quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Nova Lei 13.431/17 dispõe sobre o depoimento sem dano

Publicado por Flávia Teixeira Ortega

A novel legislação, ao estabelecer medidas de assistência e proteção à criança e ao adolescente, nada mais faz do que seguir diretriz da Constituição Federal, que em seu artigo 227 estatui ser dever do Estado (e também da família e da sociedade) assegurar ao infante, com absoluta prioridade, direitos como a vida e a dignidade, além de colocá-lo a salvo de toda forma de violência.

Também está em consonância com o artigo 19 da Convenção sobre Direitos da Criança (promulgada pelo Decreto 99.710/90), cuja intenção é proteger integralmente a criança e o adolescente contra todas as formas de violência.

Na mesma linha, obedece ao artigo 8º do Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança referente à venda de crianças, à prostituição infantil e à pornografia infantil (promulgado pelo Decreto 5.007/04), e à Resolução 20/05 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, que traz diretrizes sobre pessoas em desenvolvimento vítimas e testemunhas de crimes.

Como se sabe, a criança (idade de até 12 anos incompletos) e o adolescente (idade entre 12 anos completos e 18 anos incompletos) merecem proteção integral pelo simples fato de serem pessoas em estágio peculiar de desenvolvimento físico, psíquico e moral (artigos e do Estatuto da Criança e do Adolescente e artigo da Lei 13.431/17).

Nesse sentido, todos os entes federativos devem desenvolver políticas integradas e coordenadas que visem garantir os direitos humanos da criança e do adolescente e resguardá-los de toda forma de violência.

São formas de violência contra as quais as crianças e os adolescentes devem ser protegidos (artigo 4º): a) física (ofensa à integridade ou saúde corporal); b) psicológica (abrangendo ameaça, agressão verbal e constrangimentos como bullying e alienação parental); c) sexual (envolvendo conjunção carnal ou outro ato libidinoso, exploração sexual e tráfico de pessoas); d) institucional (praticada por instituição pública ou privada, podendo acarretar revitimização).

Dentre os direitos e garantias da criança e do adolescente (artigo 5º), merecem destaque: a) prioridade absoluta; b) recebimento de informação adequada; c) manifestação de desejos e opiniões de maneira confidencial (sem afetar a troca de informações para fins de assistência à saúde e persecução penal), ou permanência em silêncio; d) assistência jurídica e psicossocial; e) ouvida em horário que lhe for mais adequado e conveniente, sempre que possível; f) segurança.

Em adição, a criança ou o adolescente vítima ou testemunha de violência tem direito a pleitear, por meio de seu representante legal, medidas protetivas contra o autor da violência (artigo 6º). Tais medidas consistem não apenas naquelas listadas no artigo 21 da Lei 13.431/17, mas também no artigo 101 da Lei 8.069/90 e artigos 22, 23 e 24 da Lei 11.340/06, conclusão que se extrai da exigência (artigo 6º, parágrafo único) de interpretação sistemática da Lei 13.431/17 com o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei Maria da Penha.

Importante novidade albergada pela lei foi a definição das formas peculiares de ouvida de criança ou adolescente acerca da situação de violência (artigo 4º, parágrafo 1º), quais sejam:
A) escuta especializada;
B) depoimento especial.

A intenção é evitar a chamada vitimização secundária.
Escuta especializada: é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade (artigo 7º).
Depoimento especial (ou depoimento sem dano): é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária (artigo 8º). É realizado de forma multidisciplinar (com auxílio especialmente de assistente social ou psicólogo), permitindo um ambiente menos constrangedor e mais propício para a busca da verdade.

O artigo 28, parágrafo 1º do ECA já determinava que, sempre que possível, a criança ou o adolescente seja previamente ouvido por equipe interprofissional, respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão sobre as implicações da medida. Trata-se de clara aplicação da doutrina da proteção integral e do princípio da oitiva obrigatória e participação(artigo 100, parágrafo único do ECA). Essa forma de ouvida dos infantes já era chancelada pela jurisprudência.

Regra geral, o depoimento especial deve ser realizado uma única vez (artigo 11), através de produção antecipada de prova judicial (artigo 156, I do CPP), garantida a ampla defesa do investigado. Ou seja, preferencialmente deve ser realizado como prova antecipada, a ser produzida perante o juiz com observância do contraditório real antes mesmo do início do processo, ou se deflagrado o processo antes da audiência de instrução e julgamento. Se impossível sua realização, deve-se proceder ao depoimento especial em sede policial, e repeti-lo posteriormente em juízo.

Todavia, a prova deverá necessariamente ser colhida antecipadamente em duas situações (artigos 11, parágrafo 1º e 3º, parágrafo único):
a) criança menor de sete anos;
b) criança, adolescente, ou jovem até 21 anos em situação de violência sexual.

Nessas situações, em vez da oitiva realizada na seara policial, que se traduziria em elemento informativo, deve-se buscar a realização na fase processual como prova. Isso não significa que a polícia judiciária não possa obter as informações mínimas sobre o fato delituoso para tomada das providências urgentes exigidas pela investigação criminal; para tanto, o delegado poderá levar a efeito uma escuta especializada.

Nada obstante grande parte dos crimes violentos contra crianças e adolescentes ser praticado na clandestinidade, longe dos olhares de testemunhas (situação em que a palavra da vítima assume especial relevo e possui força probatória suficiente para amparar condenação), a polícia judiciária deve envidar esforços investigativos para que o depoimento especial não seja o único meio de prova (artigo 22).

Não será admitida a tomada de novo depoimento especial, salvo quando justificada a sua imprescindibilidade pela autoridade competente e houver a concordância da vítima ou da testemunha, ou de seu representante legal (artigo 11, parágrafo 2º).

O depoimento especial abrange (artigos 9º, 10 e 12), quanto aos aspectos formais: a) local apropriado e acolhedor, com infraestrutura e espaço físico que garantam a privacidade da criança ou do adolescente vítima ou testemunha de violência; b) resguardo da criança ou do adolescente de qualquer contato, ainda que visual, com o suposto autor ou acusado, ou com outra pessoa que represente ameaça, coação ou constrangimento; c) presença do imputado na sala de audiência, em regra, admitindo-se excepcionalmente seu afastamento caso o profissional especializado verifique que sua presença possa prejudicar o depoimento especial ou colocar o depoente em situação de risco; d) gravação do depoimento em áudio e vídeo e transmissão em tempo real para a sala de audiência, em regra, podendo ser restritas se houver risco à vida ou à integridade física da vítima ou testemunha; e) tomada de todas as medidas para preservação da intimidade e da privacidade da vítima ou testemunha, inclusive a tramitação em segredo de Justiça. E quanto aos aspectos materiais: f) esclarecimento de direitos e procedimentos, vedada a leitura de peças; g) livre narrativa da criança ou do adolescente sobre a situação de violência, diretamente ao juiz se assim o entender, ou ao profissional especializado que pode intervir quando necessário, utilizando técnicas que permitam a elucidação dos fatos; h) possibilidade de perguntas complementares, após consulta ao Ministério Público e defesa, organizadas em bloco e feitas pelo profissional especializado com linguagem de melhor compreensão da criança ou do adolescente.

Como medida de proteção à intimidade e à segurança, o depoimento especial pode se dar por meio da inquirição sem rosto ou envelopada.Consiste no registro fracionado da oitiva em dois documentos, a inquirição propriamente dita a ser juntada nos autos, e a qualificação completa que será mantida apartada e acessível apenas aos envolvidos. Tal proceder não exige necessariamente a inclusão em programa formal de proteção, e não viola os princípios do contraditório e da ampla defesa pois não impede o acesso da defesa.

Aliás, sendo constatada gravidade da coação ou da ameaça à integridade física ou psicológica, nada impede (artigo 21, V) a aplicação dos mecanismos de proteção especial a vítimas e testemunhas previstos na Lei 9.807/99.

As políticas de atendimento, especialmente de saúde, assistência social e segurança pública, deverão ser integradas e promovidas em todos os níveis federativos, abrangendo integralidade, capacitação interdisciplinar, celeridade e monitoramento periódico.

Com efeito, estabelece a lei (artigo 21) algumas medidas para proteger a criança ou o adolescente em risco. Prevê que a autoridade policial requisitará à autoridade judicial as medidas de proteção pertinentes. Ora, ou a lei estabelece que o delegado requisitará as medidas (diretamente, por autoridade própria, sem intermediação judicial), ou que representará ao juiz para sua decretação (indiretamente, com uso de sua capacidade postulatória para pleitear em juízo). A falta de técnica do legislador tem explicação: na redação original do Projeto de Lei 3.792/15, o delegado requisitaria tais medidas sem necessidade de prévia chancela judicial, o que aliás seria mais consentâneo com a agilidade que se espera de uma apuração de delitos dessa natureza.

Apesar da previsão de solicitação judicial para a decretação das medidas, nem todas dependerão de chancela judicial, por decorrência de interpretação sistemática da própria Lei 13.431/17 e também da Lei 9.087/99, do ECA e da Lei 8.742/93.
São medidas em benefício da criança ou do adolescente que independem de autorização judicial: a) evitar o contato direto com o suposto autor da violência (medida que pode e deve ser decretada de ofício pelo delegado por imposição do artigo da Lei 13.431/17); b) inclusão em programa de proteção a vítimas ou testemunhas ameaçadas (providência que pode e deve ser solicitada diretamente pelo delegado ao órgão executor, conforme artigo , III da Lei 9.807/99); c) inclusão da vítima e de sua família nos atendimentos a que têm direito perante aos órgãos socioassistenciais (alternativa que pode e deve ser pleiteada diretamente pelo delegado ao Conselho Tutelar segundo artigo 101, IV do ECA ou ao órgão assistencial municipal conforme artigos 15, V, e 23, parágrafo 2º, I da Lei 8.742/93).
São medidas protetivas que dependem de ordem judicial: d) afastamento cautelar do investigado da residência ou local de convivência, em se tratando de pessoa que tenha contato com a criança ou o adolescente; e) prisão preventiva do suspeito (se preenchidos os requisitos do artigo 312 do CPP e nas hipóteses do artigo 313 desse diploma legal); f) produção antecipada de prova por meio do depoimento especial (representação que pode ser direcionada diretamente ao Judiciário — e não necessariamente por intermédio do Ministério Público. OBS: Nas situações envolvendo criança menor de sete anos ou em situação de violência sexual essa providência será obrigatória — artigo 11, parágrafo 1º).

Por fim, cabe destacar o novo crime tipificado pelo artigo 24 da Lei 13.431/17, assim redigido:
Art. 24. Violar sigilo processual, permitindo que depoimento de criança ou adolescente seja assistido por pessoa estranha ao processo, sem autorização judicial e sem o consentimento do depoente ou de seu representante legal.
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Sujeito ativo é aquele que tem acesso ao depoimento especial em razão do cargo que ocupa, como servidores do Judiciário, membro do MP ou defensor. Sujeitos passivos são tanto o Estado quanto o infante prejudicado com a divulgação indevida. Havendo permissão judicial ou autorização do depoente ou seu representante legal, o fato é atípico.

O delito abrange a divulgação do depoimento especial por qualquer meio de comunicação, conduta que estava prevista originalmente como crime à parte no Projeto de Lei 3.792/15, mas foi suprimido em razão de já estar abrangido pelo crime do artigo 24.

O delito se consuma com a simples revelação da oitiva, bastando que seja assistida por uma única pessoa estranha; cuida-se de crime formal, que dispensa o efetivo dano à administração pública. É possível a tentativa. Como o verbo nuclear consiste em permitir que seja assistido o depoimento, a revelação verbal do seu conteúdo não acarreta esse crime.

O legislador falhou em criminalizar apenas a violação do sigilo processual,não englobando o sigilo investigativo e, por isso, a divulgação de depoimento especial feito na delegacia de polícia durante o inquérito policial não permite a aplicação desse tipo penal. Todavia, tanto a revelação verbal do depoimento quanto a quebra do sigilo no inquérito policial são capazes de caracterizar o delito de violação de sigilo funcional previsto no artigo 325 do Código Penal.

A ação penal é pública incondicionada, e a atribuição para investigar é da Polícia Civil, e a competência para julgar, da Justiça Estadual, em regra, salvo se o depoimento indevidamente divulgado for colhido pela Polícia Federal ou Justiça Federal.

É importante a criação de delegacias especializadas, com equipes multidisciplinares. Até sua criação, a vítima deve ser encaminhada prioritariamente à delegacia especializada em temas de direitos humanos (artigo 20). De igual maneira, é recomendável a criação de juizados ou varas especializadas em crimes contra a criança e o adolescente, sendo que até sua implementação o julgamento e a execução das causas decorrentes das práticas de violência ficarão, preferencialmente, a cargo dos juizados ou varas especializadas em violência doméstica e temas afins (artigo 23).

Registra-se, por derradeiro, a revogação (artigo 28) da infração administrativa do artigo24888 doECAA, consistente em deixar de apresentar ao juiz de seu domicílio, no prazo de cinco dias, adolescente trazido de outra comarca para a prestação de serviço doméstico, mesmo que autorizado pelos pais ou responsável.

Fonte: ConJur.

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