segunda-feira, 10 de abril de 2017

Thomas Hobbes e as discussões sobre o papel dos juízes e do ativismo judicial

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Leviatã é referência a lugar-comum na Teoria Geral do Estado. O Leviatã (1651) que dá o título à obra de Thomas Hobbes[1] é identificado recorrentemente com o Estado em sua dimensão mais onipotente. Trata-se de um monstro bíblico, mencionado no Antigo Testamento, no Livro de Jó. O Leviatã tem muita força, “os seus ossos são fortes como canos de bronze, e as suas pernas são como barras de ferro”[2]. Ninguém é capaz de cegá-lo ou de agarrá-lo ou de prender o seu focinho numa armadilha[3]. O recurso à metáfora é meramente simbólico, mas eficiente. O Leviatã, em seu sentido secular e contemporâneo, não é nada coerente e muito menos competente, é uma ameaça permanente para o Estado Democrático de Direito[4]. O Leviatã simboliza o absolutismo governamental.
Trata-se de um livro frequentemente citado, talvez não tão lido assim. O livro de Hobbes, que para muitos é um saltério, é um clássico, e clássicos raramente são lidos; com mais frequência são relidos... Redigido por quem se via espremido entre aqueles que se batiam por excessiva liberdade ou por expressiva autoridade, o Leviatã evidenciava a dificuldade em se “passar sem ferimentos por entre as lanças de cada um”[5]. Quanto ao ser fantástico, persiste a advertência bíblica: “Só de olhar para o monstro Leviatã as pessoas perdem a coragem e desmaiam de medo (...) se alguém o provoca, ele fica furioso. Quem se arriscaria a desafiá-lo? Quem pode enfrentá-lo sem sair ferido?”[6]. Assustador.
Dividido em quatro partes (Do Homem, Da República, da República Cristã e Do Reino das Trevas), o famoso livro de Hobbes é um desafio para nossos tempos; exige paciência e obsessão para o enfrentamento de temas tão aparentemente desconexos como “das trevas resultantes da vã filosofia e da tradições fabulosas”[7] ou “do número, antiguidade, alcance, autoridade e intérpretes dos livros das Sagradas Escrituras”[8]. No entanto, a leitura, para quem tem resignação, é gratificante, sobremodo pelo painel dos problemas humanos alavancados: a política e a religião estão no centro desse cartapácio.
O recurso às comparações retóricas é instigante. Para Hobbes, Leviatã equivalia à República, ou o Estado (a Civitas dos romanos), “que não é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja proteção e defesa foi projetado”[9]. A soberania substancializaria alma artificial que confere vida e movimento ao corpo inteiro[10]. O corpo político, reflexo do corpo humano, se completaria com os magistrados e outros funcionários judiciais ou executivos, que atuariam como juntas artificiais; os nervos significariam recompensas e castigos[11]. Resumidamente, o Estado resultaria da soberania (sua alma), das juntas (magistrados e funcionários), dos nervos (recompensas e castigos), da força (riqueza e prosperidade), todos sob o objetivo de realizar uma tarefa importante (a segurança).
As passagens nas quais Hobbes trata das juntas (isto é, dos magistrados) sugerem algumas reflexões, que podem propiciar algum insumo para discussões contemporâneas relativas ao papel dos juízes e do ativismo judicial em uma democracia. O problema parece-me até geracional. Quando frequentei a faculdade (década de 1980), meus professores (entre eles Alfredo Faoro, um legítimo scholar, como seu irmão, Raymundo Faoro) insistiam que juízes não poderiam ser autônomos intérpretes da lei (de acordo coma imagem de Montesquieu). Passados 30 anos (pouco mais de uma geração), essa lógica parece ser invertida: há apelos para contenção e deferência para com a lei posta[12].
Hobbes condenava o árbitro que julgava em causa própria; isto é, “como a equidade atribui a cada parte um benefício igual, à falta de árbitro adequado, se um for aceito como juiz o outro também o deve ser; dessa maneira a controvérsia (...) a causa da guerra, permanece contrário à lei da natureza”[13]; de tal modo, continuava Hobbes, “em nenhuma causa alguém pode ser aceito como árbitro, se aparentemente para ele resultar mais proveito, honra ou prazer com a vitória de uma das partes do que com a da outra”[14]. É o mantra da neutralidade.
O filósofo inglês insistia na contenção dos magistrado e na deferência para com a lei posta. Afirmava que “o juiz subordinado deve levar em conta a razão que levou o soberano a fazer determinada lei, para que sua sentença seja conforme a esta, e nesse caso a sentença é do soberano, caso contrário é dele mesmo, e é injusta”[15]. Se concedermos que “soberano” poderia metaforicamente significar a “vontade popular”, fecha-se o quadro propositivo da contenção e da deferência. Hobbes era um positivista:
“As aptidões necessárias a um bom intérprete da lei, que dizer, a um bom juiz, não são as mesmas de um advogado, a saber, o estudo das leis. Porque um juiz, assim como deve tomar conhecimento dos fatos exclusivamente pelas testemunhas, também não deve tomar conhecimento da lei por intermédio de nada que não sejam as promulgações e constituições do soberano, alegados no pleito (...) e não precisa se preocupar antecipadamente com o que vai julgar, porque o que vai dizer relativamente aos fatos ser-lhe-á dado pelas testemunhas, e o que deverá dizer em matéria de lei ser-lhe-á dado por aqueles que nas suas alegações se mostrarem, o que por autoridade interpretará no próprio local”[16].
Para o filósofo inglês, “a sabedoria não se adquire pela leitura dos livros, mas dos homens”[17]; o problema, e a advertência é de Hobbes, é que “aquele que vai governar uma nação inteira deve ler, em si mesmo, não este ou aquele indivíduo em particular, mas o gênero humano”[18]. Essa leitura, do gênero humano, parece-me, impossível, desconcertante e ardilosa, sugerindo uma nova política, que brota dos conflitos pelos quais passamos. Voltamos, para o bem ou para o mal, para os tempos de Hobbes, porque constatamos que o verdadeiro e o falso são atributos da linguagem, e não das coisas[19]. Manda quem tem o poder de afirmar sua verdade.
Os tempos de Hobbes eram muito diferentes dos nossos. Os desafios do Estado e as expectativas das pessoas divergiam das nossas. O que era então uma disfunção da política, pode ser hoje uma alternativa para a sobrevivência da própria política. O que intriga, no entanto, não é a política, nem mesmo o papel da magistratura. O que intriga é a perenidade e a recorrência dos enigmas humanos; afinal, como Hobbes, permanecemos como pessoas que amamos as próprias opiniões e que acreditamos em tudo o que dizemos[20]. Acrescentaria tão somente que nunca sabemos quando temos razão: é porque talvez nunca a temos.


[1] Entre as várias versões, sugiro Hobbes, Thomas, Leviatã, São Paulo: Martins Fontes, 2003. Tradução de João Paulo Monteiro e de Maria Beatriz Nizza da Silva.
[2] Jó, 40:18.
[3] Jó, 40: 24.
[4] O uso da imagem de Leviatã é recorrente. Exemplifico, entre outros, com a obra de Antonio Manuel Hespanha, As vésperas do Leviathan- Instituições e Poder Pólitico- Portugal- séc. XVII, Coimbra: Almedina, 1994.
[5] Hobbes, Thomas, Leviatã, cit., p. 5.
[6] Jó, 41: 9-10.
[7] Hobbes, Thomas, Leviatã, cit. parte IV, capítulo XLVI.
[8] Hobbes, Thomas, Leviatã, cit. parte II, capítulo XXXIII.
[9] Hobbes, Thomas, Leviatã, cit., p. 11.
[10] Cf. Hobbes, Thomas, Leviatã, cit., loc. cit.
[11] Cf. Hobbes, Thomas, Leviatã, cit., loc. cit.
[12] Exemplificativa da premissa é a obra de Jeremy Waldron. Conferir, desse autor, Law and Desagreement, Oxford: Oxford University Press, 2008.
[13] Cf. Hobbes, Thomas, Leviatã, cit., p. 134.
[14] Cf. Hobbes, Thomas, Leviatã, cit., p. 135.
[15] Cf. Hobbes, Thomas, Leviatã, cit., p. 230.
[16] Cf. Hobbes, Thomas, Leviatã, cit., pp. 239-240.
[17] Cf. Hobbes, Thomas, Leviatã, cit., p. 12.
[18] Cf. Hobbes, Thomas, Leviatã, cit., p. 13.
[19] Cf. Hobbes, Thomas, Leviatã, cit., p. 34.
[20] Cf. Hobbes, Thomas, Leviatã, cit., p. 6. 
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).
Revista Consultor Jurídico, 9 de abril de 2017, 8h05
http://www.conjur.com.br/2017-abr-09/embargos-culturais-thomas-hobbes-papel-juizes-ativismo-judicial

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