terça-feira, 31 de março de 2015

Falta de audiência de conciliação não impede homologação de divórcio

A audiência de conciliação ou ratificação que antecede a homologação de divórcio consensual tem cunho meramente formal, e a sua falta não justifica a anulação do divórcio quando não há prejuízo para as partes. Essa foi a tese adotada pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça ao negar, por unanimidade, recurso pelo qual o Ministério Público do Rio Grande do Sul pretendia anular a homologação de um divórcio ao argumento de que a audiência de conciliação não fora feita.
O recurso refere-se a ação de divórcio consensual ajuizada em 2012, tendo sido comprovado que o casal já estava separado de fato desde 2001. A partilha, os alimentos e as visitas ao filho menor, então com 14 anos, foram estabelecidos de comum acordo. Por não haver pauta próxima para a audiência e por não verificar no acordo qualquer prejuízo às partes, especialmente ao filho menor, a magistrada considerou possível a imediata homologação do divórcio.
A decisão foi confirmada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. A corte estadual entendeu que a falta da audiência de conciliação poderia configurar, no máximo, mera irregularidade que não justificaria a anulação do processo devido à ausência de prejuízo.
O Ministério Público estadual recorreu ao STJ insistindo na obrigatoriedade da audiência, mesmo no divórcio consensual, com base no artigo 40, parágrafo 2º, da Lei 6.515/77 (Lei do Divórcio) e no artigo 1.122, parágrafos 1º e 2º, do Código de Processo Civil. O parecer do Ministério Público Federal foi pelo não provimento do recurso.
O relator, ministro Moura Ribeiro, apontou as diversas mudanças legislativas sobre o divórcio desde a lei de 1977 e destacou que a Emenda Constitucional 66/10, que ficou conhecida como PEC do Divórcio, deu nova redação ao artigo 226, parágrafo 6º, da Constituição Federal. O novo texto estabelece que “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”.
A alteração legislativa, segundo o ministro, simplificou o divórcio e eliminou os prazos para sua concessão, colocando em prática o princípio da intervenção mínima do estado no direito de família. “Cria-se nova figura totalmente dissociada do divórcio anterior”, afirmou Moura Ribeiro.
Com isso, o relator entendeu que as normas invocadas pelo MP-RS passaram a ter redação conflitante com o novo ordenamento ao exigir  uma audiência para conceder o divórcio direto consensual. Isso porque, não existem mais as antigas condições de averiguação de motivos e transcurso de tempo da separação de fato.
Nova interpretação
O MP-RS alegou no recurso que a EC 66 não revogou as disposições infraconstitucionais a respeito do divórcio consensual. O ministro Moura Ribeiro reconheceu que a Lei do Divórcio ainda permanece em vigor. Contudo, afirmou que a intenção do legislador foi simplificar a ruptura do vínculo matrimonial.
“Trata-se, em verdade, de nova interpretação sistemática em que não podem prevalecer normas infraconstitucionais do Código Civil ou de outro diploma, que regulamentavam algo previsto de modo expresso na Constituição e que esta excluiu posteriormente, como no presente caso”, explicou o relator no voto.
O ministro assegurou que essa nova interpretação não viola o princípio da reserva de plenário, previsto no artigo 97 da Constituição, segundo o qual “somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público”.
Segundo o relator, a decisão não faz qualquer declaração de inconstitucionalidade, mas somente a interpretação sistemática dos dispositivos legais relacionados ao caso em julgamento. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.

Clique aqui para ler a decisão.
REsp 1.483.841


Revista Consultor Jurídico, 30 de março de 2015, 12h35
http://www.conjur.com.br/2015-mar-30/falta-audiencia-conciliacao-nao-impede-homologacao-divorcio

sexta-feira, 27 de março de 2015

A prática da mediação familiar em Portugal e alguns outros países europeus

EMENTA: 1. Introdução 2. A intervenção judicial na família 3. A prática da mediação familiar em Portugal 4. A prática da mediação familiar em outros países europeus 5. Conclusão 8. Referências Bibliográficas

1. INTRODUÇÃO

A família, como instituição considerada base da sociedade, é carecedora de uma especial atenção, e essa necessidade cresce a cada dia, se levarmos em consideração o fenômeno da dissociação familiar, que é notado pelo aumento das ações de divórcio e também das ações de regulação do poder paternal[2].
Tendo em vista esse grande número de conflitos familiares, imprescindível se faz o estudo de formas alternativas e complementares de resolução dos mesmos, uma vez que a justiça se mostra ineficiente em muitos casos. Essa ineficiência se explica pelo despreparo do sistema judiciário para lidar com questões intrínsecas a um conflito familiar, como a esfera psicossocial dos vínculos desfeitos[3].
Dessa forma, levando-se em conta as características peculiares de um conflito familiar, notadamente a continuidade das relações entre aqueles que formam uma família[4], justifica-se a necessidade de uma atenção especial ao mesmo. E essa atenção especial ao conflito familiar poderá ser conseguida mediante a utilização da mediação, que como forma alternativa de resolução de conflitos se adequa aos conflitos de natureza familiar, podendo ser útil para uma resolução satisfatória.
O presente estudo, no entanto, vai se ater a discorrer sobre a prática da mediação familiar em Portugal, e em alguns outros países europeus que já possuem legislação específica que regulamenta a prática dessa forma alternativa de resolução de controvérsias.

2. A intervenção judicial na família

Os dados relativos ao movimento crescente das demandas processuais envolvendo conflitos familiares revelam que cada vez mais o Poder Judiciário se encontra congestionado com as mesmas[5].
Devemos ainda levar em consideração dados que revelam que cresce o número de separações consensuais, mas acertadamente a doutrina discute se esses dados correspondem obrigatoriamente a uma situação de paz no âmbito das famílias. Com isso deseja-se questionar se o consenso não é na verdade uma maneira de preservar a família, evitando que questões delicadas inerentes ao ambiente interno da mesma sejam levadas a público, por meio de um processo litigioso[6]. No entanto, certo se faz que “camuflar” um litígio não ajuda as partes a solucioná-lo, de modo que é preciso oferecer à família um ambiente em que ela se sinta suficientemente a vontade para tratar desse conflito.
E mister se faz refletir sobre o fato do ambiente de um processo judicial nem sempre ser o melhor para se tratar de um conflito familiar. Baseado num sistema de contraposições de interesses, o processso judicial estimula naturalmente a litigiosidade entre as partes, o que pode ser devastador quando se tratar de partes unidas por uma relação familiar que estão vivendo um momento conflituoso[7].
Ademais, será preciso ainda considerar o fato de que o processo judicial, pela sua natureza, acaba impedindo que as partes participem ativamente em prol da decisão sobre seus conflitos[8]. Diante disso, não é devidamente observado o princípio da autonomia da família, previsto pela própria Carta Constitucional Portuguesa, que prevê em seu artigo Art. 36, ns. 5 e 6, pertencer aos pais o direito prioritário de educação e manutenção dos filhos, sem a interferência injustificada do Estado ou de terceiro[9]. Ou seja, a interferência do poder judiciário nas relações familiares só poderá se dar nas hipóteses devidamente previstas em lei, sendo que tais situações devem ser tratadas como exceção à regra da autonomia da família.
Além disso, ocorre que, mais uma vez por conta do excesso de processos, uma demanda judicial pode levar muito tempo para se resolver, o que pode não ser compatível com a demanda familiar. Por envolver pessoas ligadas entre si por laços emocionais, que convivem diariamente, o protelar de um decisão pode ser fatal para a manutenção dessas relações.

Portanto, na medida em que as demandas familiares forem trabalhadas com um cuidado especial, os processos nessa área poderão sofrer uma redução, de forma a desafogar o poder judiciário. E nesse contexto a mediação familiar aparece como uma ferramente bastante útil. Importante ressaltar que a mediação, sem ter como objetivo substituir ou se contrapor ao Poder Judiciário, aparece como uma possibilidade de procedimento alternativo que permite a todos o acesso à justiça de forma mais célere e facilitada[10].
Ainda, convém esclarecer que o movimento no sentido da prática da mediação, principalmente no âmbito dos conflitos familiares, não importa necessariamente numa desconfiança com a Justiça em si. Trata-se mais de uma questão de insatisfação do que de desconfiança, uma vez que a máquina judiciária como funciona nos dias atuais não possui a estrutura adequada para atender de modo satisfatório as famílias em crise[11].

3. A prática da mediação familiar em Portugal

Portugal, assim como muitos outros países pertencentes à Comunidade Europeia, já possui legislação específica que permite e regulamenta a prática da mediação como forma alternativa de resolução de conflitos em diversas áreas, incluindo os conflitos ocorridos na esfera familiar.
Portanto, muitos questões que surgem com o estudo dessa prática[12] já possuem respostas nesses países, encontradas nas legislações pertinentes. Uma questão comumente levantada pertinente à prática da mediação familiar, é como pode essa prática ser realizada diante do caráter indisponível dos direitos de família. Para responder a essa e outras questões imprescindível se faz o estudo da legislação específica, o que se passa a fazer.
No que diz respeito especialmente à ordem jurídica portuguesa, temos que a própria Constituição desse país, coerente com a importância que a família representa para o Estado como um todo, regulamenta em seu texto princípios diretamente relacionados com a família.
Nesse sentido, a família tem constitucionalmente garantido pelo Art. 26 da Constituição Portuguesa o direito à reserva da intimidade privada e familiar, além de, a teor do Art. 36, ns. 5 e 6, do mesmo diploma, pertencer aos pais o direito prioritário de educação e manutenção dos filhos, sem a interferência injustificada do Estado ou de terceiro[13].
Temos, portanto, um cenário de “desjudiciarização”[14] das questões familiares, onde o indivíduo é chamado a se responsabilizar pelas decisões a serem tomadas em relação à sua família. E é nesse contexto que a mediação se mostra perfeitamente eficiente e coerente, capaz de dar efetividade ao princípio da reserva da intimidade da vida privada anteriormente citado, assim como ao princípio da paternidade responsável.
A União Europeia, atenta a esse movimento, busca normatizar o processo de mediação, e publica em 21 de janeiro de 1998 a Recomendação n. R(98)1, do Comitê dos Ministros dos Estados Membros do Conselho da Europa, que dispõe sobre a Mediação Familiar. Após essa Recomendação, encaminha-se a Proposta de Directiva ao Parlamento Europeu e ao Conselho, de 22 de outubro de 2004 (texto modificado em 29 de novembro de 2005) [15].
Em Portugal, a Lei n.78/2001, de 13 de julho, que dispõe sobre a organização, competência e o funcionamento dos Julgados de Paz, em seu Art. 16[16] cria um serviço de Mediação, que põe à disposição de qualquer interessado essa modalidade alternativa de resolução de controvérsias[17].
Importante ressaltar que, quando regulamenta a prática do serviço de mediação, o citado artigo 16 determina que qualquer conflito pode ser submetido ao processo de mediação, mesmo não estando expressamente previsto na lei, excepcionando apenas aqueles que tenham por objeto direitos indisponíveis, em conformidade com a própria lei civil portuguesa[18].
No entanto, apesar dessa disposição, é possível encontrar em outros diplomas legais portugueses a autorização necessária para a prática da mediação de conflitos que envolvem direitos que, pela regra geral, estariam excluídos desse sistema. A Lei 133/99, de 28 de agosto, através de seu artigo 2. adita o artigo 147-D, do Decreto-Lei 314/78[19], que estabelece a Organização Tutelar de Menores, de modo a permitir, em qualquer estado da causa e sempre que for possível, que o Juiz determine a intervenção de serviços públicos ou privados de mediação, ressaltando ainda a importância de tal procedimento nos processos de regulação do exercício do poder paternal.
Dessa forma, é possível perceber que a própria lei se ocupa de permitir que direitos a princípio indisponíveis, de natureza de ordem pública, como por exemplo, os direitos de menores, sejam submetidos à negociação entre as partes.
Tem-se claro que o objetivo da Lei sobre os Julgados de Paz é possibilitar que as partes em conflito possam participar ativamente da busca pela solução para o mesmo, permitindo que as mesmas cheguem a um acordo[20].
Para tanto, o diploma regulamenta o processo de mediação, que deverá ser norteado pelos princípios da simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e economia processual. Além disso, regulamenta de forma ampla a atividade do mediador, prevendo os requisitos necessários para executar essa função, os critérios de seleção, e a forma como serão remunerados pela atividade. Fundamental se faz que o mediador tenha uma formação apropriada, possuindo habilitação em curso de mediação devidamente reconhecido pelo Ministério da Justiça Português[21]. Os conhecimentos teóricos e práticos do mediador devem ser utilizados para auxiliar as partes a, por si mesmas, encontrarem a solução para o conflito que vivem[22].
A Lei prevê os possíveis resultados do processo de mediação, atribuindo-lhes valores. Se as partes ao fim do processo mediatório chegarem o acordo, de acordo com o Art. 56, n.1, o mesmo será homologado pelo Juiz, e terá valor de sentença. Caso o processo de mediação não tenha como resultado a composição entre as partes, o Juiz será comunicado e designará data para audiência de julgamento.
Convém mencionar que em julho de 2007, o Secretário de Justica Português publicou o Despacho n.18778-2007[23], com os objetivos de regulamentar os serviços de mediação em novas localidades do território português, ampliar o rol de matérias suscetíveis à prática da mediação e adequar o serviço público a essa prática.

4. A PRÁTICA DA MEDIAÇÃO FAMILIAR Em OUTROS PAÍSES europeus

Espanha

Quando se trata especificamente da prática da mediação, acompanhando um movimento existente na Europa[24], influenciado pela prática americana[25], a regulamentação espanhola da mesma tem início com o Real Decreto-Lei n.5, de 26 de janeiro de 1979, que cria o Instituto de Mediação, Arbitragem e Conciliação. Esse órgão pertencia ao Ministério do Trabalho, mas, no entanto, a mediação só começa efetivamente a ser realizada em Espanha no início da década de 90, quando é aberto na Catalunia um centro privado de mediação, financiado por empresas privadas. Da mesma forma precurssora, é fundada em 1991 a Associação Espanhola de Estudos da Família, que não obstante o fato de não realizar mediação, representará papel importante para o desenvolvimento dessa forma alternativa de condução e resolução de conflitos.[26]
A regulamentação da mediação na área dos conflitos familiares é citada de maneira majoritária, uma vez que desde o início da prática desse método alternativo de resolução de conflitos em Espanha é perceptível as vantagens na sua prática.[27]
Nesse sentido, no que diz respeito aos conflitos familiares, algumas comunidades espanholas autônomas, tendo recebido pela Constituição Espanhola de 1978 a competência para legislar sobre a forma de proteção à família e aos menores, editaram suas próprias leis, prevendo e regulamentando expressamente a prática da mediação nesse âmbito de conflitos.[28] Dessa forma, essa legislação específica limita a prática da mediação sobre as questões objeto de um processo judicial em curso, nos termos da Lei espanhola 15/2005, de 8 de julho, que modifica o Código Civil nas matérias de divórcio e separação.[29]
O primeiro serviço de mediação familiar espanhol foi criado em 1988, em São Sebastião e recebeu o nome de “Servicio de Mediación a la familia en conflicto”, e foi seguido por um serviço extrajudicial e gratuito oferecido em Madrid, no ano de 1991, subsidiado pelo Ministério de Assuntos Socias[30]. Depois disso, ao longo dos anos 90 muitos outros serviços foram sendo criados, o que possibilitou a expansão da oferta dos serviços de mediação por quase toda a Espanha.
Acompanhando a legislação européia sobre o assunto, a definição dada pela Lei 15/2005 de mediação traz como suas principais características a voluntariedade, e seu caráter alternativo à via judicial. Essa mesma lei, ao legislar sobre os sujeitos que podem se beneficiar do processo de mediação, restrinje essa possibilidade àqueles estão litigando judicialmente. Essa regra no entanto não é homogênea entre as legislações das Comunidades Autônomas[31].
No que tange às matérias que podem ser objeto da mediação familiar em território espanhol, é possível elencar como principais os conflitos em torno do exercício conjunto do poder familiar, dos alimentos, dos efeitos pessoais do matrimônio – a ajuda mútua entre os cônjuges, e dos efeitos patrimoniais – divisão de bens, além dos conflitos vividos de forma geral em torno da separação e do divórcio[32].
Convém ressaltar que, não obstante todas as vantagens já identificadas provenientes da utilização do processo de mediação, a legislação espanhola limita a utilização da mesma, principalmente quando há evidências de maus-tratos aos integrantes menores de idade do núcleo familiar, ou quando uma das partes possui algum problema de saúde mental comprovado[33].

Bélgica

Na Bélgica, a Lei de 21 de fevereiro de 2005 representa um marco para a atividade das práticas alternativas de resolução de conflitos, uma vez que modifica o Código Judicial no âmbito da mediação, que já vinha sendo praticada há algum tempo.[34] Dessa forma, referida lei dispõe expressamente em seu artigo 8 que poderá ser objeto da mediação toda controvérsia que pode ser objeto de uma transação.
Além disso, cumpre ressaltar a existência da Lei 39, de 19 de fevereiro de 2001, que dispõe especificamente sobre mediação familiar. Por essa lei, admiti-se a mediação dos conflitos patrimoniais de família e também dos conflitos relativos aos efeitos pessoais, bem como as disputas envolvendo filhos menores. Dessa forma, a legislação belga pôs fim á mencionada discussão que ainda persiste em outros sistemas jurídicos, qual seja, a possibilidade da disposição sobre direitos considerados absolutos.[35]
Ainda, nesse país a legislação permite a inclusão de cláusula contratual prevendo a utilização da mediação como forma de resolução dos conflitos que resultarem da execução do contrato que está sendo firmado.
O processo de mediação belga apresenta basicamente as mesmas características de outros sistemas, sendo as principais a voluntariedade das partes, que devem se manifestar positivamente pela realização desse tipo de resolução de conflitos e a confidencialidade do processo como garantia essencial da participação sincera das partes. Além disso, a legislação belga ainda dá força executiva ao acordo formalizado entre as partes mediadas, prevendo que o Juiz só poderá recusar a homologação do mesmo em casos de contrariedade à ordem pública ou violação aos direitos de menores.[36]

França

Sob a influência da prática nos EUA e no Canadá, vários diplomas legais especificamente referentes ao processo de mediação foram promulgados em França, instituindo a prática da mediação no âmbito dos conflitos familiares. Para regulamentar a formação dos mediadores e a prática do procedimento já em 1988 foi criada no país uma Associação para a promoção de Mediação Familiar (APMD)[37].
 Mas foi mesmo a Lei n. 95-125, de 8 de fevereiro de 1995, relativa à organização das jurisdições e ao processo civil, penal e administrativo, que pela primeira vez regulamentou de forma sistêmica o processo de mediação e conciliação no âmbito do processo judicial, prevendo inclusive que a conciliação entre as partes deve ser entendida como missão do juiz.[38] Cabe ressaltar, porém, que o Art. 21 da Lei 95-125 traz a necessidade das partes acordarem pela participação do processo de mediação, e que essa participação não pode ser imposta pelo juiz.[39]
Consequência da edição dessa Lei 95-125 foi a criação do Decreto n. 96-652, de 22 de julho de 1996, que tratou especificamente da prática da conciliação e mediação judicial, o qual por sua vez incluiu no Novo Código de Procedimento Civil Francês o Título denominado “ A Mediação”[40], excluindo a lei no entanto de sua regras a mediação extrajudicial. Com isso, discutiu-se incialmente em França se a mediação familiar estaria restrita a esfera judicial. No entanto, a conclusão a que se chegou uma parte dos estudiosos e praticantes do assunto é que nada obsta que a mediação seja praticada de modo extrajudicial, pois, apesar da lei não regulamentar essa prática, ela também não a proibe[41].
A Lei traz exigências quanto a pessoa do mediador, que deverá ser uma pessoa idônea, não podendo ter se envolvido com práticas de atos que atentem contra os bons costumes, devendo ser qualificado para o conflito específico que irá mediar, além de provar que não possui qualquer relação com a causa mediada, a fim de se garantir sua imparcialidade[42].
Outra regra que, pelas caracterísitcas do processo de mediação pode ser questionada é a referente ao tempo máximo que deve durar o processo de mediação. De acordo com o Art. 131-3 do Novo Código de Procedimento Civil o processo deverá obedecer o prazo de três meses, podendo esse prazo ser prorrogado uma vez, por igual tempo. Ou seja, as partes teriam no máximo seis meses para serem auxiliadas pelo mediador e assim tentarem chegar a um acordo.
Acontece que, pelas peculiaridades do conflito familiar limitar o tempo da mediação pode colocar em risco a eficácia do mesmo. Permitir que esse processo seja interminável poderia fazer com que as partes o confundisse com um processo terapêutico, mas a própria pessoa do mediador poderá ser considerada apta a decidir pelo fim ou não da mediação, na medida em que perceba que essa forma específica de condução do conflito já não se mostra útil para o caso concreto em discussão. Ademais, o Artigo 131-9 do Novo Código de Procedimento Civil permite que o mediador comunique ao Juiz as dificuldade que estão sendo vividas no processo mediatório, de modo que o juiz pode decidir pelo fim do mesmo[43].
Importante esclarecer que em França, o acordo resultado da mediação terá força executiva, nos termos do artigo 1.441-4 do “Nouveau Code de Procédure Civile”, e que nas demais situações o acordo terá força de um contrato firmado entre as partes.[44]
Quanto à prática específica da mediação familiar, o sistema jurídico francês, por meio da LOI n.2002-305 de 4 de março de 2002 a reconheceu no âmbito do exercício da autoridade dos pais. Essa lei ampliou o objeto da mediação familiar, no momento em que possibilita a negociação de direitos no âmbito do divórcio, tanto pessoais quanto patrimoniais.[45] Havendo desacordo entre os pais, o juiz deve tentar conciliá-los, indicando o serviço da mediação, de forma a facilitar a busca por uma conclusão satisfatória para o litígio.
Além disso, o artigo 255 do Código Civil Francês, modificado pela Lei de 26 de maio de 2004, elenca a mediação entre as medidas prioritárias a serem tomadas pelo Juiz para conciliar as partes envolvidas em conflitos familiares. Ou seja, assim como na legislação belga, há a previsão expressa na legislação francessa permitindo a prática da mediação quanto aos direitos relativos às relações familiares, revelando exceção ao caráter indisponível dos mesmos.

5. CONCLUSÃO

Diante do estudo das características peculiares dos conflitos existentes no âmbito das famílias, é possivel perceber o quão complexos são os mesmos, e como a atividade do Poder Judiciário, da forma como está regulamentada, não tem demonstrado eficiência no trato desses conflitos.
Nesse sentido, os conflitos familiares merecem uma atenção especial, principalmente quando estiverem envolvidos interesses de menores. Digo interesses, pois mais do que direitos expressamente previstos em lei, ao menor devem ser garantidas condições mínimas de sobrevivência, incluindo-se condições morais e psíquicas.
E os pais, diretamente responsáveis pelos conflitos em torno do menor, são também responsáveis por oferecer ao mesmo esse ambiente saudável, tão necessário para que ele se desenvolva e se transforme num adulto bem resolvido.
Dessa forma, não há como não concluir pela responsabilidade dos pais em manterem um mínimo relacionamento, mesmo após a ruptura da união conjugal, na hipótese de possuírem filhos em comum. E, além disso,  devem os mesmos se ater à necessidade desse relacionamento ser ao menos pacífico, de forma a possibilitar a convivência de ambos os progenitores com o menor, uma vez que resta comprovada a importância da mesma para o bom desenvolvimento da criança.
Portanto, o processo de mediação, como forma alternativa de resolução de conflitos, com todas as suas características e princípios, se mostra bastante eficiente na promoção do diálogo pacífico entre familiares que estejam vivendo um conflito, fazendo com que os mesmos consigam exercer suas funções de modo pacífico.
Assim, estimular a prática da mediação pelas partes que vivem um conflito familair só trará benefícios para as partes que vivem esse conflito, na medida em que terão a oportunidade de trabalhá-lo de modo satisfatório, evitando assim que o mesmo seja renovado com o passar do tempo.
(...)
Leia a íntegra em:
 DALL’ORTO, Hosana Leandro de Souza. Mediação familiar em Portugal e Europa. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 20, n. 4285, 26 mar. 2015. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/32321>. Acesso em: 27 mar. 2015.

quinta-feira, 26 de março de 2015

"O Banco levou meu carro" - Busca e Apreensão de Veículos em Financiamentos

Muita gente deseja ter um veículo e acaba por recorrer a financiamentos para tal. Ocorre que a inadimplência em Contratos de Financiamento é enorme, e é igualmente comum vermos pessoas perdendo seus veículos para o Banco, em razão do não pagamento.
Obviamente não se defende aqui a inadimplência, mas de fato observa-se a ocorrência de casos bastante contrários à boa fé, haja vista que muitas pessoas deixam de pagar 3, 4 parcelas, geralmente em razão de um eventual desemprego ou uma turbulência financeira, e isso já enseja uma busca e apreensão do veículo.
Vi dia desses dois casos de busca e apreensão de veículos financiados. Em um deles, a pessoa havia pago 51 das 60 parcelas do financiamento. Atrasou 4 parcelas, e já foi deferida a busca e apreensão. No outro, a pessoa pagou 36 das 60 parcelas, e deixou de pagar 2 meses, e o Banco já estava "ameaçando" pedir a busca e apreensão.
Não bastasse, em ambos os casos os clientes buscaram o Banco incessantemente a fim de tentar solucionar amigavelmente o problema, requerendo o parcelamento da dívida, sem obterem êxito.
É claro que a inadimplência no país é um problema, quase sistêmico, e precisamos tentar combatê-la de alguma forma. Todavia, não me parece que o radicalismo em rescisões contratuais dessa seara, incluindo a perda do bem financiado, seja a solução. Muito pelo contrário, decisões nesse sentido apenas distorcem o princípio da equidade, pelas razões que se passa a aduzir:

1. Teoria Geral dos Contratos

O nascimento de relações jurídicas obrigacionais pode ou não depender da vontade dos sujeitos envolvidos. Quando o nascimento de uma obrigação independe da vontade dos sujeitos ativo e passivo, diz-se uma obrigação legal. Por exemplo, quando uma lei entra em vigor, somos obrigados a obedecer seu inteiro teor, independente da nossa vontade. Ou seja, trata-se de uma declaração unilateral de vontade.
Quando o nascimento de uma obrigação jurídica depende da vontade dos sujeitos, diz-se uma obrigação voluntária. A celebração de um contrato enseja o nascimento de uma obrigação voluntária, isto é, a relação jurídica obrigacional gerada no momento em que as partes firmam um Instrumento Contratual depende da vontade dos sujeitos. Trata-se, pois, de uma declaração bilateral de vontade.
"A partir de uma perspectiva genérica, pode-se conceituar o contrato como sendo qualquer ato jurídico em sentido amplo em que a coordenação de vontades dos contraentes é apta a produzir efeitos jurídicos. Por meio do contrato, as partes declaram suas vontades que se integram de tal maneira que possibilitam aos contratantes a aquisição, a conservação, a transferência, a modificação ou a extinção de direitos e obrigações." (SEIXAS, Renato. Direito Civil: Teoria Geral dos Contratos. Vol 1, 1997. Disponível em: Fonte) (grifo nosso).
Supostamente, de acordo com a Teoria Geral do Contrato, a celebração de um Contrato é um ajuste de vontades entre as partes, gerando, pois, uma obrigação voluntária.
Todavia, essa concepção de ajuste de vontades, como declaração bilateral, passa longe dos Contratos de Financiamento. E veremos por que.
2. Contrato de Adesão
Em verdade, a pessoa que firma um contrato de financiamento junto a uma Instituição Financeira é, em geral, destituída de conhecimentos específicos na área jurídica.
De tal forma, a uma das partes é simplesmente apresentado um contrato de adesão, padrão, com cláusulas prontas, sem que a parte possa discutir qualquer cláusula com a qual não concorde, o que, obviamente, descaracteriza a declaração bilateral de vontades.
Pode-se até considerar que, ainda que as cláusulas tenham sido redigidas unilateralmente, a parte aceitou todas estas ao celebrar o contrato. Todavia, sabemos que infelizmente muitas pessoas precisam de um veículo para trabalhar, ou para se locomover por qualquer motivo, sobretudo em virtude das péssimas condições do transporte público, e acabam se sujeitando às cláusulas contratuais das Instituições Financeiras por falta de opção. Continua não sendo uma declaração bilateral de vontade.
Leciona Orlando Gomes que:
“[...] no campo dos negócios bilaterais, a autonomia da vontade consubstancia-se na liberdade de contratar. A lei não estabelecia maiores restrições à celebração e ao conteúdo dos contratos. As partes eram livres para contrair as obrigações que entendessem, exigindo-se apenas o consentimento isento de vícios. Contraída a obrigação, por declaração de vontade, havia que ser cumprida a todo preço (pacta sunt servanda). Em conseqüência da própria evolução econômica e por influência de novas doutrinas, o campo da autonomia da vontade reduziu-se consideravelmente. Limitações enérgicas antepuseram-se ao poder de suscitar efeitos jurídicos mediante declaração negocial. Em diversos contratos, a liberdade de estipulação das cláusulas foi extremamente sufocada. O princípio da intangibilidade dos efeitos das convenções sofre numerosas exceções. A própria relatividade da sua eficácia cede diante de novas necessidades. Proclama-se, à vista dessas transformações, a decadência do princípio da autonomia da vontade” (GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1969, p. 259.)
Na ocasião de um inadimplemento, quando a parte busca o Banco para quitar a dívida de forma amigável, parcelando os valores devidos, recebe respostas como "o contrato foi assim firmado e deve ser cumprido".
Ora, sob os auspícios do principio da Pacta Sunt Servanda as Instituições Financeiras pretendem desconsiderar a norma constitucional e a legislação infraconstitucional, impelindo o consumidor à busca de seus direitos perante o Poder Judiciário.
O Código de Defesa do Consumidor regula extensivamente a questão do Contrato de Adesão, conforme se denota:
ART. 54. CONTRATO DE ADESÃO É AQUELE CUJAS CLÁUSULAS TENHAM SIDO APROVADAS PELA AUTORIDADE COMPETENTE OU ESTABELECIDAS UNILATERALMENTE PELO FORNECEDOR DE PRODUTOS OU SERVIÇOS, SEM QUE O CONSUMIDOR POSSA DISCUTIR OU MODIFICAR SUBSTANCIALMENTE SEU CONTEÚDO.
Não obstante, cumpre salientar que aplica-se o CDC à questão em tela, pelos motivos que aduz a seguir.

3. Relação de Consumo

O Código de Defesa do Consumidor promoveu mudanças radicais de enfoque para as relações contratuais nas quais uma Empresa fornece serviços e um particular os aufere como destinatário final. Tamanha foi a transformação no direito dos contratos e no direito das obrigações em geral que novos paradigmas de "relação jurídica" foram criados, chamando para si outras garantias conferidas pelo Estado, que não aquelas vazadas no Código de Beviláqua. (Cláudia Regina C. Ribeiro, advogada).
O que tem-se na discussão em tela, conforme os elementos internos da relação travada entre devedor e Banco, é uma Relação clara e cristalina de Consumo. Isto porque, analisando o papel social juridicamente relevante da parte devedora, percebemos que este é consumidor final do objeto de prestação de serviços do Banco: a prestação de crédito. E, por outro lado, analisando-se o papel social juridicamente relevante do Banco, chegamos à conclusão de que este fornece diversos serviços de crédito e gestão patrimonial. Doutrina e Jurisprudência se alinham nesse sentido:
A CARACTERIZAÇÃO DO BANCO OU INSTITUIÇÃO FINANCEIRA COMO FORNECEDOR ESTÁ POSITIVADA NO ART. 3o, CAPUT, DO CDC E ESPECIALMENTE DO § 2º DO REFERIDO ARTIGO, O QUAL MENCIONA EXPRESSAMENTE COMO SERVIÇOS AS ATIVIDADES DE NATUREZA BANCÁRIA, FINANCEIRA, DE CRÉDITO. (MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 3a edição, São Paulo: Saraiva, 1999, p. 198).
E ainda:
TRIBUNAL DE ALÇADA DO PARANÁ. APELAÇÃO CÍVEL 0121715-8. CURITIBA - 10A VARA CÍVEL- Ac. 10017. JUIZ CONV. ALBINO JACOMEL GUERIOS - QUARTA CÂMARA CÍVEL - Revisor: JUIZ CONV. JURANDYR SOUZA JUNIOR. Unânime - Julg: 09/09/98 - DJ: 25/09/98. O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR APLICA-SE À ATIVIDADE BANCÁRIA, RELATIVIZANDO A PACTA SUNT SERVANDA E POSSIBILITANDO AO JUIZ O REEXAME DO CONTEÚDO DO CONTRATO PARA REEQUILIBRÁ-LO E EVITAR QUE O CONTRATANTE ECONOMICAMENTE MAIS FORTE ESTABELEÇA CONDIÇÕES INÍQUAS E ABUSIVAS.

4. Boa fé contratual

"Manifestada a vontade das partes em pactuar um negócio jurídico (contrato), entrando em consenso sobre o que se deseja firmar, este terá força obrigatória, ou seja, terá que ser cumprido de acordo com o que se acordou (pacta sunt servanda). Este entendimento é real e deve ser seguido, porém com algumas restrições que o novo Código Civil trouxe em seu bojo.
"Sendo assim, a nova Codificação civil expressou que afora os princípios liberais norteadores dos contratos [...] deve, o negócio jurídico, estar baseado em alguns princípios sociais, enumerados pelo código, que são: Função Social; Equivalência Material e a Boa-Fé.
"Entende-se pelo princípio da Função Social que o contrato deve-se adequar ao interesse social, quando este se apresentar, de modo que não pode contrariar a coletividade. Por esse princípio já dá para se ter uma noção da preocupação que teve o novo Código Civil com o lado social dos contratos. Mas, ainda vai além a nova codificação.
"Pelo princípio da equivalência material, expõe o código civil que as partes devem ser igualadas com a execução contratual. Em outras palavras, uma parte não pode lucrar muito, enquanto a outra vá ter prejuízos demasiados. Veja que, apesar da força obrigatória que possui os contratos firmados com autonomia da vontade, há restrições a sua execução em nome do social que agora rege o negócio jurídico.
[...]
"A boa-fé frente a nova codificação civil: São inúmeras as passagens em que se demonstra a necessidade da boa-fé nos contratos [...]. Porém, algumas destas passagens ocorrem de forma implícita, contudo tem-se algumas textualmente demonstradas, senão vejamos:
"Art. 422 - Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Ainda no âmbito do código civil, pode-se encontrar:
"Art. 187 - Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Mais uma vez a boa-fé aparece:
" Art. 113 - Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. "(A boa fé contratual diante da nossa codificação civil, William Almeida, 2004). (grifo nosso)

5. Teoria do Adimplemento Substancial

" O adimplemento substancial é um cumprimento muito próximo do resultado final e que resulta no afastamento das consequências rígidas da mora ". (Fonte)
Isto é, trata-se de adimplemento substancial aqueles casos, como um dos mencionados no início deste artigo, no qual a pessoa pagou já uma boa parte da obrigação contratual, estando muito próxima do fim do cumprimento desta. É o caso do cidadão que pagou 51 parcelas de um financiamento de 60 parcelas.
Essa Teoria possui respaldo também na boa fé contratual, mas, mais que isso, no princípio da confiança entre as partes. Ou seja, se uma das partes cumpriu com a obrigação contratual quase por inteira, a outra parte não se resguardaria no direito de buscar reaver a dívida de forma radicalista, mas sim na tentativa de solucionar o problema de forma que fosse benéfico a ambas as partes.
"A nova ordem conceitual introduziu a teoria da confiança (Treu und Glauben), segundo a qual as partes não mais ocupam posições antagônicas, mas devem proceder no sentido de cooperar com a outra para o fim de adimplemento. No Brasil, a teoria da confiança encontra grande ênfase com o Código de Defesa do Consumidor e com o Código Civil vigente. É uma teoria ética, estando em perfeita consonância com um dos princípios norteadores do Código Civil (o princípio da eticidade), contexto no qual a doutrina do adimplemento substancial se insere."(A Teoria do Adimplemento Substancial, Ângelo Aurélio Gonçalves Pariz) (grifo nosso).
E ainda:
"De acordo com o princípio do favor debitoris, a parte mais débil da relação obrigacional deve ser tutelada, de modo que o cumprimento do contrato seja o menos oneroso possível para o devedor hipossuficiente. Registre-se que tal disparidade de tratamento não viola a isonomia contratual, pois a igualdade deve ser vista não no plano das liberdades formais, mas sim no campo das liberdades materiais. Assim, consiste em tratar desigualmente os desiguais, refletindo a evolução da doutrina contratual. Inicialmente presa aos ditames liberais da força obrigatória dos contratos, a relação jurídica obrigacional sofre radical transformação com a intervenção estatal para proteção da parte mais débil. Frise-se, ainda, que os negócios jurídicos celebrados no mundo moderno caracterizam-se como contratos de adesão, devendo ser interpretados contra a parte que o redigiu, orientação já conhecida desde os romanos, como o instituto do favor debitoris."(Fonte) (grifo nosso).
O direito português, por exemplo, tem acompanhado a tendência de tutela do devedor:
I – Nos termos do artigo 2º da Convenção Relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, de 27 de Setembro de 1968 (Convenção de Bruxelas), o réu que tenha domicílio no território de um dos Estados contratantes deve ser demandado nos tribunais desse país. II – A Convenção de Bruxelas optou, assim, pelo princípio do favor «debitoris», embora, em matéria contratual, tenha facultado ainda ao credor accionar o réu em tribunal do Estado em que, segundo o contrato, a prestação deva ser cumprida. III – Foi, pois, correcta a propositura em tribunal português, da comarca da sede da sociedade devedora, de acção em que uma sociedade francesa pretendeu obter a condenação daquela no pagamento do preço de fornecimento que lhe prestara.
(Bol. Do Ministério da Justiça, 471, 339 – Supremo Tribunal de Justiça)
A Teoria do Adimplemento Substancial não zela pelo inadimplemento. Muito pelo contrário, mostra-se uma exceção ao entendimento de que o pagamento deve ser completo (integralidade ou não-divisibilidade), predominando o princípio da conservação do negócio jurídico. Além de prezar pela boa fé contratual do devedor, parte em desvantagem na relação jurídica, merecedora, pois, de tendência de tutela.
Muito embora não possua força de lei e pouco seja abordada pela doutrina pátria, existem vários precedentes jurisprudenciais aplicando a Teoria do Adimplemento Substancial, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, como se vê:
“Alienação fiduciária. Busca e apreensão. Falta da última prestação. Adimplemento substancial. O cumprimento do contrato de financiamento, com a falta apenas da última prestação, não autoriza o credor a lançar mão da ação de busca e apreensão, em lugar da cobrança da parcela faltante. O adimplemento substancial do contrato pelo devedor não autoriza ao credor a propositura de ação para a extinção do contrato, salvo se demonstrada a perda do interesse na continuidade da execução, que não é o caso. Na espécie, ainda houve a consignação judicial do valor da última parcela. Não atende à exigência da boa-fé objetiva a atitude do credor que desconhece esses fatos e promove a busca e apreensão, com pedido liminar de reintegração de posse. Recurso não conhecido” (REsp 272.739-MG; 4ª Turma/STJ; Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar; j. 01.03.2001; DJU, 02.04.2001).
Ou ainda:
“Seguro. Inadimplemento da segurada. Falta de pagamento da última prestação. Adimplemento substancial. Resolução. A companhia seguradora não pode dar por extinto o contrato de seguro, por falta de pagamento da última prestação do prêmio, por três razões: a) sempre recebeu as prestações com atraso, o que estava, aliás, previsto no contrato, sendo inadmissível que apenas rejeite a prestação quando ocorra o sinistro; b) a segurada cumpriu substancialmente com a sua obrigação, não sendo a sua falta suficiente para extinguir o contrato; c) a resolução do contrato deve ser requerida em juízo, quando será possível avaliar a importância do inadimplemento, suficiente para a extinção do negócio. Recurso conhecido e provido” (REsp 76.362-MT; 4ª Turma/STJ; Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar; j. 11.12.95; DJU, 01.04.96).
No mesmo sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: REsp 469.577 (pequeno valor da dívida do contrato de alienação fiduciária frente ao valor do bem essencial à atividade da devedora); REsp 343.698-SP (abusividade de cláusula contratual que suspende os efeitos do contrato de seguro-saúde pelo atraso de só uma prestação); REsp nº 439.625 (comprador perde ou não carro da marca Fiat, adquirido em 36 parcelas, tendo pago apenas 23).
" Numa noção simples, o adimplemento substancial nada mais é do que uma transgressão contratual insignificante e, portanto, incapaz de gerar as conseqüências normais e rígidas da inadimplência ". (Fonte)
Transformar o juiz não mais num mero aplicador da lei, mas num concretizador da justiça será uma das conseqüências da aplicação da teoria, cujo alcance está cada vez mais sendo ampliado na ordem jurídica civil-constitucional. (Fonte)

6. O que fazer em caso de busca e apreensão de veículo?

Existe a opção de se ajuizar uma Ação Revisional contra o Banco, pedindo-se liminar na Manutenção de Posse, e até mesmo a Consignação em Pagamento a fim de se recolher as parcelas vincendas, evitando os efeitos da mora sobre estas, ou algumas das parcelas vencidas, buscando evitar, assim, a consumação da busca e apreensão.
Em alguns casos, pode-se também pleitear pela indenização por danos morais, sobretudo em havendo-se cobranças vexatórias.
A todo momento processual cabível, peça a designação de audiências de conciliação, pois, diante do que vimos neste artigo, buscar um acordo com o Banco é sempre a melhor opção.
7. Conclusão
Diante do exposto, resta clara a conclusão de que a busca e apreensão de veículos em financiamento em razão de inadimplemento não se mostra uma solução viável.
Por óbvio, cada caso deve ser analisado de forma individual, e a busca e apreensão se justifica em algumas conjunturas. Todavia, o que se observa é o radicalismo e a"mão pesada"de alguns juízes em decisões onde resta clara a boa fé do devedor/consumidor (porque, sim, é uma relação de consumo).
Não obstante, nota-se, também, certa tendência de tutela às Instituições Financeiras, o que absolutamente não se justifica em um Estado Democrática de Direito, onde é papel do Poder Judiciário buscar a promoção da justiça, e não o favoritismo de uma ou outra parte.
O Poder Judiciário deve, entretanto, prover maior guarida à parte mais fragilizada da relação jurídica, promovendo a isonomia; e notoriamente a parte em desvantagem não é a Instituição Financeira. E, em verdade, as decisões que atualmente se encontram sobre o assunto em tela pouco trazem justiça à sociedade, e muito favorecem a quem figura como parte mais avantajada e"endinheirada"da história.
[Gostou do texto? Leia mais no blog Diário da Vida Jurídica (DVJ)].

AVISO IMPORTANTE
Este texto foi originalmente publicado no blog Diário da Vida Jurídica, postado por Dra Camila Sardinha. A reprodução parcial ou integral deste é autorizada somente mediante a atribuição dos créditos de sua fonte original.

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Cinco lições sobre a vida e o Direito, por ministro Barroso

Patrono da turma de 2014 da faculdade de Direito da UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o ministro Roberto Barroso, do STF, proferiu emocionante discurso com reflexões essenciais relacionadas à vida e ao Direito.

Confira a íntegra do texto.



A vida e o Direito : breve manual de instruções

I. Introdução 
Eu poderia gastar um longo tempo descrevendo todos os sentimentos bons que vieram ao meu espírito ao ser escolhido patrono de uma turma extraordinária como a de vocês. Mas nós somos – vocês e eu – militantes da revolução da brevidade. Acreditamos na utopia de que em algum lugar do futuro juristas falarão menos, escreverão menos e não serão tão apaixonados pela própria voz.Por isso, em lugar de muitas palavras, basta que vejam o brilho dos meus olhos e sintam a emoção genuína da minha voz. E ninguém terá dúvida da felicidade imensa que me proporcionaram. Celebramos esta noite, nessa despedida provisória, o pacto que unirá nossas vidas para sempre, selado pelos valores que compartilhamos.É lugar comum dizer-se que a vida vem sem manual de instruções. Porém, não resisti à tentação – mais que isso, à ilimitada pretensão – de sanar essa omissão. Relevem a insensatez. Ela é fruto do meu afeto. Por certo, ninguém vive a vida dos outros. Cada um descobre, ao longo do caminho, as suas próprias verdades. Vai aqui, ainda assim, no curto espaço de tempo que me impus, um guia breve com ideias essenciais ligadas à vida e ao Direito.

 II. A regra nº 1 
No nosso primeiro dia de aula eu lhes narrei o multicitado "caso do arremesso de anão". Como se lembrarão, em uma localidade próxima a Paris, uma casa noturna realizava um evento, um torneio no qual os participantes procuravam atirar um anão, um deficiente físico de baixa altura, à maior distância possível. O vencedor levava o grande prêmio da noite. Compreensivelmente horrorizado com a prática, o Prefeito Municipal interditou a atividade.
Após recursos, idas e vindas, o Conselho de Estado francês confirmou a proibição. Na ocasião, dizia-lhes eu, o Conselho afirmou que se aquele pobre homem abria mão de sua dignidade humana, deixando-se arremessar como se fora um objeto e não um sujeito de direitos, cabia ao Estado intervir para restabelecer a sua dignidade perdida. Em meio ao assentimento geral, eu observava que a história não havia terminado ainda.
E em sequida, contava que o anão recorrera em todas as instâncias possíveis, chegando até mesmo à Comissão de Direitos Humanos da ONU, procurando reverter a proibição. Sustentava ele que não se sentia – o trocadilho é inevitável – diminuído com aquela prática. Pelo contrário.Pela primeira vez em toda a sua vida ele se sentia realizado. Tinha um emprego, amigos, ganhava salário e gorjetas, e nunca fora tão feliz. A decisão do Conselho o obrigava a voltar para o mundo onde vivia esquecido e invisível.Após eu narrar a segunda parte da história, todos nos sentíamos divididos em relação a qual seria a solução correta. E ali, naquele primeiro encontro, nós estabelecemos que para quem escolhia viver no mundo do Direito esta era a regra nº 1: nunca forme uma opinião sem antes ouvir os dois lados. 


III. A regra nº 2
 Nós vivemos em um mundo complexo e plural. Como bem ilustra o nosso exemplo anterior, cada um é feliz à sua maneira. A vida pode ser vista de múltiplos pontos de observação. Narro-lhes uma história que li recentemente e que considero uma boa alegoria. Dois amigos estão sentados em um bar no Alaska, tomando uma cerveja. Começam, como previsível, conversando sobre mulheres. Depois falam de esportes diversos. E na medida em que a cerveja acumulava, passam a falar sobre religião. Um deles é ateu. O outro é um homem religioso. Passam a discutir sobre a existência de Deus. O ateu fala: "Não é que eu nunca tenha tentado acreditar, não. Eu tentei. Ainda recentemente. Eu havia me perdido em uma tempestade de neve em um lugar ermo, comecei a congelar, percebi que ia morrer ali. Aí, me ajoelhei no chão e disse, bem alto: Deus, se você existe, me tire dessa situação, salve a minha vida". Diante de tal depoimento, o religioso disse: “Bom, mas você foi salvo, você está aqui, deveria ter passado a acreditar". E o ateu responde: "Nada disso! Deus não deu nem sinal. A sorte que eu tive é que vinha passando um casal de esquimós. Eles me resgataram, me aqueceram e me mostraram o caminho de volta. É a eles que eu devo a minha vida". Note-se que não há aqui qualquer dúvida quanto aos fatos, apenas sobre como interpretá-los.Quem está certo? Onde está a verdade? Na frase feliz da escritora Anais Nin, “nós não vemos as coisas como elas são, nós as vemos como nós somos”. Para viver uma vida boa, uma vida completa, cada um deve procurar o bem, o correto e o justo. Mas sem presunção ou arrogância. Sem desconsiderar o outro.
Aqui a nossa regra nº 2: a verdade não tem dono


IV. A regra nº 3
 Uma vez, um sultão poderoso sonhou que havia perdido todos os dentes. Intrigado, mandou chamar um sábio que o ajudasse a interpretar o sonho. O sábio fez um ar sombrio e exclamou: "ma desgraça, Majestade. Os dentes perdidos significam que Vossa Alteza irá assistir a morte de todos os seus parentes". Extremamente contrariado, o Sultão mandou aplicar cem chibatadas no sábio agourento. Em seguida, mandou chamar outro sábio. Este, ao ouvir o sonho, falou com voz excitada: "Vejo uma grande felicidade, Majestade. Vossa Alteza irá viver mais do que todos os seus parentes". Exultante com a revelação, o Sultão mandou pagar ao sábio cem moedas de ouro. Um cortesão que assistira a ambas as cenas vira-se para o segundo sábio e lhe diz: "Não consigo entender. Sua resposta foi exatamente igual à do primeiro sábio. O outro foi castigado e você foi premiado". Ao que o segundo sábio respondeu: "a diferença não está no que eu falei, mas em como falei".Pois assim é. Na vida, não basta ter razão: é preciso saber levar. É possível embrulhar os nossos pontos de vista em papel áspero e com espinhos, revelando indiferença aos sentimentos alheios. Mas, sem qualquer sacrifício do seu conteúdo, é possível, também, embalá-los em papel suave, que revele consideração pelo outro.
Esta a nossa regra nº 3: o modo como se fala faz toda a diferença.

 

V. A regra nº 4 
Nós vivemos tempos difíceis. É impossível esconder a sensação de que há espaços na vida brasileira em que o mal venceu. Domínios em que não parecem fazer sentido noções como patriotismo, idealismo ou respeito ao próximo. Mas a história da humanidade demonstra o contrário. O processo civilizatório segue o seu curso como um rio subterrâneo, impulsionado pela energia positiva que vem desde o início dos tempos. Uma história que nos trouxe de um mundo primitivo de aspereza e brutalidade à era dos direitos humanos. É o bem que vence no final. Se não acabou bem, é porque não chegou ao fim . O fato de acontecerem tantas coisas tristes e erradas não nos dispensa de procurarmos agir com integridade e correção. Estes não são valores instrumentais, mas fins em si mesmos. São requisitos para uma vida boa. Portanto, independentemente do que estiver acontecendo à sua volta, faça o melhor papel que puder. A virtude não precisa de plateia, de aplauso ou de reconhecimento. A virtude é a sua própria recompensa. Eis a nossa regra nº 4: seja bom e correto mesmo quando ninguém estiver olhando. 

VI. A regra nº 5Em uma de suas fábulas, Esopo conta a história de um galo que após intensa disputa derrotou o oponente, tornando-se o rei do galinheiro. O galo vencido, dignamente, preparou-se para deixar o terreiro. O vencedor, vaidoso, subiu ao ponto mais alto do telhado e pôs-se a cantar aos ventos a sua vitória. Chamou a atenção de uma águia, que arrebatou-o em vôo rasante, pondo fim ao seu triunfo e à sua vida. E, assim, o galo aparentemente vencido reinou discretamente, por muito tempo. A moral dessa história, como próprio das fábulas, é bem simples: devemos ser altivos na derrota e humildes na vitória. Humildade não significa pedir licença para viver a própria vida, mas tão-somente abster-se de se exibir e de ostentar. Ao lado da humildade, há outra virtude que eleva o espírito e traz felicidade: é a gratidão. Mas atenção, a gratidão é presa fácil do tempo: tem memória curta (Benjamin Constant) e envelhece depressa (Aristóteles). Portanto, nessa matéria, sejam rápidos no gatilho. Agradecer, de coração, enriquece quem oferece e quem recebe.Em quase todos os meus discursos de formatura, desde que a vida começou a me oferecer este presente, eu incluo a passagem que se segue, e que é pertinente aqui. "As coisas não caem do céu. É preciso ir buscá-las. Correr atrás, mergulhar fundo, voar alto. Muitas vezes, será necessário voltar ao ponto de partida e começar tudo de novo. As coisas, eu repito, não caem do céu. Mas quando, após haverem empenhado cérebro, nervos e coração, chegarem à vitória final, saboreiem o sucesso gota a gota. Sem medo, sem culpa e em paz. É uma delícia. Sem esquecer, no entanto, que ninguém é bom demais. Que ninguém é bom sozinho. E que, no fundo no fundo, por paradoxal que pareça, as coisas caem mesmo é do céu, e é preciso agradecer".Esta a nossa regra nº 5: ninguém é bom demais, ninguém é bom sozinho e é preciso agradecer. 

VII. Conclusão
 Eis então as cláusulas do nosso pacto, nosso pequeno manual de instruções: 1. Nunca forme uma opinião sem ouvir os dois lados; 2. A verdade não tem dono; 3. O modo como se fala faz toda a diferença; 4. Seja bom e correto mesmo quando ninguém estiver olhando; 5. Ninguém é bom demais, ninguém é bom sozinho e é preciso agradecer.Aqui nos despedimos. Quando meu filho caçula tinha 15 anos e foi passar um semestre em um colégio interno fora, como parte do seu aprendizado de vida, eu dei a ele alguns conselhos. Pai gosta de dar conselho. E como vocês são meus filhos espirituais, peço licença aos pais de vocês para repassá-los textualmente, a cada um, com toda a energia positiva do meu afeto: (i) Fique vivo; (ii) Fique inteiro; (iii) Seja bom-caráter; (iv) Seja educado; e (v) Aproveite a vida, com alegria e leveza.Vão em paz. Sejam abençoados. Façam o mundo melhor. E lembrem-se da advertência inspirada de Disraeli: "A vida é muito curta para ser pequena".



http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI217918,61044-Cinco+licoes+sobre+a+vida+e+o+Direito+por+ministro+Barroso

terça-feira, 24 de março de 2015

STJ: Cobrança de água por estimativa de consumo é ilegal

É ilegal a apuração de tarifa de água e esgoto com base apenas em estimativa de consumo, por não corresponder ao serviço efetivamente prestado. Esse foi o entendimento da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em julgamento de recurso especial interposto pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae).
O caso aconteceu no bairro de Jacarepaguá. Um morador moveu ação contra a Cedae alegando receber cobranças pelo fornecimento de água desde 2006, com ameaça de corte, sendo que as casas de seu condomínio sempre foram abastecidas a partir de cisterna.

Enriquecimento ilícito
O débito, de mais de R$ 40 mil, foi calculado com base em estimativa de consumo. Na ação, o morador pediu o cancelamento de todas as cobranças apresentadas, além da colocação de hidrômetro, uma vez que possui toda a instalação necessária para o fornecimento de água.
A sentença, confirmada no acórdão de apelação, julgou o pedido procedente. No STJ, o relator, ministro Humberto Martins, entendeu que as decisões foram acertadas.
Segundo ele, a cobrança por estimativa, por não corresponder ao valor efetivamente consumido, pode ocasionar o enriquecimento ilícito da fornecedora. Além disso, Martins destacou que a instalação de hidrômetros é obrigação da concessionária e que, na falta desse aparelho, a cobrança do serviço deve ser feita pela tarifa mínima.
A decisão da Segunda Turma foi unânime.
Leia o votodo relator.

http://stj.jusbrasil.com.br/noticias/175802255/cobranca-de-agua-por-estimativa-de-consumo-e-ilegal?utm_campaign=newsletter-daily_20150324_913&utm_medium=email&utm_source=newsletter

quarta-feira, 18 de março de 2015

Comprei produto no exterior, tenho garantia no Brasil?

Um tema delicado e controverso que está longe de uma solução em decorrência de lei, porém, a maioria da jurisprudência tem o entendimento da obrigação de reparação de produto viciado mesmo que ele não tenha sido adquirido no Brasil, isso é decorrente de uma decisão do STJ quando o CDC ainda era uma lei recente, essa jurisprudência é oriunda do ano de 1990.
No despacho, a 4ª Turma do STJ diz que “se as empresas se beneficiam de marcas mundialmente conhecidas, devem responder também pelas deficiências dos produtos, não sendo razoável destinar ao consumidor as consequências negativas dos negócios envolvidos e defeituosos”.
Vou abrir um parágrafo para explicar o que seria um produto viciado ou com vícios, é quando o produto apresenta um DEFEITO, para fins jurídicos ele é chamado de vício, defeito segundo a legislação tem outra definição, alguns EXEMPLOS de vício em produtos (celular que não fala, televisão que não liga, notebook que tela não acende), enfim qualquer coisa que faça com que o produto não sirva para o fim que se destina.
É importante ressaltar que como devemos respeitar a legislação vigente para esses casos, os produtos que forem adquiridos no exterior terão sim a garantia em território nacional, porém, com um prazo de garantia menor do normal, porque a única garantia que podemos pleitear é a legal, essa é de 90 dias, com fulcro no art. 26º, II do CDC.
Nota-se que a maioria dos produtos adquiridos em território nacional tem o prazo de garantia de 12 meses ou um ano, essa garantia é denominada garantia contratual ela é decorrente de oferta que as fabricantes oferecem para seus consumidores, isso é decorrente da lei de oferta e procura, onde esse prazo de garantia passou a ser um chamariz para os consumidores.
Como bem disse acima, no caso do produto adquirido no exterior a garantia é diminuta é decorrente de legislação, portanto, sempre que o produto apresentar vício, esse prazo que estamos falando é quando o bem de consumo tem um vício aparente ou de fácil constatação.
O vício oculto pode ser levado a conhecimento da empresa sempre que o produto estiver dentro do seu prazo de vida útil.
Seguem algumas jurisprudência sobre o tema (TJRS; RecCv 0031248-03.2014.8.21.9000, TJSP; APL 1000994-02.2014.8.26.0008; Ac. 8239979).
Disponível em -> www.gastaomatos.blogspot.com.br

 Por: Gastão de Matos Junior

segunda-feira, 16 de março de 2015

8 desvantagens de morar junto ao invés de casar

Cada vez mais existe uma espécie de batalha entre o conceito de morar junto e o casamento. Uns dizem que o casamento é apenas um "papel" que se assina; outros argumentam que é preciso experimentar antes de se fazer um compromisso. Quando penso sobre a ideia de morar junto, uma comparação me vem à mente:

Todos nós já vimos um número realizado por trapezistas. Eles estão lá no alto, andando sobre cordas ou saltando, de um lado para o outro, apenas seguros num balanço e a confiar que os seus colegas os irão agarrar. Já vi alguns números assim, mas eles tornam-se mais interessantes quando fazem isso sem uma rede de segurança. Se algo correr mal, se um deles perde o equilíbrio ou se um hesita e não agarra a tempo, então as coisas poderão correr muito mal. Por isso eles trabalham a amizade e a confiança; eles também treinam dia e noite, sem negligenciar a sintonia que eles devem ter entre si, pois se algo corre mal, não dá para voltar e refazer tudo de novo.

Quando penso nesse exemplo, eu o aplico à relação entre as pessoas, principalmente as relações amorosas. O conceito de morar junto faz-me lembrar essa rede de segurança. Os trapezistas treinam mais e estão mais atentos, porque sabem que não há ali uma rede para os apanhar. Se a rede estivesse ali, eles poderiam vacilar e estar menos atentos, porque se falhassem por erro próprio, por preguiça ou por falta de sintonia, então as consequências não iriam ser maiores. Eles deixam de dar 100% porque não é preciso, porque a rede está lá. Quando se mora junto, a porta de saída é mais fácil de abrir; a ideia de compromisso é menos pesada porque não há nenhum contrato civil e moral que une as duas pessoas. O casamento é bem mais do que um papel assinado, é uma promessa de que se vai viver a relação sem o uso de uma rede de segurança; que se vai dar tudo para que a relação seja feliz, principalmente nos maus momentos.

Vamos ver oito desvantagens de morar juntos em vez de se casar:
  • 1. Os homens e as mulheres têm uma ideia diferente sobre o que significa morar junto

    Para a maioria das mulheres, morar junto significa um passo mais próximo do casamento e de realizar o seu sonho de se vestir como princesa no seu dia mais especial, mas para a generalidade dos homens, morar junto é visto como uma espécie de "teste" sem qualquer obrigação, ou seja, se cnão der certo, não faz mal, é fácil sair. Apesar de isso poder variar, quando duas pessoas fazem as coisas com ideias contraditórias, então é muito provável que as coisas possam acabar mal.
  • 2. Não existe a motivação do compromisso

    Hoje, a maior motivação para se morar junto é a motivação sexual, isto é, quando se namora, mas se vive em casas separadas, para acontecer algo mais, é preciso seduzir, é preciso mimar, dar presentes, é preciso trabalhar e até se fazer promessas, entretanto, quando se mora junto, sem um compromisso maior, as pessoas podem deixar de ser vistas como algo a amar, mas como algo menor. Esse problema também pode existir dentro dos casamentos, porém é mais visível quando duas pessoas moram juntas.
  • 3. Morar junto implica que o homem não terá de tentar conquistar a sua amada

    Casais, cada vez mais jovens, saltam logo de um namoro de semanas, ou poucos meses, para uma vida a dois sem compromisso. Um casamento implica planos, implica conquista e implica um compromisso realizado para a vida inteira e, por ser uma decisão difícil, é mais motivadora. Por existir essa falta na conquista e interesse, podemos ouvir casos em que o casamento acontece porque uma das partes insistiu muito (normalmente as mulheres) ou, quando algo está mesmo mal depois de uma discussão, ouvimos algo do tipo "não importa, nem casados estamos", e aqui entra o efeito da rede de segurança: é fácil sair.
  • 4. Não há interesse em levar as coisas para o próximo nível

    A vida a dois, sem compromissos, é tão livre que deixa de existir uma motivação para levar as coisas para o próximo nível. As mulheres irão ver as amigas e familiares casando e tendo filhos, mas elas não têm isso; elas esperam ouvir um pedido de casamento numa data especial, mas esse pedido não vai chegar.
  • 5. Casais que vivem juntos têm menos probabilidade de casar

    A ideia da rede de segurança volta neste ponto. Quando se vive junto, não existe a pressão do compromisso e da promessa de ficar juntos "na saúde e na doença, na alegria e na tristeza". Se algo corre mal, não é preciso lutar por uma promessa que não se fez nem se "assinou", perante Deus. Casamento é mais do que um papel assinado, é um contrato que duas pessoas fazem, perante Deus, de que irão cuidar uma da outra em qualquer situação. Quando se mora junto, essa motivação extra não existe, pode-se lutar pela relação mas não será com a mesma força.
  • 6. Morar junto não é uma forma viável de prever como será uma vida a dois durante uma vida

    Curiosamente, e contrário ao que se pensa na generalidade, o número de divórcios é maior em casais que viveram juntos antes de casar do que entre casais que apenas foram morar junto depois de casar. Apesar de se achar ser útil saber as rotinas de cada um no dia-a-dia, é mais benéfico usar esse tempo aplicando num namoro sério, onde se conversa e se tenta conhecer mais sobre a personalidade da pessoa ao seu lado, do que ir morar logo juntos, sem um compromisso firme, apenas para experimentar e facilitar a intimidade. Há mais motivação no amor quando é "tudo ou nada" do que quando se tem uma saída fácil.
  • 7. O efeito nos filhos quando o casal não é casado

    Já foi muito estudada a relação entre a saúde mental e emocional de uma criança que cresce num lar onde o conflito é menor e ambos os pais estão casados e a de crianças em que os pais estão divorciados ou apenas moram juntos. O compromisso e promessa realizados durante o casamento abrangem também os filhos, principalmente através do amor incondicional entre a mãe e o pai.
  • 8. Quem não casa não vive o entusiasmo de ser "recém-casados"

    O efeito da novidade, o entusiasmo de, depois de um namoro sério e de um casamento, entrar em casa, de mãos dadas, para viverem juntos pela primeira vez, é uma experiência maravilhosa. Tudo será uma novidade, e os dois terão de trabalhar todos os dias para viverem em sintonia até nas pequenas coisas. O amor que se vive, aliado ao entusiasmo da novidade, é o que irá mover os dois.


quinta-feira, 12 de março de 2015

Direito ao silêncio: origem, conteúdo e alcance

1 INTRODUÇÃO
Na busca por delinear os contornos do direito ao silêncio, expressamente insculpido no art. 5º, LXIII, desenvolver-se-á texto dissertativo contemplando a origem histórica, a dimensão e o alcance de tal direito fundamental.
O artigo focará o direito processual penal e procederá a análises dos dissídios jurisprudenciais e doutrinários concernentes a alguns dos aspectos do princípio da não autoincriminação, do qual emana o direito a silenciar-se.

2 DESENVOLVIMENTO
Inovação da Constituição Federal de 1988 (art. 5º, LXIII), o direito ao silêncio constitui corolário do nemo tenetur se detegere, a saber, o princípio da não autoincriminação, que assegura ao preso e ao acusado em geral o rechaço a obrigatoriedades de produção de provas contra si mesmo.
Anteriormente à disciplina constitucional vigente, a temática era enfrentada no campo do devido processo legal e dos demais princípios setoriais do processo penal inerentes à sistemática própria do rito acusatório.
Sua positivação foi bastante influenciada pelo direito norte-americano, especialmente a partir do caso Miranda v. Arizona, de 1966, no qual se consignou a tese de que nenhuma serventia pode ser conferida às declarações feitas por uma pessoa à polícia sem que o envolvido tenha sido informado acerca, simplesmente, de seu direito a não responder. Ensina Gilmar Mendes:
Tal como anotado pelo Min. Pertence em magnífico voto proferido no HC. 78.708, de que foi o relator (DJ de 16-4-1999), “o direito à informação da faculdade de manter-se silente ganhou dignidade constitucional – a partir de sua mais eloquente afirmação contemporânea em Miranda VS. Arizona (384 US 436, 1996), transparente fonte histórica de sua consagração na Constituição brasileira – porque instrumento insubstituível da eficácia real da vetusta garantia contra a autoincriminação – nemo tenetur prodere se ipsum, quia nemo tenere detegere turpitudinem suam –, que a persistência planetária dos abusos policiais não deixa de perder atualidade”. Essas regras sobre a instrução quanto ao direito ao silêncio – as chamadas Miranda rules – hão de se aplicar desde quando o inquirido está em custódia ou de alguma outra forma se encontre significativamente privado de sua liberdade de ação: “while in custody at the station or otherwise deprived of his freedom of action in any significant way” (BRANCO; MENDES, p. 638).
            Ainda no plano internacional, impende destacar as previsões do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (14, 3, “g”), da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (8, §2º, “g), da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, da ONU, e da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, da OEA, avenças convergentes no sentido da consagração do direito a calar-se em hipóteses passíveis de um autoprejuízo.
            No direito pátrio infraconstitucional, avulta o disposto no art. 186 do Código de Processo Penal, o qual dispõe acerca da imposição de que o juiz informe o acusado, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas, ao que se soma a previsão do parágrafo único do mesmo dispositivo, vedando a utilização do silêncio como confissão e como argumento em desfavor do réu.
            A titularidade do direito é atribuída não somente ao preso, como o texto constitucional brasileiro e alguns diplomas referidos parecem sugerir, mas também ao solto e a qualquer indivíduo posicionado como objeto de procedimento investigatório.
            Da mesma forma, protegem-se as testemunhas e as vítimas chamadas a depor nas fases inquisitiva e processual, porquanto é incabível imaginar que possam ser forçadas a responder a perguntas que, de alguma maneira, revelem-se idôneas a incriminá-las, entendimento aplicável às searas das Comissões Parlamentares de Inquérito e dos processos disciplinares, numa interpretação lógico-sistemática propensa a prestigiar tal direito fundamental.
Que, para a efetivação do direito, exige-se a advertência, prévia e formal, quanto à faculdade do silêncio, sob pena de vícios na prova obtida a partir de uma involuntária autoincriminação, resulta evidente, remanescendo dúvidas, todavia, no que tange à natureza dessa nulidade.             Embora não se despreze a cizânia jurisprudencial e doutrinária nesse particular, os Tribunais Superiores têm assinalado que a ausência da advertência quanto ao direito ao silêncio não gera, automaticamente, nulidade, a qual precisa associar-se a prejuízo e falta de voluntariedade para que se justifique a retirada da higidez do ato processual (ver STF: AP 611/MG, Primeira Turma, Rel. Min. Luiz Fux, 30/09/2014, AP 530/MS, Primeira Turma, Rel. Min. Luis Roberto Barros, 09/09/2014; STJ: RHC 30528, Quinta Turma, Rel. Min. Gurgel de Faria, 4/11/2014; HC 189364, Sexta Turma, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 13/08/2013).
            Trata-se, bem se vê, de nulidade relativa, e não absoluta, sendo imprescindível a obediência aos ditames dos artigos 563 e 571 do Código de Processo Penal, qualificando-se como desarrazoada e exageradamente formal decisão declaratória de nulidade de processo ou de ato processual quando não constatado qualquer prejuízo à defesa, mormente quando o réu encontra-se acompanhado de advogado ao longo de todo o feito, como, costumeira e ordinariamente, acontece.
            Diga-se, por oportuno, que o Supremo Tribunal Federal (HC 99.558, Rel. Min. Gilmar Mendes, 14/12/2010) já registrou jurisprudência no sentido de que o dever de advertir sobre o privilégio é somente de agentes públicos, e não de outras pessoas que não sejam responsáveis primariamente por determinada investigação (CARVALHO, p. 458). Não haveria ilegitimidade, portanto, na aquisição de provas oriundas de confissões espontâneas perante a imprensa.
            Contudo, por óbvio, é relevante que se evite a concessão de entrevistas por presos aos jornais e aos profissionais da psicologia ou da psiquiatria, por exemplo, salvo se tenha havido previamente a advertência quanto ao direito estudado. Do contrário, torna-se possível pensar em confissão reputada inadmissível como prova, pois obtida fora das proteções plasmadas na Carta da República.
            Na mesma linha, subsiste intensa celeuma respeitante ao alcance do direito ao silêncio ao imputado que falseia suas declarações para ver-se livre de uma acusação, discutindo-se se o direito a não produzir provas contra si mesmo, do qual o direito ao silêncio é manifestação, resguarda o direito de mentir.
            Em nosso sentir, em que pesem os louváveis entendimentos em contrário, a conclusão de Guilherme Nucci qualifica-se como irretocável, uma vez que o comportamento de dizer a verdade, em absoluto, não pode ser exigível do acusado, sendo inconstitucional qualquer sanção ou restrição eventualmente aplicada àquele que, para defender-se de uma acusação, valendo-se de seu direito fundamental à ampla defesa, escolha o ato da mentira. Diz ele:
Sustentamos ter o réu o direito de mentir em seu interrogatório de mérito. Em primeiro lugar, porque ninguém é obrigado a se autoacusar. Se assim é, para evitar a admissão de culpa, há de afirmar o réu algo que saber ser contrário à verdade. Em segundo lugar, o direito constitucional à ampla defesa não poderia excluir a possibilidade de narrar inverdades, no intuito cristalino de fugir à incriminação. Aliás, o que não é vedado pelo ordenamento jurídico é permitido. E se é permitido, torna-se direito (...) No campo processual penal, quando o réu, para se defender, narra mentiras ao magistrado, sem incriminar ninguém, constitui seu direito de refutar a imputação. O contrário da mentira é a verdade. Por óbvio, o acusado está protegido pelo princípio de que não é obrigado a se autoincriminar, razão pela qual pode declarar o que bem entender ao juiz. É, pois, um direito (NUCCI, p. 456).
            Se, contudo, essa mentira defensiva é tolerada, a mesma assertiva não pode ser feita no caso das mentiras agressivas, ocorridas quando o envolvido imputa falsamente a terceiro inocente a prática delitiva ou na circunstância em que se acusa de crime inexistente ou praticado por outra pessoa, devendo, por conseguinte, responder pelo crime de denunciação caluniosa e de autoacusação falsa, respectivamente dispostos nos artigos 339 e 341 do Código Penal.
            Tem prevalecido, outrossim, o argumento de que o direito ao silêncio não abrange o direito de falsear a verdade no tocante à identidade pessoal, exsurgindo típica a conduta de apresentar-se com nome falso ao ser preso no afã de esconder os maus antecedentes (STF: HC 112846 / MG, Primeira Turma, Rel. Min. Roberto Barroso, 02/09/2014; STJ: AgRg no REsp 1269369 / RS, Sexta Turma, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJ 04/12/2014).
            Outra controvérsia digna de nota reside na problemática do silêncio parcial, impondo-se aferir se o sujeito pode responder apenas a algumas das perguntas que lhe forem formuladas ou, ao contrário, se não pode calar-se após ter inicialmente optado por contribuir para a persecução penal quando advertido da garantia da não autoincriminação.
            No direito anglo-americano, ou o acusado exerce o direito a não ser interrogado, ou se submete ao dever de depor e de revelar a verdade, não se admitindo, em moldes semelhantes ao que se dá no direito alemão, o silêncio parcial.
            A utilização desse raciocínio emanado do direito comparado não se afigura compatível com o Estado Democrático de Direito consagrado no Brasil, onde avulta a indispensabilidade da proteção contra as hostilidades e as intimidações tradicionalmente efetuadas contra o réu pelo aparelho estatal (PACELLI, p. 384).
            A solução, mais uma vez, não pode ser outra que não a que consigne a maior proteção ao constitucionalmente tutelado, evitando-se estreitas interpretações que não se harmonizam com a Lei Maior e com o estatuto de regência.
            Assim, se existe o direito a não responder perguntas, há de emergir o direito ao silêncio em relação a algumas ou a todas as indagações, obstando-se qualquer valoração em prejuízo das faculdades exercidas pela defesa neste particular. Pode o investigado, logo, regredir para uma opção em favor do direito ao silêncio ainda que tenha optado, primeiramente, pela postura ativa.
            Por derradeiro, soa importante asseverar que a exigência do consentimento do acusado surge quando a produção da prova demandar uma atitude ativa, o que não ocorre quando daquele seja necessária tão somente uma cooperação singelamente passiva ou de mera tolerância no contexto probatório. De fato:
(...) sempre que a produção da prova tiver como pressuposto uma ação por parte do acusado (v.g., acareação, reconstituição do crime, exame grafotécnico, bafômetro, etc.), será indispensável seu consentimento. Cuidando-se do exercício de um direito, tem predominado o entendimento de que não se admitem medidas coercitivas contra o acusado para obrigá-lo a cooperar na produção de provas que dele demandem um comportamento ativo. Além disso, a recusa do acusado em se submeter a tais provas não configura o crime de desobediência nem o de desacato, e dela não pode ser extraída nenhuma presunção de culpabilidade, pelo menos no processo penal (LIMA, p. 81).
            Descabe a alegação de ofensa ao nemo tenetur se detegere, portanto, no que respeita às provas que exigem somente a tolerância do acusado, não persistindo o direito de não produzir provas contra si mesmo quando o imputado for objeto de verificação, o que se opera em se tratando, por exemplo, do ato de reconhecimento pessoal.

3 CONCLUSÃO
Novidade da Constituição Federal de 1988 (art. 5º, LXIII), o direito ao silêncio constitui corolário do nemo tenetur se detegere, a saber, o princípio da não autoincriminação, que assegura ao preso e ao acusado em geral o rechaço a obrigatoriedades de produção de provas contra si mesmo.
            A titularidade do direito é atribuída não somente ao preso, como o texto constitucional brasileiro e alguns diplomas referidos parecem sugerir, mas também ao solto e a qualquer indivíduo posicionado como objeto de procedimento investigatório.
            A ausência da advertência quanto ao direito ao silêncio não gera, automaticamente, nulidade, a qual precisa associar-se a prejuízo e involuntariedade para que se justifique a retirada da higidez do ato processual. Trata-se, portanto, de nulidade relativa.
            Embora esteja respaldado o direito do acusado a mentir, este não contempla as mentiras agressivas, ocorridas quando o envolvido imputa falsamente a terceiro inocente a prática delitiva ou na circunstância em que se acusa de crime inexistente ou praticado por outra pessoa, devendo, por conseguinte, responder pelo crime de denunciação caluniosa e de autoacusação falsa, respectivamente dispostos nos artigos 339 e 341 do Código Penal.
            Na medida em que existe o direito a não responder perguntas, há de emergir o direito ao silêncio em relação a algumas ou a todas as indagações, obstando-se qualquer valoração em prejuízo das faculdades exercidas pela defesa neste particular. Pode o investigado regredir para uma opção em favor do direito ao silêncio ainda que tenha optado, inicialmente, pela postura ativa.
            A exigência do consentimento do acusado surge quando a produção da prova demandar uma atitude ativa, o que não ocorre quando daquele seja necessária tão somente uma cooperação singelamente passiva ou de mera tolerância no contexto probatório.

4  REFERENCIAL TEÓRICO
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Comentário ao artigo 5º, LXIII. In: CANOTILHO, J.J. GOMES; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2014.
NUCCI, Guilherme. Código de Processo Penal Comentado. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2014.

COSTA, Lucas Sales da. Direito ao silêncio: origem, conteúdo e alcance. Jus Navigandi, Teresina, ano 20, n. 4257, 26 fev. 2015. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/36722>. Acesso em: 11 mar. 2015.