domingo, 19 de março de 2017

Paternidade afetiva X socioafetiva – em ambas, uma questão de escolha


Estima-se que 28% das crianças do mundo vivem sem seu pai biológico, das quais quase 25 milhões estão na América. Embora mães, avós, tios e outros parentes exerçam o poder familiar em condições de promover bem-estar físico e emocional, o fato é que toda criança merece um amor incondicional, e é na família bem estruturada que este sentimento se realiza em sua formatação mais intensa e sólida, permitindo a consolidação de vínculos e relacionamentos futuros.

É deveras importante que cada membro da unidade familiar cumpra seu papel de modo a permitir o desenvolvimento emocional saudável da criança, havendo alguns prejuízos por ausência ou debilidade da figura dos principais cuidadores (genitores), como veremos a seguir, em relação à imprescindível participação do pai e da construção de vínculo afetivo deste para com a prole.

Com a evolução da sociedade, a família deixou de ser uma unidade econômica para ter uma dimensão afetiva. O grupo familiar mantém-se unido em razão dos vínculos de afeto entre os seus sujeitos, auxiliando, assim, na composição do indivíduo íntima e afetivamente.

A família passa a ser um instrumento de realização pessoal do ser humano, para promoção da felicidade das pessoas nela envolvidas. Não há outro fim para sua existência e especial proteção do Estado, tanto que é reconhecida pela nossa Constituição Federal como a base da sociedade.

Em minha trajetória profissional e de vida sempre acreditei que é na família, ou em decorrência de sua falta, que se originam muitos dos problemas sociais, como a marginalidade, a corrupção, a violência e tantos outros comportamentos inaceitáveis em termos de coletividade. É em casa, e é desde cedo, que se constrói uma sociedade verdadeiramente livre, justa e solidária. Para alcançar esse objetivo da República Federativa do Brasil precisamos atingir o âmago das problemáticas nacionais, e ouso concluir que a transmissão de valores e princípios basilares é pautada na existência de afeto familiar. Afinal, nada ensina ou prepara com tanto poder como o amor.

Em verdade, no núcleo familiar, é o afeto que serve de justificativa tanto para a conjugalidade, quanto para a parentalidade. Sob esta ótica, o afeto parental decorre de uma origem comum, enquanto que o afeto conjugal visa a um destino comum. O objeto deste estudo é o primeiro, e, para sua integralidade, é saudável que esteja atrelado ao segundo tipo de afeto, porque ambos integram a unidade familiar.

Nesse sentido, para Sérgio Resende de Barros (Afeto, ética, família e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Frey, 2004, p. 113), o afeto familiar é aquele que “enlaça e comunica as pessoas, mesmo quando estejam distantes no tempo e no espaço, por uma solidariedade íntima e fundamental em suas vidas – de vivência, convivência e sobrevivência – quanto aos fins e meios de existência, subsistência e persistência de cada um e do todo que formam”.

A análise de comportamentos por teorias psicológicas revela que pessoas que cresceram em um ambiente estável e constituído por afeto possuem melhor desenvolvimento das habilidades cognitivas e destacada desenvoltura em meio social. Ou seja, é possível atingir o ápice na aplicação de dons e talentos a partir de uma segurança emocional construída na unidade familiar.

Em contrapartida, ambientes de conflitos, ausência da figura paterna ou materna, ou em que as necessidades psicológicas e emocionais das crianças são ignoradas, normalmente induzem o indivíduo a criar janelas de memória que tornam prejudiciais o desenvolvimento de suas potencialidades, assim como obstaculiza a entrega para relacionamentos em suas mais diversas facetas, como amizade, casamento e dentro da equipe de trabalho. Pessoas que não foram cercadas de amor ou que não se sentiram protegidas e cuidadas apresentam dificuldades de assumir a sua formação particular na vida adulta, mascarando sentimentos e emoções com hipóteses traumáticas.

É sabido que a mãe exerce um papel fundamental enquanto principal cuidadora nos primeiros anos de vida, suprindo todas as necessidades físicas dos filhos, e que tem uma inclinação natural para desempenhar esse papel com manifestações carinhosas e afetuosas, como acomodar a criança em seu peito para acalmá-la ou para carregá-la numa posição horizontal e próxima ao coração, assim permitindo o reconhecimento do som familiar das batidas do seu coração, que remontam às mais primitivas lembranças do indivíduo durante a gestação, enquanto acolhido e seguro se sentia.

Todavia, tão essencial quanto o exercício da maternidade é a presença efetiva e participativa do pai durante todo o desenvolvimento da prole. É o genitor, ou quem faz o seu papel, que auxilia no despertar da criatividade, do interesse por brincadeiras e por descobrimentos. Complementar e indissociável da função materna, a paternidade é que demonstra ao filho a importância da confiança e da desenvoltura enquanto pessoa.

Ao contrário do que ocorria antigamente, quando o pai era o responsável apenas pelo suprimento das necessidades materiais da unidade familiar, e a mãe concentrava a responsabilidade de educar e criar os filhos, hoje em dia cada vez mais se afirma a importância de uma paternidade comprometida e participativa.

Movimentos como o iniciado pelo jornalista Marcos Piangers, por meio do livro O PAPAI É POP, revelam que mais do que nunca os homens sentem a necessidade, por si e pelos filhos, de assumir seu papel com maestria, proporcionando a oportunidade de a prole se desenvolver em plenitude em todas as áreas da sua vida, para cuja colaboração não medem a presença física e contemplativa.

Importante constância da relação paterno-filial, por meio de um desejo de ser pai e que implica em um querer ser filho, exige um relacionamento diário e afetuoso, o que transcende uma obrigação legal de reconhecimento da paternidade por si só.

Neste ponto, a paternidade socioafetiva, alvo de tantas decisões judiciais recentes, pode ser reconhecida a partir da existência de um vínculo afetivo não decorrente da fonte geratriz, e que se desenvolve a partir da convivência, da formação de sólidos vínculos emocionais, que afastam a exigibilidade da coidentidade genética para reconhecimento do estado de filho. Trata-se, pois, de uma escolha pautada no amor, na generosidade e na empatia pela vida de um ser de cuja gestação não participou, mas que escolheu amparar, cuidar e proteger como se fosse descendente biológico.

Logo, paternidade socioafetiva é aquela entre pessoas geneticamente estranhas e que estabeleceram vínculos como aqueles que naturalmente existem [ou deveriam existir] entre pais e filhos biológicos. E, desse modo, não há como se negar o estado de filiação em tais casos. Porém, tão importante quanto o reconhecimento judicial de uma paternidade que não está pautada na origem biológica do filho ao qual se quer atribuir tal estado, é o incentivo para que os homens que concederam a carga genética aos seus descendentes também exerçam seu papel com fundamento na afetividade, e não apenas numa obrigação legalmente imposta. Enquanto os socioafetivos escolhem ser pais, os biológicos simplesmente o são em decorrência de uma consequência natural, e precisam optar pelo seu exercício pautado no afeto.

Por consequência, essa postura de o pai assumir o papel de cuidador e não mero coadjuvante e provedor das necessidades do filho implica na criança o reconhecimento da função complementar e única que cada um exerce dentro do núcleo familiar, permitindo, assim, que ele tenha segurança para ser quem é, não apenas fruto do relacionamento dos genitores, mas também merecedor da atenção e do afeto de ambos. Isso porque a família é a entidade estruturante dos sujeitos que a formam, e não o oposto. Os pais não são apenas responsáveis pela educação e proteção dos filhos, mas, sim, pelo seu desenvolvimento emocional, físico, psicológico e espiritual, o que exige dedicação espontânea, e, como já ressaltado antes, não mero cumprimento de lei que impõe a paternidade jurídica.

A ausência ou a precária participação do genitor na criação dos filhos resulta em prejuízos que não podem ser supridos pela máxima eficiência da mãe ou de outros familiares em seus respectivos papéis.

Apesar de inseridos no reino animal, diferenciamo-nos de outras espécies que nascem e em poucos instantes já ganham autonomia de viver e pouco dependem de sua fonte geratriz. Somos frutos do amor e dele dependemos para nos desenvolvermos, tanto que nossa psique e estado emocional devem ser estimulados e moldados pelos cuidadores, que não se limitam ao suprimento das necessidades físicas.

Se assim não for, algumas características importantes do indivíduo não serão despertadas e isto causará prejuízos que se estenderão durante toda a sua vida adulta. A ausência da figura paterna, assim como da materna, provocam perdas irreparáveis para o êxito da plenitude do ser em desenvolvimento. Por consequência, na parte mais recôndita da sua existência e de sua alma, esta criança põe em ação potencialidades não estruturadas que serão incapazes de auxiliar na superação da perda, quiçá elaborá-la e aproveitá-la como uma experiência de vida interior.

Por esta motivação, cuja fundamentação teórica psicológica não se encerra nessa exposição, é preciso estar bem definido que, independentemente da existência de conjugalidade entre os genitores, é preciso haver a resolução de conflito emocional eventualmente existente entre essas duas pessoas adultas, que serão responsáveis pelo desenvolvimento de outro ser totalmente dependente delas. Só assim, em um estado de tranquilidade e parceria, ambos conseguirão colaborar efetivamente para o exercício da paternidade e da maternidade, por si e pelo outro, em razão do bem da prole.

Se eventuais crises entre os dois adultos interferirem na assunção de responsabilidades inerentes à maternidade, e especialmente à paternidade, todo o núcleo familiar será afetado. Quase sempre a crise conjugal se dimensiona como uma crise familiar, atingindo todos os membros, e principalmente os filhos menores, que não possuem a maturidade necessária para distinguir que o conflito extrapola a função dos pais, limitando-se ao relacionamento entre homem e mulher. Com isto, a prole, que deveria ser protegida dessa situação de conflito, passa a sentir a necessidade de se posicionar de um lado, sobretudo quando aplicada a guarda unilateral ou quando não existir coabitação dos pais.

O fato é que, independentemente do motivo que induz no homem o enfraquecimento do seu papel como genitor, é responsabilidade do Estado e da sociedade fortalecer a sua atuação, para que cada vez mais sejamos formados por pessoas emocionalmente estáveis e saudáveis, que conseguirão replicar beneficamente a importância da unidade familiar e da fiel execução dos papéis de cada membro que a compõe.

Concluo reafirmando que o pai não é mero ajudador, auxiliador da mulher e mãe, ele é fundamental para que o filho tenha plenitude de vida, e esta expectativa, que talvez não se inicie na gestação, certamente é consolidada com a troca de olhar no primeiro colo da criança, e deve perdurar durante toda a sua fase adulta. Só assim esses 28% de crianças do mundo que atualmente vivem sem um pai presente poderão encerrar esse ciclo vicioso e desempenhar a função de cuidadores com excelência e estabelecer profundos laços de afetividade e amor.

AUGUSTO, Naiara Czarnobai. Paternidade afetiva X paternidade socioafetivaRevista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22,n. 49999 mar. 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/56227>. Acesso em: 19 mar. 2017.

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