segunda-feira, 3 de abril de 2017

Thomas Jefferson temia o controle de constitucionalidade e o despotismo judicial

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Thomas Jefferson (1743-1826), o Leonardo da Vinci norte-americano, temia o controle de constitucionalidade pelo Judiciário e o despotismo judicial que poderia advir dessa prerrogativa institucional. Enfatizou que o poder dado aos juízes, para que decidissem pela constitucionalidade das leis, resultaria na opressão e na autocracia[1], que uma democracia certamente não aceitaria. Jefferson contrariou a lógica do Artigo Federalista número 78, atribuído a Alexander Hamilton (1757-1804), que assinou o texto com o pseudônimo de Publius.
Hamilton apontou o Poder Judiciário como o mais fraco dos Poderes; isto é, a magistratura, erroneamente previa Hamilton, não detinha força ou vontade, espada ou cofre... É que, insistia Hamilton, o Judiciário dependeria da boa vontade do Executivo, inclusive para o cumprimento das decisões da magistratura. É esse o núcleo da discussão em torno do ativismo judicial nos Estados Unidos, de algum modo projetada no Brasil, e que Jefferson tanto temia, e que hoje retoma o proscênio norte-americano, no contexto das ordens executivas de Donald Trump.
Pode-se argumentar que a precaução de Jefferson em relação ao Judiciário decorria do desdobramento do caso Marbury v. Madison, de 1803, que deu início a modelo de controle de constitucionalidade das leis, substancializando percepção que nos dá conta de que nulas são as normas que afrontam os textos constitucionais; isto é a law repugnant to the Constitution is void, nos dizeres do chief justice John Marshall em 1803. A decisão não enfrentou diretamente a Jefferson, mas se pode intuir que de algum modo o desagradou.          
O caso Marbury v. Madison foi provavelmente a maior contribuição norte-americana ao Direito Constitucional. Declarou o princípio da supremacia do Poder Judiciário. Indicou o judicial review ou controle pelo Judiciário da constitucionalidade das leis. O mentor de tal concepção foi o juiz Marshall, que o fez, no entanto, no quadro de problemático jogo político, no qual leituras ingênuas, puras e analíticas do Direito não tinham o menor espaço.
A decisão foi política. Marshall contornou confronto direto com o presidente norte-americano, Thomas Jefferson. Não deixou, porém, de criticá-lo, mascarando recuo inevitável, como ato de afirmação contra o partido no poder. A historiografia jurídica tradicional apega-se nesta última concepção, esquecendo-se daquela primeira, realista e pragmática. O que houve realmente?
Em 1801, nos últimos dias do governo de John Adams, William Marbury foi legalmente nomeado juiz de paz no distrito de Columbia, por parte do presidente que partia. O sucessor, presidente Thomas Jefferson, implementou o spoil system, isto é, o clássico modelo norte-americano de acesso a cargos públicos de feição política, por meio do qual o partido vencedor apropria-se dos melhores e mais importantes postos. Jefferson ordenou que seu secretário de governo, James Madison, não empossasse Marbury. O preterido requereu madamus contra Madison, diretamente na Suprema Corte norte-americana. O requerido não se defendeu e nem mesmo respondeu à ordem judicial para se manifestar. Jefferson ameaçou a corte com impeachment, caso o pedido de Marbury fosse deferido.
Marshall astutamente inverteu o exame da ordem das questões. Declarou que Madison agiu ilegalmente ao não dar posse a Marbury, cuja nomeação para o cargo de juiz havia sido perfeita e legítima. Porém, a Suprema Corte não tinha competência para reconduzi-lo ao cargo porque o pedido lhe foi diretamente feito, com base no artigo 13 de uma lei judiciária de 1769. Segundo Marshall, competência era matéria estritamente definida na Constituição e não poderia ter sido dilatada por lei judiciária. Era, assim, inconstitucional e nulo o artigo 13 dessa lei, que atribuía à Corte Suprema competência originária para expedir madamus, nos termos da pretensão de William Marbury.
Marshall censurou Jefferson, criticou Madison, deu razão a Marbury, porém se recusou a determinar a posse deste último com base na inconstitucionalidade da Lei Judiciária de 1769. Inaugurou o controle de constitucionalidade de leis por parte do Poder Judiciário, passou à história como criador de tal mecanismo e manteve-se à frente da Suprema Corte, contornando as ameaças do Poder Executivo.
Esse desfecho, em princípio, pode qualificar e explicar a percepção negativa de Thomas Jefferson para com o controle de constitucionalidade por parte do Judiciário. Os arranjos institucionais norte-americanos se firmavam, o experimentalismo democrático se desdobrava, e, certamente, do ponto de vista da política e da constituição, tudo estava para ser feito. Presentemente, as decisões judiciais contrárias a algumas ordens executivas de Donald Trump retomam essa discussão, relativa aos limites do Judiciário e dos demais Poderes também, comprovando que o Direito Constitucional é um construído cultural que deve instrumentalizar respostas rápidas para os problemas e dilemas da política.


[1] Cf. JEFFERSON, Thomas, The Essential of Thomas Jefferson, Ed. por John Dewey, Mineola: Dover, 2008, p. 133. 
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).
Revista Consultor Jurídico, 2 de abril de 2017, 8h00

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