaremos condenados a escolher entre caos libertário e ordem dogmática?  Não creio. Trata-se antes de afirmar que a liberdade de expressão deve ser sempre relativa – às circunstâncias, à maneira de expressar-se, à identidade daquele que se expressa e daquele que descreve seu propósito. A exigência de liberdade só ganha sentido em um contexto – e os contextos variam enormemente”.  [1]
O episódio referente ao pasquim francês “Charlie Hebdo” em que cartunistas e funcionários foram massacrados por terroristas muçulmanos em represália a charges consideradas desrespeitosas às crenças islâmicas é extremamente paradigmático. É paradigmático em vários aspectos. Releva abordar alguns deles:
Um primeiro viés é a questão da força midiática que um acontecimento pode adquirir, tornando-se uma verdadeira febre, mas também, como toda febre, passageira, sempre que não mate o doente. Um pasquim sem qualquer representatividade considerável, do dia para a noite se transforma em um símbolo e em uma causa global. Suas tiragens sobem de alguns milhares de exemplares para milhões, mesmo assim esgotando-se logo na primeira parte da manhã do lançamento. É a força da mídia que, como já dito anteriormente, pode ser uma arma para a Democracia ou sua destruição. Ao mesmo tempo essa força midiática demonstra uma sua fraqueza inerente à fluidez do mundo contemporâneo. Da mesma forma que o episódio ganhou o mundo, repentinamente desaparece sem deixar vestígios e certamente suas tiragens não seguirão com milhões de exemplares por um tempo largo. Usando uma imagem, a mídia é hoje como um prato largo e raso, é marcada por uma dimensão de propagação enorme, mas extremamente superficial.
Também é exemplar quanto à ignorância e à absoluta impossibilidade de compreensão das ações terroristas onde pessoas são mortas e outras fazem questão de se matar em nome das mais diversas crenças de natureza religiosa, ideológica, política etc. A absurdidade dessas atuações não merece sequer maiores comentários. Trata-se daquilo que é notório.
O que resta é mesmo a discussão acerca da amplitude e adequação da Liberdade de Expressão na mídia. Retomar a questão dos limites da liberdade que são a ela inerentes ao ponto de que, ao serem removidos, simplesmente se causa a derrocada da própria liberdade, seja ela de expressão ou outra qualquer.
Mais uma vez o caso “Charlie Hebdo” é exemplar porque demonstrou como a mídia tem o poder de apresentar um fato sob um único ângulo, criando uma polarização entre bem e mal de viés maniqueísta e erigindo vítimas “inocentes”, quando a inocência é algo muito raro de se encontrar na humanidade ao longo da história e, consequentemente, na contemporaneidade.
Neste ponto é preciso frisar e deixar muito, muito claro que não se está afirmando (mesmo porque seria o absurdo dos absurdos) que há entre cartunistas e terroristas uma relação vitimaria recíproca. Não. Terroristas assassinos não passam disso. Terroristas assassinos e nada mais. Não são vítimas de coisa alguma, a não ser de sua própria consciência deturpada e enlouquecida. Certamente sejam vítimas de uma doutrinação fanática, mas mesmo neste ponto há sempre uma escolha inicial e continuada pela qual as pessoas devem responder. É exatamente contra a irresponsabilidade em todas as suas vertentes que este texto se levanta com maior vigor, como se poderá facilmente perceber.
O ponto fulcral a respeito da divulgação unilateral do acontecimento em destaque não está em afirmar que os atos terroristas e o homicídio possam, de alguma forma, ser compreensíveis, justificáveis ou mesmo resultado de uma vítima provocadora – categoria conhecida nos estudos vitimodogmáticos da vitimologia. Conforme esclarece Oliveira, a vitimodogmática se dedica no momento atual à perquirição da atuação contributiva da vítima para o evento criminoso. Assim também pesquisa as consequências que a contribuição vitimal deve ter quando do estabelecimento da pena ao infrator, o que pode variar de uma absoluta isenção até uma pequena atenuação. [2] A “vítima provocadora”, segundo a reconhecida classificação de Benjamin Mendelsohn, é também conhecida como “voluntária ou imprudente” porque “colabora com os fins pretendidos ou alcançados pelo delinquente”. [3]
Por óbvio a reação terrorista assassina não guarda de forma alguma proporção com eventual ofensa sentida devido às charges do pasquim. Sequer imaginar que possa haver a eventualidade de uma espécie de atenuação, por mínima que seja, para a punição de atos que tais (acaso os terroristas estivessem vivos) é totalmente indefensável. Não se trata disso de forma alguma.
Quanto se fala na unilateralidade e no maniqueísmo da divulgação midiática do episódio e de sua recepção acrítica pela maioria das pessoas, não se está fazendo referência ao caso pretendendo uma relação entre as duas condutas (dos terroristas e dos cartunistas). Na verdade, estas devem ser analisadas separadamente. Quanto aos terroristas sicários, como já mencionado, a condenação de seus atos deve ser veemente e irredutível. No entanto, isso não tem o condão de tornar a atitude dos cartunistas e do pasquim algo aceitável e moralmente irrepreensível como uma manifestação da alardeada Liberdade de Expressão sem limites. Como já visto, essa liberdade sem limites, seja a de expressão ou qualquer outra, corresponde à negação da própria liberdade e, consequentemente, dos ideais democráticos. A ocorrência do ataque é um exemplo trágico de como a exacerbação de uma liberdade pode, ainda que de forma totalmente injustificável, gerar uma reação exacerbada, tresloucada, insana mesmo de outro lado. Não seria melhor, prevenir do que fazer protestos ulteriores com uma fila de cadáveres às costas? Acreditar num mundo em que as pessoas vão dar a outra face é de um fanatismo religioso alienante inacreditável por parte exatamente de pessoas que se dizem totalmente avessas a essa espécie de influência fideísta.     
Como bem destaca Schuon:
“Com efeito, oferecer a face esquerda àquele que feriu a face direita, não é coisa que possa ser posta em prática por uma coletividade social em vista de seu equilíbrio, e só tem sentido a título de atitude espiritual, somente o espiritual põe-se resolutamente além do encadeamento lógico das reações individuais”. [4]
Aqui é possível novamente constatar como a Democracia pode ser também tão utópica quanto outros regimes que são marcados por um totalitarismo em busca de um ideal a ser imposto. Não passa de puerilidade pretender crer que numa convivência de homens haverá uma tolerância ilimitada. Crer nisso é o primeiro passo para, como em qualquer utopia encantadora de espíritos juvenis, projetar um “Paraíso Terrestre” e erigir um “Inferno”.
Para perceber isso nem é preciso levar a tese doidivanas da Liberdade de Expressão ilimitada ao seu paroxismo. Mesmo assim vale a pena expor a situação numa argumentação “ad absurdum”.
Sabe-se que a Liberdade de Expressão não se reduz ao falar e escrever. Também a compõe a produção artística em suas mais variadas espécies que não se resume à literatura, às artes cênicas e ao jornalismo, mas passa pela pintura, pela escultura, pela fotografia etc. Também pode a Liberdade de Expressão ser manifestada por meio de ações e omissões corporais como, por exemplo, uma greve de fome, um protesto em que as pessoas caminham pelas ruas com cartazes ou atitudes físicas. Ora, se uma pessoa defende a liberdade absoluta, irrestrita, ilimitada de expressão, então deveria estar pronta para admitir que os terroristas estavam, ao matarem as pessoas cruelmente, apenas exercendo seu direito ilimitado de expressão! – lembremos que estamos numa argumentação “ad absurdum”.  Isso soa e é medonho, mas é uma consequência do pensamento pueril e irresponsável de todo aquele que advoga uma Liberdade de Expressão absoluta. Aqui se pode usar bem apropriadamente, já que houve um choque entre charges e uma dada religião, a passagem bíblica em que Jesus pede ao Pai que perdoe seus algozes porque “eles não sabem o que fazem” (Lucas 23.34). Realmente quem defende a tese de uma Liberdade de Expressão ou outra qualquer ilimitada não sabe o que faz. Não passa de um infante de tenra idade brincando com um punhal.
O episódio “Charlie Hebdo” mostra bem cristalinamente que os terroristas eram e são todos loucos, mas esses sujeitos que se acham engraçados são uns inconseqüentes e canalhas da pior espécie que se escoram numa suposta liberdade absoluta de expressão a fim de manter uma pose revolucionária e iconoclasta através da qual podem lucrar financeiramente e ganhar prestígio em certos meios. Não se sabe sequer se realmente creem em seus supostos ideais, assim como também não se sabe se os fanáticos religiosos têm realmente fé, já que não deixam a questão de punir os incrédulos ou de perdoá-los à divindade que veneram.  Não há pena de morte por ser canalha, carreirista, caçador de prestígio e oportunista e abusar de um direito, ofendendo gratuitamente a crença alheia (ao menos na França), por isso os terroristas são facínoras. No entanto, essa espécie de "beatificação" desse pessoal do pasquim que ocorreu após a morte também não procede. O brocardo latino que nos ensina que “mors omnia solvit” (a morte dissolve tudo) tem seu limite. Nem os cartunistas se tornaram santos após a morte, nem os terroristas podem ser desculpados só porque morreram. Suas memórias devem corresponder às respectivas perversidades de suas existências. É claro que numa classificação os terroristas vão muito além na perversidade, mas isso não elimina a perversão dos cartunistas.  Além do mais, é visível que os responsáveis pelo “Charlie Hebdo”, se já exploravam esse campo religioso com ofensas para capitalizar; agora os que sobraram estão ganhando horrores em cima da morte dos colegas irresponsáveis, o que é de uma imoralidade enojante. Principalmente quando o fazem sob o manto de uma suposta defesa do ideal da Liberdade de Expressão e da não – violência.  É triste ver o mundo dividido em grandes contingentes de imbecis puros e imbecis assassinos.
Matar é errado. Ser canalha e ofensivo é também errado. Se eu xingar alguém de um palavrão isso não é emanação da "liberdade de expressão" nem aqui, nem na China, nem na França, nem na Revolução Francesa. É injúria. Nenhum direito é ilimitado ou absoluto. A questão é apenas e simplesmente essa. Se eu achar que o nudismo é adequado eu não posso incomodar as demais pessoas andando pelado pela rua como exercício do meu suposto "direito de expressão". Há exercício de direito e Abuso de Direito, essas são categorias jurídicas, inclusive para quem se mete a palpitar sobre o que desconhece. Além do mais, antes de falar na Revolução Francesa como a grande precursora de direitos fundamentais é bom lembrar todos os guilhotinados, dentre eles os seus próprios idealizadores num momento posterior. Sem ideologias, sem modismos, sem politicamente correto: terrorismo é abominável, homicídio idem, mas também é abominável, não punível com morte, mas com desprezo moral, o desrespeito pelas pessoas. Há muitas formas de fazer humor, há muitas formas de fazer inclusive crítica sobre religião e até pregar ateísmo, não há necessidade alguma dessa apelação horrorosa e pornográfica característica do pasquim “Charlie Hebdo”.
Um crente, seja ele muçulmano, católico, protestante ou o que for tem para si as divindades como parte de seu ser mais profundo e uma ligação não somente mística, mas afetiva também como as relações entre pais e filhos. Quem defende esse tipo de liberdade de expressão deveria então concordar em enviar uma foto do próprio pai ou da própria mãe com uma autorização registrada em cartório para que o “Charlie Hebdo” ou qualquer outro folheto similar, as adulterasse e apresentasse numa publicação ou na internet, por exemplo, numa cena algo similar àquela de uma das publicações que mostra Deus Pai, Jesus cristo e o Espírito Santo em um ato homossexual. Digo claramente uma coisa: se a pessoa disser que concordaria com isso em nome da "liberdade de expressão" só há duas hipóteses: 1) Está mentindo e não tem caráter algum; 2) Está dizendo a verdade e não tem caráter algum.
Também qualquer um que tenha a desfaçatez de defender terroristas que matam pessoas por aí afora a torto e a direito sofre de demência e não merece nem mesmo discussão. O que fica um pouco obscurecido é essa questão da liberdade de expressão e seus limites. É estritamente sobre esse aspecto que se deve chamar a atenção. Aliás, os terroristas com seus atos tresloucados têm a "capacidade" (sic) exatamente de colocar um véu sobre a intolerância, a falta de respeito, o abuso do direito de expressão ínsitos a essas espécies de publicação. Transformam canalhas ofensores e intolerantes "de caneta e tinta" em mártires de sangue vitimados por metralhadoras. Esse é o "dom" (sic) do terrorista assassino em sua "inteligência privilegiada" (sic).
Sobre os terroristas é preciso denunciar que há realmente, por incrível que possa parecer, pessoas empenhadas em “justificar” (sic) seus atos. São os defensores doentes e cegos do chamado “multiculturalismo”. Como bem demonstra Garschagen, não é possível “relativisar” o atentado terrorista. Este e outros atos similares não constituem “uma reação compreensível diante do histórico de ações cometidas contra os países muçulmanos pelos governos de países ocidentais”. [5] Não fosse somente pela morte e lesão a inocentes, bastaria o fato de que nada do que ocorre entre oriente e ocidente é unilateral. No seio das próprias comunidades, nações e países ofendidos há pessoas, políticos, governantes etc. que são tão ou mais responsáveis por qualquer coisa que se descreva como opressão ou exploração. Bem destaca o já citado Garschagen, usando o ensinamento de Darlymple, que “na imaginação empobrecida dos multiculturalistas, todos os que não pertencem, por nascimento, à cultura predominante estão empenhados numa luta conjunta contra a hegemonia opressiva e ilegítima”. [6] Com essa mentalidade os ataques terroristas podem passar por uma espécie de “guerra ou guerrilha justa”, o que é, para dizer o menos, um disparatado absurdo, ou, para dizer o correto, usando um neologismo, uma “ideolorréia” fedegosa e insuportável.
A verdade é que esse assunto relativo ao caso “Charlie Hebdo” enoja de ambos os lados e, como já visto, é paradigmático da derrocada interna da Democracia, ocasionada pela exacerbação de seus próprios ideais. Não é possível aderir de forma acrítica a uma postura de quem pensa que o "Direito de livre expressão" consiste em socar o ar revolucionariamente e gritar "liberdade de expressão ilimitada"! É bem verdade que em nosso país, além de Pelé quando comemorava gols, há muita gente socando o ar e pensando que isso pode criar um "mundo melhor" (obviamente gente com sérias limitações mentais, embora ocupando cargos importantes). Não obstante, não podemos nos deixar contaminar por "palavras de ordem" e chavões irrefletidos. Enfim, liberdade de expressão, como já dito e repetido e como todo e qualquer direito individual ou coletivo, não é absoluta, tem restrições. Aliás, qualquer liberdade absoluta implica obviamente no cerceamento da liberdade alheia. Uma das primeiras lições que qualquer jejuno em Direito ou em Filosofia aprende é que a liberdade somente é viável mediante mecanismos para sua própria restrição e controle. É um paradoxo sim, mas há muitos paradoxos e complexidades na convivência humana harmônica. Tudo isso apenas para dizer que a questão da liberdade de expressão é muito, muito mais complexa do que um conceito chapado e ilimitado, consistente numa espécie de "grito de guerra revolucionário" protegido de qualquer visão crítica, debate, questionamento ou limitação. Ademais, já de cara, tal capa "protetiva" (sic) tornaria o conceito de "liberdade de expressão" autofágico no exato momento em que ele mesmo seria afastado de qualquer discussão. Para comprovar isso bem rapidamente qualquer pessoa interessada pode e deve ler o que já se escreveu sobre o assunto. Perceberá que a produção a respeito e as questões polêmicas sobre o alcance e o limite da liberdade de expressão na seara jurídica, filosófica, sociológica, cultural, artística etc. é simplesmente inabarcável no período de uma vida humana. Claramente, portanto, não se trata de sair por aí gritando "liberdade de expressão"! Como a bibliografia é inabarcável, apenas vou indicar alguns livros essenciais para que se tenha uma noção básica do assunto e se perceba a sua complexidade: 1)Liberdade de Expressão - Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no Sistema Social, de Jónatas E. M. Machado, Editora Coimbra (essa obra do catedrático português, Jónatas Machado tem simplesmente 1.196 páginas! Eu não errei na digitação, são mesmo 1.196 páginas.). Creio que um gritinho revolucionário não daria material para isso. 2)A Ironia da Liberdade de Expressão, do autor anglo - saxão, Owen Fiss; 3)Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio, da autora brasileira Samantha Meyer Pflug Ribeiro; 4)Aeropagitica - Discurso sobre a liberdade de expressão, Clássico de John Milton, e 5) o muito bem lembrado por Fontes em seu texto de extrema qualidade e sensatez, [7] “Cartas Sobre  Tolerância”, de John Locke. Se a pessoa tiver a curiosidade de passar os olhos somente nestes livros já perceberá a vergonha em que consiste sair por aí dando soquinhos no ar e gritando "liberdade de expressão" como se isso fosse um conceito simples, chapado e infenso a limites e discussões as mais variadas nos mais diversos campos do saber humano. [8]
Mas, será que o campo do humor não seria dotado de uma maior flexibilidade sob o pretexto de que tudo que é ali dito, escrito, desenhado etc. é feito com o intuito meramente jocoso?
É claro que não, sob pena de criar uma válvula de escape para o abuso de direito no que tange a ofender pessoas e grupos impunemente, alegando que é apenas uma “brincadeirinha”. Lidar com humor é trabalho sério.
Quando alguém tem a impressão pessoal de que não há possibilidade de ofensa quando se está no campo do suposto humor, deve ser convidado a viver de acordo com ela. Afinal, uma dada visão filosófica ou política defendida por alguém só pode ter alguma validade se tal pessoa ou grupo é capaz de viver de acordo com seus próprios preceitos. Do contrário trata-se apenas de palavras da boca para fora, ou de regras boas para os outros, mas não para mim ou para o meu grupo.  Quando um indivíduo fizer uma piada bem ofensiva, inclusive com conotações sexuais bem grosseiras com sua mulher ou namorada na sua frente sem qualquer respeito, ria simplesmente, com sua mãe, com seu pai ou seu filho doente, ria adoidado, especialmente se ele o fizer por anos e anos a fio, vá rindo. Acho que até mesmo seus familiares o desprezarão, sua mulher pedirá o divórcio porque estaria casada com um “banana”, um “frouxo”, um pusilâmine, sua namorada terminaria o namoro pelo mesmo motivo acima.  Percebe? Apenas se trata de lidar com a realidade do mundo da vida e não com ideias vagas e flutuantes. Uma filosofia, um pensamento somente tem validade se a pessoa ou grupo que o expressa é capaz de com ele viver. Mas, sinto dizer que no caso de ofensas tão brutais como as do “Charlie Hebdo”, se a pessoa for capaz de viver da forma que apregoa, não haverá outra coisa para lhe ser conferida a não ser um desprezo muito grande. Talvez, pelo fato de algumas pessoas não terem crenças, pensem que é diferente no que tange à religião, mas não é. O problema nesse caso é uma falta de empatia e uma insensibilidade e incapacidade de se colocar no lugar do outro. Cada um sabe seus limites, as coisas que lhe são importantes, aquilo que é capaz de suportar e não é possível julgar os outros pela nossa medida. Há limites e são limites humanos para tudo, inclusive o humor de bom e de mau gosto. Não penso que o tema da religião ou qualquer outro deva ser alijado ou proibido em charges, piadas etc. Mas, há limites para tudo. A charge do “Charlie Hebdo” é tão repulsiva que não é sequer engraçada, é apenas pornográfica e sem qualquer sentido.
Como bem expõe Antier, trazendo à baila a doutrina de Spinoza:
“Mas há risos e risos. Em sua Éthique, Spinoza denuncia o riso que se transforma em deboche, que menospreza, que ridiculariza. Opostamente , ele exalta o riso alegre que explode da pessoa feliz, e que é ‘uma pura alegria’, uma virtude”.  [9]
 Como já disse anteriormente, mas agora retomando a questão da coerência entre ideias e vida prática, permita a alguém postar uma imagem semelhante àquela do “Charlie Hebdo”, onde se retrata a trindade cristã em atos homossexuais recíprocos, manipulando fotos de familiares seus, talvez com você no lugar do Cristo e o pênis de um ancestral seu falecido introduzido no seu ânus, na sua frente seu pai sendo sodomizado por você. O que acharia disso? Engraçado? A intenção seria apenas humorística? Ora, mas é religião e você é ateu, então essas figuras não são importantes "para você". Mas, a questão não é você ou eu; é o crente. Para ele essas figuras não são abstrações ou superstições são algo sagrado e muito, muito relevante em sua vida, muitas vezes e para muitas pessoas a única coisa relevante. Essa charge horrorosa é apenas um exemplo. O fato de que você leitor, eu ou seja lá quem for não tenha alguma fé nada, absolutamente nada tem a ver com a permissividade quanto ao desrespeito grave da religião alheia. Quando se fala em intolerância somente se pensa no lado do religioso fanático, mas há o fanatismo, o dogmatismo ateu também que se expressa nessas formas de desrespeito graves em manifestações supostamente "artísticas" (sic), “humorísticas” (sic) e às vezes também em agressões. A intolerância geralmente tem duas faces. Isso é preciso compreender. Não se trata aqui propriamente ou exclusivamente de religião, de certo ou errado em termos dogmáticos desta ou daquela orientação, mas de viabilização de uma convivência humana pacífica. Também não é possível em época de eleições marcar comícios de dois partidos opostos no mesmo lugar e na mesma hora. É pedir violência. A liberdade política também tem limites óbvios, o mesmo se podendo afirmar com relação à religiosa, ao culto, à expressão etc. São questões muito complexas que não podem ser resolvidas com frases feitas oriundas do pensamento raso e rasteiro do “politicamente correto”.

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Charlie Hebdo, mídia e democracia autodestrutiva . Jus Navigandi, Teresina, ano 20, n. 4228, 28 jan. 2015. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/35888>. Acesso em: 30 jan. 2015.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Pensão por morte não pode ser paga ao mesmo tempo à viúva e à concubina

É vedada a concessão simultânea de pensão por morte à viúva e à concubina. Isso porque, de acordo com jurisprudência dos tribunais superiores, não é possível o reconhecimento de união estável com outra pessoa na constância do casamento.
Esse foi o entendimento aplicado pela 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região ao negar pedido de pensão por morte a uma mulher que declarou ter mantido união estável com servidor público morto.
A autora alegou que durante 24 anos manteve relacionamento com o auditor fiscal do trabalho, que estaria separado de fato de sua esposa. Disse que era economicamente dependente do falecido, com quem teve um filho em 1978, reconhecido apenas em dezembro de 1988, após a nova Constituição, que passou a permitir o reconhecimento de filhos havidos fora do casamento, mesmo na constância do vínculo matrimonial, o que antes era proibido.
Após a morte do auditor fiscal, a pensão foi paga à sua mulher legal. A interessada afirma que somente veio a requerer a pensão por morte, quando a esposa morreu, porque acreditava não ter direito ao benefício por não ser casada oficialmente com o segurado.
Indagada sobre como se mantinha desde a morte do companheiro, ela respondeu que contava com a ajuda das filhas e que recebia benefício previdenciário. Ficou constatado no processo que ela recebe atualmente pensão por morte de sua filha desde 1994, aposentadoria por idade desde 2000 e pensão por morte de outro companheiro desde 2003. Antes disso, recebia pensão por morte de seu cônjuge, falecido em 1971, cessado em 2003 por acumulação indevida de benefícios.
Ao analisar o caso, a 1ª Turma do TRF-3 confirmou sentença que negou o benefício à autora da ação por verificar que, além do relacionamento com ela, o auditor manteve o casamento com outra. Na decisão, o colegiado cita jurisprudência dos tribunais superiores no sentido de que não é possível o reconhecimento de união estável com outra pessoa na constância do casamento. Com informações da Assessoria de Imprensa do TRF-3.
Processo 2010.60.05.003519-1/MS

Revista Consultor Jurídico, 25 de janeiro de 2015, 7h00
http://www.conjur.com.br/2015-jan-25/viuva-concubina-nao-podem-receber-mesmo-tempo-pensao-morte

domingo, 25 de janeiro de 2015

Apoio à pena de morte mostra falência da família e da escola

A pena de morte nunca saiu das cogitações das pessoas. No Brasil, e em outros dez países, ela é permitida em caso de guerra externa. Em outros 57 países, é praticada com frequência. Já 35 Nações permitem a pena de morte, mas não a executam há mais de dez anos.
A campeã na execução capital é a China, que não divulga o número de condenados. Avalia-se que são milhares. Mas o Irã, entre 2007 a 2012, executou 1.663 pessoas; a Arábia Saudita, 423; o Iraque, 256; os Estados Unidos, 220; Paquistão, 171; Iêmen, 152; Coreia do Norte, 105; Vietnã, 58; e Líbia, 39.
Fizéssemos uma enquete junto à população assustada pela violência, temerosa do dia de amanhã, com certeza a pena de morte seria aprovada. No Brasil, isso só aconteceria numa revolução. A vedação à pena capital para crimes comuns é cláusula pétrea, insuscetível de alteração na Carta Federal.
Compreende-se o pavor das pessoas comuns diante da crueldade gratuita que ceifa vidas preciosas. Toda vida é preciosa, mas o fato de sua interrupção em plena mocidade, apenas porque alguém drogado ou raivoso ou para roubar quis matar é algo que choca. Suscita revolta, desejo de vingança e invoca-se a velha lei taliônica: olho por olho, dente por dente.
Sempre fui contra a pena de morte, desde criança. Me convenci ainda mais depois de estudar Direito. Vida está acima do Direito, mesmo que ele seja titularizado pelo Estado. Vida é pressuposto à fruição de direitos. Tanto que podemos substituir o verbete "direito" por "bem da vida".
Então deixamos os homicidas, os estupradores, os facínoras todos impunes? Não. É preciso punir, quando certa a autoria. Mas também não adianta combater os efeitos, se as causas continuam a produzir uma geração desvairada. O criminoso é cada vez mais jovem. Os adolescentes infratores começam cada dia mais cedo.
Isso evidencia a falência da família, o naufrágio da escola, a insuficiência da Igreja e o descaso da sociedade. Esta clama por mais presídios, por redução da maioridade penal, por elevação das sanções e aderiria à pena de morte se consultada. Mas o que está fazendo para restaurar os valores, para fortalecer a família ou quem a substitua, para que a escola seja uma treinadora para um convívio harmônico em lugar de espaço de chateação, aborrecimento e despido de atrativos?
O governo não pode tudo. Aliás, há algum tempo, não tem podido quase nada. É a sociedade que deve arregaçar as mangas e assumir o controle da situação. Vamos por ordem na casa. A começar pela casa, o lar, o âmbito doméstico de onde têm saído os homicidas, os estupradores, os latrocidas e os traficantes. Só assim teremos perspectiva de tornar este Brasil a pátria fraterna, justa e solidária prometida pelo constituinte de 1988.

José Renato Nalini é presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 19 de janeiro de 2015, 14h30
http://www.conjur.com.br/2015-jan-19/renato-nalini-clamor-pena-morte-mostra-falencia-familia