terça-feira, 28 de março de 2017

Opinião: É preciso entender o negro e dar espaço para ele achar sua personalidade

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O dia da consciência negra foi fixado em 20 de novembro por ser o aniversário da morte de Zumbi do Palmares. Dentre tantas objeções que ouço, uma questão que se apresenta para mim é a sua representatividade.
Tentar explicitar as origens e indagações que surgem por conta da instituição de um dia para os negros foi o que me levou a escrever este texto, que se apresenta extremamente diminuto para o tamanho do quadro envolvido.
O primeiro ponto é o questionamento de “por que não o dia da consciência humana”. Ora, se a intenção é chamar atenção para a necessidade de igualdade racial, como uma abstração iria ajudar?
Pensar na consciência humana é tão genérico que acaba excluindo do âmbito da discussão aquilo que se quer envolver.
Seguindo por este caminho, um aspecto precisa ser esclarecido: a necessidade de autoafirmação e ratificação de determinado assunto, qual seja, a desconstrução do etnocentrismo.
Um grande problema que enfrentamos é a necessidade de eterna justificação da luta pela emancipação dos afrodescendentes. Se antes era uma verdade absoluta a desqualificação, hoje o discurso se concentra em (i) que inexiste racismo e (ii) falar da diferença é errado, porque todos são iguais.
Existe uma pesquisa interessante sobre o racismo, que consiste em duas perguntas: se ele existe e se o entrevistado se considera racista. 98% das pessoas afirmaram que há racismo no país e 95% não se considera racista. Quando não se reconhece a própria responsabilidade dentro de um determinado problema, exclui-se a possibilidade de identificá-lo com clareza e, por conseguinte, a sua resolução, abstrativizando a questão e apontando a um ente disforme aleatório.
Ainda como um conceito aberto e em construção, entendo a sistemática do racismo como uma instituição que se espalha por todos (ou grande parte) dos nichos da sociedade contemporânea. O caráter genérico dessa figura se dá por sua presença concreta em todas as partes da sociedade, diferente do que se coloca normalmente como à margem, acredito que ele esteja potencialmente presente na maioria das vezes.
Isso se dá quando analisamos alguns dados estruturais de nossa sociedade.
O Brasil tem 53% de negros e 46,3% de brancos em sua população. Quando observamos as faixas de renda, esse equilíbrio some. Na zona classificada como extremamente pobre, evidencia-se que 71% é composta por negros, traduzidos em 5,6 milhões de pessoas. Ainda na base, mas subindo um degrau, considerada pobre, o correspondente é de 75% negros, ou 7,3 milhões de pessoas.
Recentemente chegou ao conhecimento da população um dado, no mínimo, curioso: dos 5.568 municípios do país, em 2.512 cidades não há candidato negro (preto ou pardo) disputando as eleições para o cargo de prefeito. Isso quer dizer que em 45,11% das cidades sequer existe negros que se candidatem ao cargo de chefe do executivo local.
De acordo com o último Censo racial do CNJ, em 2010, no Brasil, temos apenas 1,4% de juízes negros. No MP-SP, apenas 3% de promotores negros.
Por último, um fato assustador: segundo o Ministério da Saúde, somente no ano de 2014, no Brasil, 44.582 negros morreram por homicídio. Isso quer dizer que todos os dias morreram 123 negros, correspondendo a 2,4 vezes mais do que brancos, demonstrando um crescente em relação aos demais anos em que a taxa de mortalidade era de 34,7 em 2011, 36,2 em 2012 e 36,4 em 2013.
Assim, quem hoje não vê diferença entre brancos e negros, precisa de óculos para memória e para mínima capacidade crítica. Explico: historicamente todos sabem que o ponto de partida do desenvolvimento da personalidade do negro, enquanto ser humano, é absolutamente recente, já que até a abolição da escravatura, sua classificação era coisa.
Então, falo de 128 anos a partir de uma liberdade formal (abolição da escravatura no Brasil) versus séculos e séculos de pleno desenvolvimento do curso do destino do mundo. Creio que este argumento não pode ser ignorado quando se analisa as diferenças existentes.
Daí a imprescindibilidade de se refletir sobre o papel do negro hoje. Quando falo em pertencimento, penso em dois planos, quais sejam o da pessoa e o de integrante da sociedade.
Enquanto ser humano, urge a necessidade de não somente observar e entender o negro como um sujeito, mas sim de conceder a ele o espaço de desenvolvimento de identidade para o alcance pleno de sua personalidade.
No âmbito da integração, está a lógica da anuência e aceitação da diversidade. Assim, uma das referências mais fortes que me vem à cabeça é um samba da Vila Isabel do carnaval de 1988, de Luiz Carlos da Vila, sobre esta data que representa tanta coisa, cuja letra peço licença para transcrever:
“Valeu Zumbi / O grito forte dos Palmares / Que correu terras, céus e mares / Influenciando a Abolição / Zumbi valeu / Hoje a Vila é Kizomba / É batuque, canto e dança / Jongo e Maracatu / Vem, menininha, pra dançar o Caxambu / Ô nega mina / Anastácia não se deixou escravizar / Ô Clementina / O pagode é o partido popular / Sarcedote ergue a taça / Convocando toda a massa / Nesse evento que congraça / Gente de todas as raças / Numa mesma emoção / Esta Kizomba é nossa constituição / Que magia / Reza, ajeum e orixá / Tem a força da Cultura / Tem a arte e a bravura / E um bom jogo de cintura / Faz valer seus ideais / E a beleza pura dos seus rituais / Vem a Lua de Luanda / Para iluminar a rua / Nossa sede é nossa sede / De que o Apartheid se destrua”.
Em uma música com um pouco mais de um minuto, na qual o poeta conseguiu captar e resumir todo o conteúdo deste texto e ganhar o carnaval do referido ano, é possível destacar todo o grito de independência de identidade pretendida ainda hoje pelos negros, que contribui para o atingimento do nível de parte, enquanto identificável pertencente a um grupo, bem como de participante, no sentido da atuação relevante no contexto social.
Interessa atentar, ainda, para o destaque das mais variadas características particulares do povo de matriz africana, chegando-se a eleger uma constituição própria, revelando uma separação imposta, como exemplo do Apartheid, em que se pede o seu fim. Daí, a dicotomia identificadora e integrativa exposta neste texto.
Ser parte e ser referência é o objetivo, pois, do processo de busca pela igualdade étnica que se deve discutir, pensar e projetar pelo dia da consciência negra.
Não quer dizer que a carga histórica de luta por identidade de um povo seja fixada somente por um dia; o raciocínio é inverso, existe um dia oficialmente designado para lembrar a necessidade de olhar ao passado para escrever um novo futuro, sem que se olvide que os esforços necessários são realizados diariamente. Por este motivo, recorrer à consciência a respeito da situação da desigualdade racial é importante.
Uma frase atribuída a Martin Luther King diz que “a maior tragédia do período de transição social não é o clamor dos maus, mas o silêncio dos bons”. Portanto, é preciso repisar que fechar os olhos para os fatos da desigualdade histórica e atual, é anuir com a perpetuação de uma situação que não se deve permitir permanecer da forma que continua se apresentando.

Assim, entendo que enquanto existir a necessidade de integração e independência, enquanto a distância imposta pelos vários anos de submissão não for substituída pela igualdade de oportunidade, será plenamente justificável a manutenção e reverberação de um dia da consciência negra, nem que se preste a mera discussão, porque, como ensina um provérbio africano “o sol caminha devagar, mas atravessa o mundo” e assim espero que consigamos um dia.
Irapuã Santana do Nascimento da Silva é assessor de ministro no Supremo Tribunal Federal, mestre e doutorando em Direito Processual pela UERJ. Professor da pós-graduação do UniCEUB.
Revista Consultor Jurídico, 20 de novembro de 2016, 10h44
http://www.conjur.com.br/2016-nov-20/irapua-silva-dia-consciencia-negra

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