sexta-feira, 14 de julho de 2017

Pessoa jurídica e direitos de personalidade (parte 1)

Por Elimar Szaniawski

1. Introdução
O Código Civil de 2002, no artigo 52, consolidou no Direito brasileiro a categoria do direito geral de personalidade da pessoa jurídica, albergando doutrina vanguardista que vinha se afirmando entre nós, desde meados do século XX.

A ideia de a pessoa jurídica ser merecedora de tutela, diante da prática de atentados contra sua personalidade por terceira pessoa, natural ou jurídica, que pratique danos ao seu nome, à sua honra objetiva e à sua imagem, não é recente. Os tribunais há algum tempo vêm reconhecendo às pessoas jurídicas a possibilidade de serem vítimas de lesão por danos morais quando o atentado à sua personalidade resultar em repercussão social. A reiterada jurisprudência dos tribunais inferiores levada ao conhecimento do Superior Tribunal de Justiça resultou na prolação da Súmula 227[1], a qual expressamente declara que “a pessoa jurídica pode sofrer dano moral”.

Embora tardiamente, o legislador civil contemplou o Código Civil brasileiro com um dispositivo legal destinado a tutelar a personalidade da pessoa jurídica de modo análogo ao empregado na proteção dos direitos de personalidade da pessoa natural, respeitadas as peculiaridades da categoria, alinhando-se ao atual entendimento da jurisprudência e com o pensar da mais abalizada doutrina brasileira.

No entanto, decorridos pouco mais de quatro anos de vigência do novo Código Civil, foi publicado em 2006 o Enunciado 286, do CEJ, oriundo das conclusões da IVª Jornada de Direito Civil, o qual, surpreendentemente, em total desacordo com a legislação civil, com a jurisprudência e com a doutrina, nega a titularidade dos direitos de personalidade às pessoas jurídicas, causando, consequentemente, perplexidade à comunidade jurídica brasileira[2].

A disposição contida no Enunciado 286, do CEJ, que nega ser a pessoa jurídica possuidora de um direito geral de personalidade, colide frontalmente com o mandamento disposto no artigo 52, do Código Civil.

O tema do direito geral de personalidade da pessoa jurídica é merecedor de um amplo estudo autônomo, diante de sua complexidade. No entanto, tendo em vista o inusitado surgimento do Enunciado 286, do CEJ, cujo conteúdo vem sendo repetido por pessoas menos avisadas como sendo uma afirmação juridicamente verdadeira, entendemos ser necessário fazermos algumas considerações sobre o direito geral de personalidade da pessoa jurídica, disciplinado no artigo 52, do Código Civil.

Do confronto analítico do citado artigo 52 com o Enunciado 286, surgem duas indagações: a) consiste o conteúdo do Enunciado 286 em um equívoco por parte de seus elaboradores? b) ou seria o conteúdo do Enunciado 286 um retrocesso no Direito brasileiro?

Para uma resposta adequada às indagações, necessário será a realização de reflexões sobre a noção de pessoa jurídica e dos direitos de personalidade dessa pessoa. As reflexões partirão da análise do tema sob três enfoques.

O primeiro enfoque exige a análise da controvérsia segundo uma visão histórica da tutela da personalidade.

O segundo passo consistirá na análise da tutela da personalidade e da teoria dos direitos da personalidade a partir do ponto de vista doutrinário.

O terceiro aspecto versará no exame da tutela da personalidade e dos direitos da personalidade a partir da jurisprudência que consolidou o direito geral de personalidade no direito pátrio.

Para melhor compreensão da existência e da tutela dos direitos de personalidade da pessoa jurídica, será necessário fazer um estudo comparado com a tutela dos direitos de personalidade da pessoa natural.

Passaremos, a seguir, a analisar a proteção dos direitos de personalidade segundo a evolução histórica.

2. A tutela da personalidade segundo sua visão histórica
O ponto de partida para o estudo da tutela do direito geral de personalidade da pessoa jurídica exige a análise da proteção dos direitos de personalidade da pessoa natural pelo decurso da história, desde a antiguidade grega e romana até a modernidade, períodos em que não se conhecia a noção de dignidade da pessoa humana.

A História do Direito mostra que a tutela da personalidade humana surgiu e se desenvolveu independentemente da noção de dignidade da pessoa humana, a qual consiste em um conceito moderno elaborado por Kant nos idos de 1785[3].

A proteção da personalidade de uma pessoa era exercida na Grécia antiga mediante a hybris e as aixias, categorias jurídicas específicas para coibir a prática de atos de injúria e de sevícia[4]. A tutela dos direitos de personalidade no mundo antigo, porém, dava-se por intermédio de manifestações isoladas, não se conhecendo um sistema jurídico de tutela da personalidade.

Em Roma, a proteção da personalidade era assegurada por meio da actio iniuriarum, nos casos em que a vítima sofresse injúria[5]. Inicialmente, a actio iniuriarum se destinava para tutela contra as ofensas cometidas à vida e à integridade física do indivíduo. A jurisprudência pretoriana ampliou o âmbito da proteção jurídica da personalidade mediante a proteção da liberdade e da honra das pessoas. A Lex Cornelia, promulgada em 81 a.C, veio a proteger o domicílio contra a sua violação, e a Lex Aquilia outorgava o direito de ação destinado a tutelar a integridade física das pessoas[6].

Na Alta Idade Média, desenvolveu-se entre os francos a noção de segredo familiar e a prática da defesa da honra da mulher, principalmente das viúvas, solteiras e repudiadas. O direito ao segredo familiar permitiu o desenvolvimento da categoria do accouchement sous X, categoria conhecida na atualidade por parto anônimo[7]. Nessa mesma época, surgiu entre os povos visigóticos que habitavam o território que corresponde atualmente à Alemanha e à Áustria o direito de todo filho nascido de pai ou de mãe desconhecidos de vir a conhecer sua ascendência biológica, consolidando a noção de direito à identidade familiar. Essa categoria consistia no atual direito da pessoa ao conhecimento de sua própria origem genética e familiar[8].

Mais tarde, na passagem do século XVI ao século XVII, surgiu a necessidade da proteção da imagem da pessoa que sofria violações mediante a confecção de retratos e caricaturas que denegriam o indivíduo, surgindo as primeiras noções da existência e da tutela do ius imaginis, que se desvinculava, aos poucos, do direito à honra[9].

Constata-se, assim, que o reconhecimento jurídico das diversas manifestações ou atributos da personalidade e a proteção desses contra atentados praticados por terceiros foram sendo construídos no decorrer dos séculos, desde a antiguidade até o século XIX, por intermédio da interposição da actio iniurarium e pela aplicação do Direito Consuetudinário. Durante esse longo período da história da humanidade, embora fossem reconhecidos e protegidos diversos atributos da personalidade, esses não se vinculavam à noção de dignidade da pessoa humana pelo fato de essa categoria, ainda, não ser reconhecida como um atributo inerente à personalidade humana, segundo a concepção kantiana.

O fato de o Direito não reconhecer o postulado da dignidade da pessoa como um atributo da personalidade por quase dois milênios não impediu o prestígio dos direitos de personalidade, nem sua proteção por meio de ações específicas. A proteção dos direitos de personalidade ocorria independentemente do conceito de dignidade como atributo da personalidade.

A simples análise da evolução histórica da tutela dos direitos de personalidade demonstra que a assertiva trazida pelo Enunciado 286, do CJF, no sentido de serem os direitos de personalidade direitos inerentes e essenciais à pessoa humana, decorrentes de sua dignidade, não sendo, por essa razão, as pessoas jurídicas titulares de tais direitos, constitui-se em um grande equívoco.

3. A tutela da personalidade segundo o ponto de vista doutrinário
Pessoa jurídica é um ente artificialmente criado mediante reunião de pessoas ou de bens que, cumprindo determinados pressupostos, adquire personalidade jurídica por atribuição legal. “É um conjunto de pessoas ou de bens, dotado de personalidade jurídica.”[10]

A pessoa jurídica não encontrou os ecos da unanimidade no tocante à formulação de seu conceito e de sua natureza, devido à diversidade de aspectos que sua conceituação pode envolver. O conceito de pessoa jurídica pode ser elaborado segundo uma visão econômica, sob um ponto de vista político ou de acordo com a ótica jurídica, gerando, consequentemente, um conceito econômico, político ou jurídico de pessoa jurídica[11].

O enfoque jurídico da categoria, que diretamente nos interessa, foi igualmente objeto de muitas elocubrações, constituindo diversas teorias que procuram explicar o fenômeno da pessoa jurídica e fixar seu conceito.

***
Na coluna da próxima semana, será abordado o conceito de pessoa jurídica em Lamartine Corrêa de Oliveira como suporte teórico para a crítica ao Enunciado 286 do CJF — IV Jornada de Direito Civil.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).

[1] STJ, Súmula 227 – 8/9/1999 – DJ 20/10/1999. “Pessoa Jurídica - Dano Moral. A pessoa jurídica pode sofrer dano moral”.
[2] IVª Jornada de Direito Civil. Enunciado 286. Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. In http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IVJornada.pdf. Consultado em 12/5/2014.
Enunciado 286 do CEJ: “Art. 52. Os direitos da personalidade são direitos inerentes e essenciais à pessoa humana, decorrentes de sua dignidade, não sendo as pessoas jurídicas titulares de tais direitos”.
[3] Atribui-se a Immanuel Kant elaboração da noção de dignidade da pessoa humana. Kant, em sua obra Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, sustenta que a pessoa natural possui “um fim em si mesma”, e não um valor como meio para outros. Afirma Kant que: “No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade”.
[4] SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de Personalidade e sua Tutela. S. Paulo. RT. 2005, p. 23.
[5] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo I, S. Paulo. RT, 1977, p. 38.
[6] SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de Personalidade e sua Tutela. Op. cit., p. 31-32.
[7] SZANIAWSKI, Elimar. Considerações sobre o Direito à Intimidade das Pessoas Jurídicas, RT, v. 657, ps. 25-31. 1990, p. 43.
[8] SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de Personalidade e sua Tutela... p. 45.
[9] SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de Personalidade e sua Tutela... p. 38.
[10] AMARAL, Francisco. A parte geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 263.
[11] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo I, S. Paulo. RT, 1977, p. 283.


Elimar Szaniawski é advogado, professor titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná e doutor em Direito pela mesma instituição.

Revista Consultor Jurídico, 10 de julho de 2017, 12h51
http://www.conjur.com.br/2017-jul-10/pessoa-juridica-direitos-personalidade-parte

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