quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Tratamento jurídico e social à pessoa traída no passado e no presente (Vladimir Passos de Freitas)

A traição no amor sempre fez parte das relações humanas. O nono dos Dez Mandamentos dispõe: não cobiçar a mulher do próximo. Por sua vez, Jesus Cristo (Evangelho de João, 8:1-11) revelou a necessidade de misericórdia com os que erram, dizendo: “Aquele que dentre vós está sem pecado, seja o primeiro que lhe atire uma pedra”.
Entre 1572 e 1617, o teólogo alemão Georg Braun escreveu em seis tomos a obra Civitates orbis terrarum, onde descreveu os costumes e características das mais importantes cidades de seu tempo. No quinto volume,[1] falando sobre a cidade de Sevilha,  inseriu uma pintura (vide abaixo) com um castigo público a uma mulher adúltera e ao seu marido, que nela é chamado de “Cornudo Paciente”, pois, ao que tudo indica, concordava com as aventuras da sua mulher.
O homem trazia na cabeça uns galhos que imitavam chifres e, atrás dele, uma mulher com o rosto escondido e um provável servidor da Justiça que executava a sentença do Tribunal do Santo Ofício. Açoitavam-no com umas varas compridas, sob a supervisão de um homem a cavalo, certamente um alto servidor do Tribunal. Na frente, dois jovens caçoavam com os dedos em V, que tinha naquele tempo o mesmo significado de hoje.A traição conjugal sempre foi repudiada, mas, revelando o machismo milenar da humanidade, nas mais diferentes culturas, a reprovação era apenas contra a conduta da mulher.
Nosso Código Penal, de 1940, trazia no artigo 240 a previsão de adultério, punido com 15 dias a 6 meses de prisão simples. Como promotor de Justiça de 1970 a 1980, nunca vi uma ação penal por tal crime. Este artigo foi revogado em 2005.
Na verdade, quando havia alguma iniciativa policial o objetivo mesmo era o de colher provas para a ação de natureza civil, que no passado se chamava desquite. Com a prova do adultério, o marido traído venceria a ação civil e seriam a seu favor todas as consequências da sentença, por exemplo, não pagar alimentos.
Certa feita, no ano de 1968, como estagiário de delegado de Polícia na cidade de São Vicente, tive ocasião de acompanhar uma diligência policial relacionada com o então crime de adultério. O marido traído compareceu à Delegacia com seu advogado. Era um sábado à tarde, momento propício para o ato furtivo. Acompanhados do delegado e da vítima, fomos em caravana ao apartamento onde estaria se dando a prática sexual proibida. Após a autoridade policial dar três batidas na porta e dizer em voz alta “abra em nome da lei”, depois de uns 15 minutos saiu o conquistador, seguido pela envergonhada esposa, esta com uma toalha na cabeça. Foram autuados em flagrante e depois postos em liberdade.
Havia ainda uma circunstância paralela no pensamento da época. Não raramente maridos assassinavam mulheres adúlteras, às vezes por mera suspeita, e levados a julgamento perante o Tribunal de Júri, onde só havia homens, eram absolvidos por legítima defesa da honra.
No âmbito penal, foi lenta a evolução para firmar-se jurisprudência no sentido de que a honra não se transfere, ou seja, que o marido não podia considerar-se ofendido pela quebra de compromisso de fidelidade da mulher. Esta, sim, é que teria sua honra ferida, que deveria sentir vergonha e não ele. A partir desta mudança de foco surgiram as primeiras condenações em casos de homicídio. Cita-se, a título de exemplo, acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo:
Júri - Decisão contrária à evidência dos autos - Impossibilidade do seu reconhecimento - Decisão dos Jurados fundamentada em prova existente nos autos - Legítima defesa da honra - Marido que mata a mulher - Inexistência da legitima defesa da honra - Asfixia - Reconhecimento de meio cruel - Rejeição de homicídio privilegiado - Pena corretamente dosada, tendo em conta o afirmado pelos Jurados - Regime inicial fechado - Apelo improvido.[2]
O tempo passou e, com ele, a aplicação do Direito. Na sociedade atual, pelo menos no mundo ocidental, a traição passou a ser vista com menos rigor. O tema acabou se desenvolvendo no âmbito civil. Corretamente, pois o Direito Penal não deve ocupar-se de assunto que diz respeito exclusivo dos cônjuges. Vejamos a jurisprudência.
A primeira observação é a de que não é mais necessário, como ao tempo dos romanos, que ocorra o que o advogado Paulo Sérgio Leite Fernandes membra em artigo anterior à descriminalização:  “solus cum sola, nudus cum nuda, in eodem lecto” cuja tradução, em interpretação livre é: “Ambos nus, isolados, no mesmo leito”. [3] Não, agora para que haja a traição não precisam estar nus. Ela pode ser reconhecida mesmo que ambos estejam vestidos e à distância.
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal julgou procedente ação de indenização de mulher contra o marido, por manter relacionamento com outra mulher via internet, condenando-o a pagar R$ 20 mil de indenização, mesmo não tendo relações carnais.[4] O demandado deixou gravadas no disco rígido de seu computador mensagens eróticas trocadas e a demandante, conhecendo a sua senha, teve acesso à prova material da conduta.
Não há mais distinção de tratamento pelo fato do traidor ser o homem ou a mulher. A jurisprudência vem condenando maridos sem distinção. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em decisão colegiada de 1988, portanto em época em que as mulheres tinham seus direitos menos respeitados, decidiu que
Separação judicial. Adultério do marido evidenciado nos autos. Nenhuma prova demonstrou vida desregrada da mulher: a prova do processo ha de ser analisada e valorada tendo-se em conta a época em que vivemos: critérios, valores, atitudes e comportamentos segundo as pessoas, no caso de classe media, que constituem os personagens vivos, de carne e osso, com que o juiz convive. Improveram a primeira e proveram a segunda apelação. [5]
            Contudo, para que haja indenização por danos morais, há julgados que entendem necessária prova objetiva da lesão à honra. Vale dizer, não basta a traição, é preciso que ela tenha exposto a vítima ao ridículo, à humilhação. Veja-se, a título de exemplo, decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:
INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - INFIDELIDADE CONJUGAL - AUSÊNCIA DE PROVA DE OFENSA À HONRA SUBJETIVA - RESPONSABILIDADE CIVIL NÃO CONFIGURADA. A alegação de infidelidade conjugal, por si só, sem a prova de ofensa à honra objetiva da vítima, não enseja a condenação em indenização por danos morais, por ausência dos elementos configuradores da responsabilidade civil.[6]
E há, ainda, casos em que o marido participa da traição da mulher, seja porque se excita com o fato, seja porque dele obtém alguma vantagem econômica, social ou profissional. Isto não é algo típico dos tempos atuais, sempre existiu ainda que em menor quantidade. A diferença é que agora tornou-se público, inclusive objeto de sites na internet. Nestes casos, obviamente, não há direito a qualquer tipo de reclamação por infidelidade.
Em suma, a sociedade se transforma e o Direito deve acompanhar as mudanças. A traição não deixa de ser vista com reprovação. Todavia, sem os rigores da Idade Média. Felizmente.

[1] José Júlio García Arranz. El castigo del cornudo paciente:  um detalle iconográfico en La Vista de Sevilla de Joris Hoefnagel (1593). Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/3755287.pdf. Acesso em 08 out. 2016.
[2] TJ-SP - ACR: 974554370000000 SP, Relator: Almeida Sampaio, Data de Julgamento: 13/10/2008,  2ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 25/11/2008. Acesso 7/9/2016.
[3] FERNANDES, Paulo Sérgio Leite.Revogação da punição de adultério na lei será um avanço. In: revista eletrônica Consultor Jurídico, 21/9/2004.
[4] http://www.jurisway.org.br/v2/noticia.asp?idnoticia=25169, acesso em 6/9/2016.
[5] TJRS, Apelação Cível Nº 587048166, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nelson Oscar de Souza, Julgado em 30/06/1988.
[6] TJ-MG - AC: 10699060652137001 MG, Relator: Brandão Teixeira, Data de Julgamento: 10/07/2013,  Câmaras Cíveis / 2ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 19/07/2013.
Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.
Revista Consultor Jurídico, 9 de outubro de 2016, 8h02
http://www.conjur.com.br/2016-out-09/segunda-leitura-tratamento-juridico-social-pessoa-traida-passado-presente

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