terça-feira, 2 de maio de 2017

Inconstitucionalidade da atual guarda compartilhada (parte 2)

Por Eduardo Tomasevicius Filho

Na semana passada, apresentei um quadro geral da relação entre os conceitos de poder familiar e guarda, destacando que esta era unilateral por causa dos preconceitos existentes na legislação em boa parte do século XX e que, com substituição do pátrio poder pelo poder familiar pela promulgação do Código Civil de 2002, a guarda tornou-se compartilhada. O legislador, a partir de 2008, inseriu regras sobre esse instituto jurídico para a hipótese de pais que não vivem sob o mesmo teto com seus filhos.

Continuando com a análise, observa-se que, na dinâmica familiar, são possíveis diversas situações em que os pais estarão no exercício da guarda dos filhos. A primeira é aquela em que eles são casados ou vivem em união estável e ambos se fazem presentes na vida deles, por participarem ativamente de cada um de seus passos. No caso, eles exercerão simultaneamente o poder familiar e, consequentemente, estarão no exercício da guarda de forma compartilhada.

A segunda situação é aquela em que qualquer dos pais — ou ambos —, casados ou em união estável, tem pouca participação na vida dos filhos por força maior, ou por ter dificuldades de lidar com seus próprios sentimentos. Não é incomum pais e filhos morarem na mesma casa e serem parcial ou totalmente ausentes em termos de convívio familiar. Ainda que o genitor ausente tenha o poder familiar, a guarda, todavia, estará sendo exercida de forma unilateral, uma vez que guarda é exercício de fato do poder familiar.

A terceira situação é aquela em que os filhos permanecem com os avós, tios, irmãos ou vizinhos, enquanto os pais permanecem afastados da criança, por exemplo, ao trabalharem em longas jornadas, saindo antes que a criança acorde e voltando para casa quando já está dormindo; essa pessoa cuidadora não tem poder familiar, mas estará exercendo a guarda dos menores.

Porém, quando ocorre o divórcio do casal ou a dissolução da união estável, essas questões relativas à guarda transformam-se numa enorme tragédia. O melhor interesse da criança parece ser subitamente elevado à sua mais alta intensidade. Quem não tinha contato com a criança ou adolescente enquanto morava no mesmo lar passa a querê-los consigo o maior tempo possível, quando deveria tê-lo feito anteriormente. A rotina destas sofre profundas alterações, muitas delas inconvenientes, passando-se a criar problemas onde estes não existiam.

Sendo desnecessária a aferição de culpa em relacionamentos contínuos, a ruptura do relacionamento entre os pais, enquanto cônjuges ou companheiros, em nada afeta o poder familiar dos dois genitores. Cada um deles, no exercício da sua função, pode e deve continuar a participar da vida dos filhos por meio do exercício desse poder. Logo, a guarda, enquanto proteção da pessoa dos filhos, foi, é e continuará sendo compartilhada entre ambos.

Já em termos de convivência familiar, se os pais nunca viveram juntos ou resolveram divorciar-se ou dissolveram a união estável, essa guarda será alternada por uma questão de lógica. Mesmo que os pais separados tenham um perfeito relacionamento como amigos, sem mágoas nem ressentimentos, a guarda será, na prática, alternada, pois cada genitor estará por determinado intervalo de tempo com os filhos.

Do modo como a guarda compartilhada está estruturada e tem sido aplicada, essa situação é cruel com muitas crianças e adolescentes, ao impor-lhes uma rotina estressante de convívio compulsório com os dois genitores. Os menores devem passar obrigatoriamente os finais de semana com um deles, tornando-se uma “criança-mochileira” ou “criança-turista”. Ademais, perdem a opção de escolher com quem terão de passar o Natal ou o Ano Novo porque é necessário conviver com um dos genitores numa dessas festas e com o outro na festa da semana seguinte. Se um adulto, obrigado a viajar toda semana, desgasta-se pela falta da rotina de um lar, que dirá uma criança ou adolescente, que fica de um lado para outro, entre uma casa e outra, tudo supostamente em seu melhor interesse. Na prática, torna-se um rodízio de convivência que se assemelha à guarda alternada, conforme já apontado pela doutrina.[1]

Seria mais apropriado, em qualquer processo judicial em matéria de direito de família, especialmente aqueles de divórcio ou dissolução de união estável, que os genitores fossem admoestados que ambos permanecem com o poder familiar, devendo exercê-lo conjuntamente no melhor interesse da criança, o que implica dizer que, enquanto proteção da pessoa dos filhos, a guarda deles é compartilhada.

No mesmo sentido, dever-se-ia consagrar de vez o uso da expressão “fixação das regras de convivência” entre genitores e filhos, em vez de usar o termo “guarda compartilhada” e fazer tábula rasa desses modelos pré-concebidos de divisão equilibrada de tempo, bem como a definição de quem vai ter a criança nos fins de semana. Com efeito, qualquer divisão rígida de tempo, seja equilibrada em cinquenta por cento para cada genitor, quatro dias com um e três dias com o outro, doze dias com um e outros doze com outro, já implica a adoção da guarda alternada, ainda que seja qualificada como guarda compartilhada.

Inexistem provas de que a convivência em tempo dividido de forma equilibrada é o único caminho para o livre desenvolvimento da criança ou do adolescente de forma saudável e feliz. Muitas vezes é melhor ter um contato menos frequente de qualidade, forjado na prática cotidiana, do que uma obrigatória permanência desgastante. Não há mal algum, em último caso, que a criança ou adolescente tenha domicílio na casa de um dos genitores e o outro vá se encontrar com os filhos três ou quatro vezes na semana, ou somente nos finais de semana — não se confundindo essa situação com o direito de visitas do art. 1.589 —, reproduzindo o contato anteriormente existente antes da ruptura do relacionamento entre os genitores, em vez de ter dois domicílios.

No caso em que ambos os genitores se mostram aptos ao exercício do poder familiar e a ter a guarda dos filhos, situação em que obrigatoriamente a guarda será compartilhada, por força do art. 1.583, § 2º, do Código Civil, mas estão irredutíveis por não entrarem em acordo sobre as regras de convivência entre eles, basta ao magistrado, diante desse impasse, solicitar esclarecimentos sobre a rotina anteriormente existente, mantê-la como se encontrava, e, eventualmente, fazer pequenos ajustes, com fundamento no princípio do melhor interesse da criança. Mesmo que se conte com o auxílio de equipe interdisciplinar, nos termos do art. 1.583, § 3º, do Código Civil, pode ser difícil a conciliação do comando legal de que se deverá “visar à divisão equilibrada do tempo com o pai e a mãe” em face do referido princípio, sobretudo em caso de criança recém-nascida.

É curioso notar que o legislador, preocupado com o bem-estar dos filhos, definiu que, entre crianças e adolescentes cujos pais não vivem sob o mesmo teto, “o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos”, conforme previsto no art. 1.583, § 2º, do Código Civil, mas se esqueceu de criar essa mesma obrigação para filhos de pais casados ou que vivam em união estável.

Tal como se encontra, a atual disciplina jurídica da guarda compartilhada é inconstitucional, nos termos do art. 5º, caput, da Constituição Federal, porque confere tratamento diferenciado para crianças com genitores que vivem e que não vivem sob o mesmo teto. Isso porque não há justificativa alguma para que o tempo de convivência entre genitores e filhos que não vivam sob o mesmo teto seja dividido de forma equilibrada, enquanto genitores os quais vivem sob o mesmo teto com seus filhos estejam dispensados desse convívio obrigatório, conforme apontado anteriormente ao se levantarem as diversas hipóteses de convívio familiar.

Portanto, guarda compartilhada é apenas exercício de fato do poder familiar por ambos os genitores de forma participativa. Urge conferir maior liberdade aos pais e aos operadores do direito para definir tais regras, com o intuito de preservar ao máximo a rotina dos menores. Devido ao princípio do melhor interesse da criança, o contato com cada um dos genitores pode ou deve ser mais ou menos intenso, tal como era no período em que viviam sob o mesmo teto, nem sua rotina não deveria ser drasticamente alterada pela imposição do regime de guarda compartilhada. Em suma, em se tratando de pais que não vivem sob o mesmo teto com os filhos, falar atualmente em guarda compartilhada, enquanto exercício de fato do poder familiar, é uma tautologia; enquanto convivência familiar, um paradoxo.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).

[1] Flavio Tartuce. “A lei da guarda compartilhada (ou alternada) obrigatória – Análise crítica da lei 13.058/14”. Disponível aqui (parte 1) e aqui (Parte 2).

Eduardo Tomasevicius Filho é Professor Doutor do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP.

Revista Consultor Jurídico, 1 de maio de 2017, 10h56
http://www.conjur.com.br/2017-mai-01/inconstitucionalidade-atual-guarda-compartilhada-parte

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