sexta-feira, 24 de março de 2017

Os agrotóxicos chegaram ao leite materno, e o que podemos fazer?

Como mamíferos, é elementar que sejamos nutridos com leite materno. Artificial é que já nos primeiros dias de vida nossa comida seja um misto de leite com agrotóxico. E, pior ainda, que estejamos em contato com tais substâncias nocivas desde nosso início de desenvolvimento intrauterino. Mas é isso o que está acontecendo, como prova um estudo elaborado pela Universidade Federal de Mato Grosso.
Em 2011, a dissertação de mestrado intitulada “Agrotóxicos em leite humano de mães residentes em Lucas do Rio Verde – MT”, apresentada no Instituto de Saúde Coletiva, descreveu um processo de pesquisa com mães em período de amamentação, que foi conclusivo no sentido de que havia contaminação por agrotóxicos em 100% das amostras de leite analisadas.
A intensa produção agrícola no município despertou o interesse pela pesquisa, que acabou confirmando a suspeita: estamos destruindo a natureza e a saúde da presente e das futuras gerações com a utilização excessiva e equivocada de agrotóxicos!  
Embora os resultados encontrados, o estudo manteve o aconselhamento da Organização Mundial da Saúde (OMS) no sentido de que “as crianças devem fazer aleitamento materno exclusivo até aos 6 meses de idade. Ou seja, até essa idade, o bebê deve tomar apenas leite materno e não deve dar-se nenhum outro alimento complementar ou bebida”[1].
Mais um desafio da pós-modernidade: de um lado, estudos apontam os ganhos do aleitamento materno para os bebês; por outro, pesquisas mostram que o leite fornecido aos inocentes recém-nascidos não é apenas leite, pois vem agregado de componentes tóxicos.
O que fazer em uma situação como essa? A ciência pode indicar a melhor alternativa hoje, mas amanhã mudar de opinião. Tais incertezas podem ser decisivas para a saúde — ou sua falta — de um número incontável de seres humanos.
Sabemos que não é privilégio de nosso país o uso excessivo e descontrolado daquilo que o setor agrário chama de “defensivos agrícolas”. Inobstante, não podemos perder de vista que, desde 2008, o Brasil ocupa o 1º lugar no ranking mundial de consumo de agrotóxicos. Além disso, parte significativa dos produtos usados na agricultura brasileira é proibida na União Europeia e nos Estados Unidos. Dos 50 agrotóxicos mais utilizados no país, 22 são vedados nos países europeus[2].
Outras informações de destaque acerca do tema foram divulgadas pelo Instituto Nacional do Câncer (Inca)[3] em abril de 2015. Cada brasileiro consome aproximadamente um galão de cinco litros de agrotóxicos por ano. Além disso, o Dossiê Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)[4] 2015 apontou que 70% dos alimentos in natura consumidos no país estão contaminados por agrotóxicos. Os impactos para o ser humano, segundo o Inca[5], são “infertilidade, impotência, abortos, malformações, neurotoxicidade, desregulação hormonal, efeitos sobre o sistema imunológico e câncer”.
O mercado dos agroquímicos se caracteriza por elevado nível de concentração, onde seis multinacionais dominam cerca de 70% do comércio mundial, sendo elas: Syngenta, Basf, Bayer, Dow, Monsanto (recentemente adquirida pela Bayer) e Dupont[6].
O poder econômico dessa indústria torna “letra morta” importantes regras como as previstas na Lei 7.802/89, em seu artigo 3º, parágrafo 6º, que vedam o registro de agrotóxicos no Brasil quando as substâncias se revelem carcinogênicas; provoquem distúrbios hormonais ou danos ao aparelho reprodutor; e “se revelem mais perigosas para o homem do que os testes de laboratório, com animais, tenham podido demonstrar, segundo critérios técnicos e científicos atualizados”.
Nesse ponto, impõe-se uma reflexão mais profunda sobre o fato de vários produtos aplicáveis no setor agrícola brasileiro serem proibidos nos países de origem, a exemplo do que acontece com os agrotóxicos à base do princípio ativo paraquate, da suíça Syngenta, que não podem circular na Comunidade Europeia. Sob tal fundamento, proibiu-se seu uso no Rio Grande do Sul, mas liminar judicial cassou a decisão administrativa que restringiu o produto em solo gaúcho.
Essa situação leva, inexoravelmente, ao seguinte questionamento: estaria a indústria agroquímica valendo-se do terceiro mundo como local de testagem humana para os produtos que coloca no mercado? Se a resposta for sim, as cobaias humanas somos nós!
E temos como nos proteger, blindar, se o que está disponível para nosso consumo vem acompanhado dos produtos tóxicos e somente testados suficientemente em laboratório, com animais? Como vimos no início, nem mesmo livrar os inocentes bebês de alimentos industrializados coloca-os à margem dos riscos, já que análises laboratoriais constatam a presença dos “defensivos” até mesmo no “leitinho da mamãe”. 
Apesar de não ser nada fácil lutar contra o sistema, sobretudo quando estamos tratando de uma estrutura que comanda parcela significativa do PIB global, o Ministério Público vem adotando providências tendentes a defender os interesses sociais e ambientais contra a utilização desordenada e abusiva dos ditos “defensivos agrícolas”. Passemos a três exemplos recentes e com resultados.
Em um dos inquéritos civis em tramitação na Bacia Hidrográfica do Rio Gravataí, no Rio Grande do Sul, onde atuo como promotor de Justiça regional, foi expedida recomendação ao Crea para que os prescritores de agrotóxicos somente o fizessem mediante prévia e atual vistoria na lavoura respectiva. O Crea acolheu a recomendação, expedindo norma de fiscalização obrigando os profissionais a proceder da forma acima mencionada e, com isso, combatendo-se a chamada “receita de balcão”, que é aquela pré-elaborada para que os comerciantes de tais produtos concretizem a venda independentemente da visita a campo.
Outro expediente da Promotoria regional resultou em recomendação ao órgão licenciador estadual para que restringisse a pulverização aérea de agrotóxicos em ambientes sensíveis de uma unidade de conservação onde há o plantio de milhares de hectares de arroz. Essa providência foi adotada em razão das peculiaridades do local e por ter sido flagrada deriva de agrotóxicos em uma das fazendas situadas na APA do Banhado Grande, com visíveis danos ao meio ambiente.
O último exemplo, dentre outros que poderiam ser aqui mencionados, é um termo de ajustamento de conduta firmado entre Promotoria de Justiça de Defesa do Consumidor de Porto Alegre, Ceasa, Fundação Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde, Secretaria Municipal de Saúde e Crea, por meio do qual a Vigilância Sanitária se comprometeu a recolher amostras de hortigranjeiros para análises laboratoriais mensais e, sendo constatadas irregularidades, a Ceasa obrigou-se a aplicar sanções aos permissionários e autorizatários.
Quando sinto que tudo o que faço e vejo fazerem para a proteção da saúde pública e do meio ambiente em face desse contexto é muito pouco, surgindo uma ponta de frustração, logo me vem à mente as sábias palavras de Madre Teresa de Calcutá, e logo passa. Vamos ao ensinamento: “Por vezes, sentimos que aquilo que fazemos não é senão uma gota de água no mar. Mas o mar seria menor se lhe faltasse uma gota”.

Eduardo Coral Viegas é promotor de Justiça no MP-RS, graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Civil e mestre em Direito Ambiental. Foi professor de graduação universitária e atualmente ministra aulas em cursos de pós-graduação e extensão. Integra a Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente. É autor dos livros Visão Jurídica da Água e Gestão da Água e Princípios Ambientais.
Revista Consultor Jurídico, 31 de dezembro de 2016, 8h00
http://www.conjur.com.br/2016-dez-31/ambiente-juridico-agrotoxicos-chegaram-leite-materno-podemos

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