terça-feira, 30 de maio de 2017

Antimanual para compreender Estado de Natureza Hermenêutico

Por Alexandre Morais da Rosa

Prometi na coluna No Direito, aprender a pensar e argumentar é algo que depende de você sugerir trajeto capaz de apontar novas bases para compreensão do Direito. O uso retórico da vontade da norma e/ou vontade do legislador é artifício cada vez mais utilizado no ambiente forense, embora não tenha fundamento.
Isso porque a tensão entre o texto e o sentido resultante da norma esteve banhada pela cisão entre sujeito e objeto. De um lado o sujeito universal, capaz de obter a mesma resposta via o método adequado, por outro, um objeto provido de essência. O observador poderia, assim, pelo método, reconfortar-se com a verdade. A estrutura era metafísica e herdada da Escolástica.
A superação do esquema sujeito-objeto procura aterrar esta distinção para os colocar num campo único: a linguagem. A extração da essência do texto desliza para o registro do Imaginário, contracenando com uma certa ausência de mediação Simbólica decorrente da (de)formação filosófica dos atores jurídicos. É impossível a existência de um método universal. Por isso manipula-se (este é o termo) o método conforme as necessidades prévias do sentido, a saber, os métodos servem de argumento manifesto do processo de compreensão latente, existente desde sempre, e rejeitado por uma tradição inautêntica do direito.
Para alcançar alguma sofisticação no campo jurídico, como apontaram Lenio Streck e Ernildo Stein, as contribuições de Heidegger e Gadamer são fundamentais. Ao trazer a compreensão vinculada ao ser-aí, a partir das noções de círculo hermenêutico e diferença ontológica, Streck proporciona uma nova maneira de embate hermenêutico: “Para interpretar, necessitamos compreender; para compreender, temos que ter a pré-compreensão, constituída de estrutura prévia do sentido — que se funda essencialmente em uma posição prévia, visão prévia e concepção prévia — que já une todas as partes do ‘sistema’.”[1] Essa possibilidade contracena com a necessidade de enunciação, ausente na massa jogada na inautenticidade e fomentada por uma nova compreensão de sujeito, à deriva das amarras simbólicas, crente de uma autonomia imaginária que lhe autoconcederia a possibilidade de dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa.
Neste passo, Lenio Streck é enfático ao dizer que a tradição jurídica como tarefa prática não pode significar a relegitimação do “decisionismo” ou da “discricionariedade”, subprodutos da concepção (neo)positivista hegemônica, todavia, no campo da hermenêutica jurídica. Para se romper com este modelo é preciso superar a Filosofia da Consciência e suas cisões metafísicas.
Com Gadamer pode-se dizer que não há momentos hermenêuticos, dado que todos se vinculam ao momento da applicatio, a saber, o sentido. Embora se possa falar de textos jurídicos aplicados a um caso, não se trata (nem pode se tratar) de relativismos absolutos entre casos similares. Dito de outra forma, não é porque são casos diferentes que sempre se pode aplicar resultados diversos. Há uma tradição que deve sustentar esta resposta que se aparta, de qualquer modo, da mera subsunção do pensamento estritamente lógico. Isso porque a lógica articula-se no plano matemático, desprovido de referência à faticidade; com a faticidade e o sujeito, num eterno e renovado círculo hermenêutico, não se pode falar de verdades universais. O sentido é atravessado por um processo de compreensão que convoca diversos sujeitos e significantes, para que ocorra uma fusão de horizontes. Neste momento de fusão de horizontes, contudo, incidem (ou deveriam incidir) constrangimentos de ordem sintática, semântica, pragmática e fundamentalmente da tradição, no que já se denominou de “bricolagem jurídica”[2].
O primeiro destes constrangimentos (sintático) decorre da impossibilidade de se construir proposições (enunciados com sentido) — se e somente se — articulados na forma de uma estrutura linguística. No caso do limite semântico, ainda que se possa articular com os contextos, portanto, com a dimensão pragmática, há um limite[3] de sentido compartilhado que não se pode transcender[4]. Esse limite, cujos referenciais atualmente anda se perdendo, somente pode ser amarrado pela costura de um sujeito enunciador de sua inserção numa tradição democrática.
Caso se tenham sujeitos incapazes de promover enunciação, deságua-se na reiteração de verbetes jurisprudenciais, conceitos pré-dados, cujo trabalho passa a ser de explorador e conceitos, e não hermenêutico, reificando um verdadeiro, diz Streck, “estado de natureza hermenêutico”. O constrangimento decorrente da tradição deveria impor uma Referência, um limite democrático, aos sentidos que podem surgir e deslizar para diversas direções, mas que devem guardar uma pertinência com a Constituição da República tida como projeto emancipador.
A tradição autêntica[5] é o critério do sistema hermenêutico, ocupado necessariamente diante do movimento Neoconstitucional pela compreensão dirigente e compromissória das Constituições (Canotilho). A Constituição é o maior constrangimento[6] de um processo hermenêutico. Por isso que a noção de Constituição, como significante inicial da cadeia de sentido precisa ser invocada. Streck sustenta: “Apesar da revolução copernicana produzida pela viravolta linguístico-hermenêutica, é possível detectar nitidamente a sua não recepção pela hermenêutica jurídica praticada nas escolas de direito e nos tribunais, onde ainda predomina o método, mesmo que geneticamente modificado pelas teorias discursivas. Tantos métodos e procedimentos interpretativos postos à ‘disposição’ dos juristas faz com que ocorra a objetificação da interpretação, porque possibilitam ao intérprete sentir-se desonerado de maiores responsabilidades na atribuição de sentido, colocando no fetichismo da lei e no legislador a responsabildiade das anomalias do direito.”[7]
A compreensão como modo de ser convoca o campo da hermenêutica jurídica para uma nova e complexa tarefa. De um lado opera-se uma crítica de como o direito se apresenta, desvelando seus condicionantes, por outro, convoca-se uma responsabilidade processual e de enunciação. Talvez o maior espanto dos atores jurídicos quando confrontados com a Hermenêutica Filosófica decorre da necessidade da assunção de um lugar de enunciação, isto é, deixar de se situar na condição de consumidores de sentido prêt-à-porter.
Desonerados desta condição de consumidores, passam muito rapidamente, a produtores de sentido. Este acontecimento, todavia, dada a (de)formação filosófica e democrática, derrapa em totalitarismos (decisionismos) de sentido, não raro ocupado por gente que (acha que) sabe o melhor, domina o “Justo” e o “Bom”[8]. No lugar de emissores do discurso, à deriva das amarras de uma tradição, passam a dizer o que lhes bem convier! Por isto o desvelamento do lugar de enunciador precisa de uma mediação Simbólica que sirva de limite (de conteúdo variado, claro), ao que se pode (e como se pode) enunciar. O desafio se renova, como reitera Lenio Streck.

[1] STRECK, Lenio Luiz. Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do esquema sujeito-objeto..., p. 31-32.
[2] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Decisão Penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
[3] STRECK, Lenio Luiz. Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do esquema sujeito-objeto..., p. 42: “Toda a interpretação começa com um texto, até porque, como diz Gadamer, se queres dizer algo sobre um texto, deixe primeiro que o texto te diga algo. O sentido exsurgirá de acordo com as possibilidades (horizonte de sentido) do intérprete em dizê-lo, d’onde pré-juízos falsos acarretarão graves prejuízos hermenêuticos.”
[4] STRECK, Lenio Luiz. Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do esquema sujeito-objeto..., p. 43: “Quando se popularizou a assertiva de que texto não é igual a norma e que a norma é o produto da interpretação do texto, nem de longe quer dizer que o texto não vale nada ou que norma e texto sejam ‘coisas à disposição do intérprete’, ou, ainda, que depende do intérprete a ‘fixação da norma’”
[5] STRECK, Lenio Luiz. Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do esquema sujeito-objeto..., p. 40: “A tradição autêntica (sentido da Constituição compreendido como o resgate das promessas da modernidade) e reconstruindo, a partir dessas ‘premissas’, em cada caso, a integridade e a coerência interpretativa do direito.”
[6] AROSO LINHARES, José Manuel. Entre a reescrita pós-moderna da modernidade e o tratamento narrativo da diferença ou a prova como um exercício de «passagem» nos limites da juridicidade: imagens e reflexos pré-metodológicos deste percurso. Coimbra: Coimbra Editora, 2001.
[7] STRECK, Lenio Luiz. Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do esquema sujeito-objeto..., p. 35.
[8] Isto decorre da compreensão (equivocada) de que o texto legal guarda consigo todas as possibilidades de sentido, as quais podem ser extraídas, via método adequado, pelos intérpretes autorizados, reeditando a estrutura cristã da interpretação dos textos sagrados. Somente os escolhidos – antes pela Igreja em nome de Deus, e hoje pelos Juízes – teriam as chaves de acesso à porta da Verdade que se esconde nos textos.
Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).
Revista Consultor Jurídico, 8 de outubro de 2016, 8h00
http://www.conjur.com.br/2016-out-08/diario-classe-antimanual-compreender-estado-natureza-hermeneutico

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