terça-feira, 28 de março de 2017

Prisão civil do devedor de alimentos deve ser a última alternativa

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A prisão civil do devedor de alimentos segue sendo a única possibilidade prevista no sistema internacional de proteção dos direitos humanos para a prisão por dívidas, ademais de ter sido estabelecida, juntamente com a prisão do depositário infiel (esta afastada por força de Súmula Vinculante do STF), na Constituição Federal de 1988, no artigo 5º, inciso LXVII, dispondo sobre a legitimidade da prisão nos casos de inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentar.
A justificativa de tal previsão é mais do que sabida e em si reconhecida, visto que a restrição do direito de liberdade do devedor é tida como indispensável à garantia da própria sobrevivência ou, ao menos e em geral, da satisfação de necessidades essenciais do credor. Por tal razão, a própria possibilidade da prisão civil constitucionalmente prevista, a despeito de constituir fundamento da restrição de direito (da liberdade do devedor), é ela própria uma garantia fundamental.
Todavia, como em geral todo direito e garantia fundamental, o seu alcance — aliás, como previsto no próprio dispositivo constitucional citado — será objeto de regulamentação legal, e, via de consequência, interpretação pelos juízes e tribunais, de tal sorte que a própria legislação regulamentadora poderá vir a ser, a depender do caso, declarada inconstitucional ou ser objeto de uma interpretação conforme a constituição ou mesmo não recebida pela nova ordem constitucional.
De todo modo, se no sistema processual anterior, do Código de Processo Civil de 1973, já existiam algumas importantes controvérsias, em especial quanto ao regime prisional, dada a omissão legislativa a esse respeito, o problema volta a ter papel de destaque mediante a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015), que introduziu alguns importantes ajustes no âmbito do procedimento especial que regula a execução da obrigação alimentar.
Com efeito, tendo em conta que o objetivo do instituto da prisão civil não é em si de caráter punitivo, portanto, não tem por escopo a prisão em si considerada, mas constitui meio processual para compelir o devedor a saldar sua dívida alimentar, o Código de Processo Civil de 1973, no seu artigo 733, parágrafo 1º, previa que o juiz decretaria a prisão pelo prazo de 1 a 3 meses no caso de o devedor não pagar nem se escusar, ou nos casos em que a escusa apresentada for afastada por improcedente pelo Poder Judiciário.
Dentre os principais aspectos relacionados com a prisão civil já no regime anterior ao novo CPC, destacam-se, para efeito de nossa breve análise, o entendimento de que a prisão deveria ser cumprida em regime fechado (entendimento consagrado pela jurisprudência dominante) e que, de acordo com a Súmula 309 do STJ, a prisão apenas seria possível em relação às três últimas parcelas devidas, devendo as demais parcelas vencidas serem executadas pela via regular.
A despeito do entendimento referido, nem todos os magistrados e tribunais davam acolhida ao entendimento fixado pelo STF no que diz com o regime fechado, optando por impor o recolhimento ao estabelecimento prisional no período da noite e aos finais de semana (o Tribunal de Justiça do RS sufragava em sua ampla maioria tal entendimento), ao mesmo tempo evitando o contato direto dos presos por dívida alimentar com presos comuns em regime fechado e, de modo especial, assegurando-lhes a possibilidade de auferir recursos para seu próprio sustento e para cumprir com suas obrigações alimentares. Além disso, convém recordar que o STJ admitia o regime de prisão domiciliar em casos de grave enfermidade ou idade avançada.
Aliás, tal alternativa — designadamente a do trabalho durante o período diurno e prisão em regime fechado apenas em caso de reiterado e injustificado inadimplemento — chegou a ser aventada ao longo dos debates sobre o tema travados no Congresso Nacional.
Não foi, contudo, o que prevaleceu, pois o novo CPC, no seu artigo 528, parágrafo 4º, prevê que a prisão do devedor de alimentos deverá ser cumprida em regime fechado, mas ressalva que o preso deverá ficar separado dos presos comuns. Além disso, a exemplo do regime do CPC anterior, o novo CPC (artigo 528, parágrafos 5º e 7º) prevê que o cumprimento da pena (embora de pena no sentido próprio do termo não se trate!) não exime o executado do pagamento das prestações vencidas e vincendas, ademais de estabelecer que apenas o débito relativo às três prestações anteriores ao ajuizamento da ação e às que se vencerem no decurso do processo autorizam o decreto prisional.
Assim sendo, quanto à prisão em si, o novo CPC inovou basicamente naquilo que integrou no texto legal o que já constituía entendimento jurisprudencial consagrado, além do que já contava com previsão legislativa expressa.
Isso, contudo, não significa que o novo CPC não tenha inovado na matéria, pois no artigo 528, parágrafo 1º, ficou estabelecido que caso não pago o débito ou não justificado o inadimplemento, o juiz mandará protestar o pronunciamento judicial respectivo, isso antes mesmo da prisão civil, protesto que cabe tanto em relação a alimentos provisórios quanto definitivos e que será determinado pelo juiz de ofício, ou seja, mesmo sem requerimento específico por parte do exequente. 
Além disso, nos termos do artigo 529, parágrafo 3º, do novo CPC, o juiz poderá determinar o desconto de até 50% dos vencimentos líquidos do devedor, de modo a viabilizar um desconto adicional (por conta da execução de alimentos) ao desconto regular judicialmente determinado na ação de alimentos.
Dentre os inúmeros pronunciamentos sobre o tema, dada a sua permanente atualidade e relevância, vale colacionar matéria publicada no Informativo do IBDFam (Instituto Brasileiro de Direito de Família), em 9 de novembro, destacando-se manifestação do professor Paulo Lôbo, advogado e diretor da entidade, questionando o instituto da prisão em si, como vetusto e não adequado ao patamar civilizatório, devendo o mesmo ser utilizado apenas em casos excepcionais e de reiterado descumprimento. Além disso, foi referida jurisprudência do STF reconhecendo a ilegitimidade jurídica da prisão quando demonstrada a incapacidade econômica do devedor, bem como decisões do STJ afastando a prisão dos avós quando o pai tiver condições de assumir o pagamento da dívida alimentar.
À vista do quadro sumariamente traçado, é perceptível, do ponto de vista da interpretação e da aplicação dos direitos fundamentais, que mesmo na esfera da divida alimentar existem aspectos que reclamam um adequado equacionamento, no sentido de que sejam respeitados os critérios que balizam o controle de constitucionalidade das restrições a direitos fundamentais.
Reitere-se, nessa quadra, o que já foi adiantado, isto é, que mesmo tendo a prisão civil do devedor de alimentos expresso respaldo constitucional, a lei regulamentadora e a decisão judicial que a aplica não poderão desbordar de determinados critérios, pois a imposição da prisão não poderá resultar em violação de direitos fundamentais do devedor de alimentos, ademais de guardar sintonia com os critérios da proporcionalidade e da proibição de excesso de intervenção.
Ora, ainda que aqui não se pretenda mapear todos os aspectos problemáticos nem se poderá aprofundar o debate, alguns pontos merecem ser destacados e podem indicar um caminho a trilhar.
Em primeiro lugar, em observância ao subcritério da necessidade, poder-se-á considerar como alternativa prioritária que a prisão do devedor de alimentos somente deverá ser decretada apenas depois de esgotados outros meios de coerção, como, por exemplo, o protesto da decisão judicial que desacolhe a justificativa apresentada pelo devedor ou mesmo o desconto em folha adicional, ambos previstos no novo CPC.
Note-se que tal alternativa (protesto judicial) é de ser privilegiada ainda que o artigo 528, parágrafo 1º, do novo CPC disponha que o Juiz determinará o protesto e decretará a prisão. Contudo, para que o protesto não implique seja postergado de modo desarrazoado o adimplemento da dívida alimentar, há de ser fixado prazo adequado às circunstâncias, para, transcorrido o mesmo sem reação positiva do devedor, ser então decretada a prisão.
Além disso, a própria fixação do regime fechado, ainda que o cumprimento seja em separado dos presos comuns, não convence do ponto de vista de sua legitimidade constitucional, seja por se tratar de meio mais gravoso do que o regime semiaberto (recolhimento durante o período noturno e aos finais de semana), seja pelo fato de que poderá até mesmo comprometer a possibilidade de o devedor pagar o seu débito vencido, assim como regularizar o pagamento das prestações vincendas. Dito de outro modo, tanto devedor quanto mesmo o credor, ao menos em determinadas situações (o que poderá e deverá ser apreciado à luz das circunstâncias do caso concreto) poderão ter seus direitos fundamentais afetados de modo mais intenso.
Mesmo que se entenda que o regime deva ser o fechado (o que, em regra, não nos parece legítimo, salvo em caso de reiteração da inadimplência injustificada), no caso de ser inviável acomodar os presos por dívida alimentar dos presos comuns há de ser aplicado o regime da prisão domiciliar, que, de resto, já deve ser assegurado aos presos comuns quando inexistir estabelecimento prisional incompatível com o cumprimento da pena em regime que não seja o fechado, consoante recente Súmula do STF. Aliás, mesmo o recolhimento no período da noite e aos finais de semana não se revela alternativa constitucionalmente legítima quando a acomodação dos presos por dívida alimentar não puder ser levada a efeito de modo separado dos presos comuns.
O que não resulta legítimo do ponto de vista constitucional, por mais relevante que seja — e o é — a satisfação das necessidades alimentares pelos responsáveis pelo seu adimplemento — é que pais, mães e avós sejam, na esfera cível, submetidos a condições até mesmo mais gravosas (como dá conta o problema do regime prisional e da prisão domiciliar) de presos comuns provisórios ou definitivos, ou que, por força de prisão civil, sejam — no que diz com as condições de cumprimento da prisão — equiparados aos presos comuns.
Assim, em homenagem aos critérios da proporcionalidade, não apenas a prisão civil do devedor de alimentos deverá ser a última alternativa (pois a prisão em si não é ilegítima do ponto de vista constitucional), mas, quando aplicada, não poderá implicar condições tão ou mesmo mais gravosas aos presos por dívida alimentar do que àquelas impostas aos presos comuns, que, de acordo com correta orientação do STF, também devem ser preservados em relação a condições desumanas e degradantes de cumprimento da pena.
Além do mais, importa que se promovam alternativas eficazes para, em não sendo possível erradicar, ao menos reduzir e, em sendo o caso, mitigar os efeitos da prisão por dívida alimentar, sem deixar de atender as necessidades dos credores de alimentos. No limite, em situação de comprovado desemprego do alimentante ou não tendo o Estado condições de assegurar o cumprimento da prisão em condições minimamente compatíveis com a dignidade pessoal do devedor da obrigação alimentar, há que prever políticas públicas de assistência social supletiva, aperfeiçoando a proteção social das crianças e adolescentes ou outras pessoas credoras de verba alimentar, de modo a garantir uma fórmula de responsabilidade compartilhada, ademais de social e humanamente mais compatível com a dignidade da pessoa humana tanto de credores quanto dos devedores.

Esse, sem dúvida, é mais um dos tantos desafios postos ao legislador, aos atores do sistema judiciário e ao meio acadêmico, evitando-se posições de caráter intolerante e mesmo fundamentalista, típicos de uma infrutífera lógica do tudo ou nada. 
Ingo Wolfgang Sarlet é professor titular da Faculdade de Direito e dos programas de mestrado e doutorado em Direito e em Ciências Criminais da PUC-RS. Desembargador no RS e professor da Escola Superior da Magistratura do RS (Ajuris).
Revista Consultor Jurídico, 18 de novembro de 2016, 8h00
http://www.conjur.com.br/2016-nov-18/direitos-fundamentais-prisao-civil-devedor-alimentos-ultima-alternativa

A decisão jurídica no contexto da bipolaridade entre o universal e o singular

Frequentemente, a decisão jurídica é retratada, no ambiente cultural do estilo de vida romano-canônico[1], como uma atividade de mediação: apresenta-se como uma atividade que procura ajustar um universal a um singular, isto é, trata-se de agir como um medium para conformar a universalidade do justo à particularidade da discussão jurídica concreta, ou ainda, a generalidade da lei à concretude singular do caso[2].
Existe, evidentemente, uma série infindável de discussões para determinar o que é propriamente o universal do Direito. Qual a relação dessa universalidade com a ideia de Justiça? Há um justo natural? Ou são as forças históricas que o constituem enquanto instituição orgânica da sociedade? E a lei deve ser entendida como? Seria ela ato formal de um poder legislativo legitimamente constituído? Ou seria o resultado da vida de um povo? Por outro lado, também é polêmica a conformação daquilo que seja, propriamente, o singular do caso concreto. São as provas produzidas em um dado processo judicial? São as circunstâncias que o circundam[3]?
Uma abordagem, um pouco mais sofisticada do ponto de vista teórico, procura afirmar que a universalidade do Direito deriva de um quadro mais amplo dentro do contexto histórico-social. Tratar-se-ia de uma perspectiva macroscópica do fenômeno jurídico. De outra banda, o caso concreto judicializável representa um pequeno recorte dentro desse espaço geral de conformação. Tratar-se-ia, portanto, de uma manifestação microscópica do fenômeno jurídico.
A tarefa do agente decisório seria, nesse contexto, aproximar essas duas dimensões do fenômeno jurídico oferecendo, a partir daí, uma espécie de síntese que seria, propriamente, a decisão. De todo modo, é certo que — no contexto do estilo de vida jurídico do Direito Romano-Canônico — a decisão se apresenta como o resultado de uma mediação entre o universal (Direito/lei) e o singular (caso concreto judicializável).
Talvez a maior disputa em torno das configurações conceituais que gravitam na órbita da decisão jurídica se dê com relação à representação de como essa mediação tem lugar. Vale dizer, do tipo de estratégia que se utiliza para estabelecer uma aproximação racional do problema gizado. Se levarmos em conta as repostas que foram dadas ao longo da modernidade para essa questão, certamente teríamos como ponto de partida a questão da subsunção. Melhor seria dizer, talvez, do dogma da subsunção.
O dogma da subsunção opera em dois níveis distintos. Em primeiro lugar, há que se destacar um aspecto político-jurídico, de justificação. Em um segundo momento, existe uma determinação técnica-operacional.
a) Do ponto de vista político-jurídico, o dogma da subsunção efetua — por meio de uma série de justificativas que são articuladas a partir de argumentos retirados de um horizonte cultural determinado — uma redução epistemológica do problema do conceito de Direito. Concebe-se, nesse sentido, o Direito como sendo o conjunto das disposições que compõem as leis de um determinado Estado nacional. O conceito de Direito é equiparado, nesse sentido, ao conceito de lei.
Por outro lado, os movimentos de recepção do Direito Romano preparam as condições para o processo que culminou com a codificação do Direito Privado. De fato, a autoridade dos estudos universitários acerca da formação dos conceitos jurídicos e sua respectiva aplicação às relações jurídicas de Direito Privado que surgiam a partir do advento do Estado liberal contribuíram, significativamente, com a consolidação desse elemento cultural que produziu a equiparação entre lei e Direito.
b) Desse elemento político decorre logicamente uma consequência técnica ou metodológica. Trata-se da seguinte proposição: se o conhecimento do universal, da generalidade do Direito, já está dado pelo conhecimento da lei, então o trabalho do agente jurídico que exara a decisão judicial será aplicar esse conteúdo universal aos casos concretos apreciados.
A técnica inicial de decisão que servirá como mecanismo de aplicação do Direito será a conhecida subsunção. Nesse caso, opera-se dedutivamente da premissa maior que é a lei em direção à premissa menor, o caso. Esse aspecto lógico abstrato — também chamado de conceitualista — está na base de movimentos culturais como a escola da exegese francesa e a jurisprudência dos conceitos, alemã. Os grandes códigos civis do século XIX serão operacionalizados (no caso da escola da exegese) e pensados (no caso da jurisprudência dos conceitos) tendo a decisão judicial como resultado desse procedimento estritamente subjuntivo de acomodação do caso judicial ao suporte fático previsto na legislação.
Evidentemente, esse aspecto metodológico da questão gera, por sua vez, consequências políticas que podem, igualmente, ser pensadas a partir do horizonte cultural da época. Em primeiro lugar, acaba por concentrar o monopólio da decisão efetiva no plano da política e não, propriamente, da juridicidade. Quem decide de forma, digamos, soberana são as instâncias legislativas ou os espaços da erudição universitária. O corpo judiciário — que, nesse mesmo momento, passa a se formar enquanto organização burocrática desprendida do personalismo monárquico — agiria aqui com uma função “farmacêutica” de identificação de uma patologia que inquine a relação jurídica examinada, com a consequente determinação do remédio jurídico adequado, previsto, desde logo, pelos sistemas codificados.
Um código unificador de leis claras, por sua vez, permite experimentar a sensação de que o ideal de planificação e planejamento social presente no âmago das doutrinas iluministas poderia ser alcançado. Vale dizer, é uma expectativa própria desse tempo histórico que decisões tomadas no passado possam antecipar consequências futuras. Antecipar, no caso, decisões futuras.
Ou seja, há uma expectativa clara no sentido de que, se alguém descumpre alguma regra jurídica, cometa um ato ilícito etc., seja possível prever qual será a decisão que será tomada pelo agente estatal que ficará incumbido de tomar a decisão. Há, também, uma consequência econômica muito clara, uma vez que a previsão antecipada a respeito das decisões que serão tomadas no futuro permitiria aos agentes econômicos planejar melhor suas ações, bem como visualizar a consequência de seus atos. Criar-se-ia, assim, um elevado grau de certeza quanto ao resultado jurídico das relações econômicas. Nesse momento, o mercado é o grande interessado na afirmação da segurança jurídica. Do mesmo modo, podemos destacar, ainda, aspectos sociais importantes. No caso, a planificação jurídica estabelecida pela codificação funcionava como uma garantia de que os interesses burgueses, no caso francês, e que os interesses da aristocracia, no caso germânico, seriam, de alguma forma, preservados.
Ainda no século XIX, uma série de tensionamentos culturais começaram a impor algumas mudanças nas configurações conceituais da decisão jurídica. Nalguns casos, a própria pressão política da magistratura — que, já no final do século, começa a se fortalecer ganhando cada vez mais autonomia com a radicalização do Estado de Direito e o desligamento do processo civil do âmbito do Direito Material — levará a essa “mudança de rota”. Esse dado pode ser visualizado, por exemplo, na obra de Oskar von Bülow, que reivindicava maior espaço para a magistratura no processo de formação do Direito. Para ele, a verdadeira “recepção do Direito Romano” não teria ocorrido no seio da universidade, mas, sim, por meio das decisões tomadas pela magistratura que embalavam o Direito vivo, o Direito do caso[4].
Com efeito, a obra de Bülow pode ser considerada a mais remota manifestação crítica contra o dogma da subsunção; um primeiro, e ainda tímido, ataque ao conceitualismo da pandectística. Por outro lado, no ambiente do Direito francês, Francois Geny escreve, senão a primeira, certamente a mais famosa, crítica metodológica ao modelo de decisão estabelecido pelo exegetismo. Geny atacava exatamente esse aspecto predominantemente lógico-formal que o paradigma do dogma da subsunção carregava consigo. Sua grande intenção, como é sabido, era oferecer uma alternativa metodológica a esse “paradigma dominante” e que incorporasse um tipo de método científico mais adequado para o estudo do Direito. No caso, o método adequado teria inspirações sociológicas — em vez de lógico-filosóficas — e teria suas atenções voltadas para o fato jurídico em detrimento do entendimento meramente conceitual.
Essa investigação sociológica permitiria demonstrar a existência de determinadas relações sociais que, apesar de necessitarem de uma regração normativa, ficavam fora da zona de cobertura da estrutura codificada do Direito. Haveria, portanto, zonas “livres de direito” no seio da sociedade.
Assim, é importante ressaltar que a controvérsia das lacunas e a correlata questão da criação jurisprudencial do Direito é mais uma consequência do que, propriamente, intenção primordial do referido movimento. Na verdade, os esforços originários desse movimento estão vinculados a uma pretensão que poderíamos mencionar, com algumas ressalvas, como “epistemológica”: há uma reivindicação de correção quanto ao objeto da ciência jurídica e, em consequência, de seu aparato metodológico. No caso, busca-se o deslocamento do objeto da questão conceitual pura em direção aos fatos sociais, vale dizer, o objeto de estudo do jurista não seriam conceitos estabelecidos pela história ou por alguma legislação qualquer, mas, sim, os próprios fatos sociais. Mais do que os conceitos, é a sociedade que interessa ao Direito. De outra banda, a alteração do objeto implicava a correlata superação do método predominante de decisão: o paradigma da subsunção. No caso, propõe-se uma ênfase mais indutiva e menos dedutiva no processo de decisão das questões jurídicas.
Embora seja particularmente interessante e ilustrativo o modo como Kaufmann representa essa discussão entre os juristas do conceito e os juristas do Direito livre (inclusive em suas versões moderadas como no caso do Jurisprudência dos interesses), entendemos que ele não consegue captar toda a complexidade que reveste a questão. Conforme ressaltado em nota, Kaufmann vê a controvérsia que se estabelece aqui como uma repetição da querela medieval em torno dos universais: os juristas do conceito seriam os realistas — para quem só existem os universais; ao passo que os juristas do Direito livre seriam os nominalistas — para quem só o particular existe, propriamente. Os universais seriam apenas produtos intelectuais.
Ocorre que nem os conceitualistas eram assim puramente realistas (o problema da razão, da subjetividade, é uma constante também aqui) nem, tampouco, os libertários representariam um rigoroso nominalismo (como a reivindicação tem caráter científico, há uma preocupação com a afirmação de determinadas verdades “universais”).
No fundo, a grande questão que se coloca é a disputa entre Filosofia e Sociologia; trata-se de determinar se há espaço para a reflexão filosófica nos quadros de uma ciência social. Por certo que há uma pluralidade de formas de se trabalhar com a Filosofia ou com a Sociologia. Chamamos a atenção para isso na introdução: há em nosso contexto atual uma verdadeira competição de paradigmas em cada um dos campos do conhecimento.

[1] A expressão estilo de vida é de Erich Rothacker e compõe o quadro epistemológico de sua Antropologia Cultural. O autor explora o mesmo conceito em outro trabalho — de inspiração similar —, intitulado Filosofia da História (Cf. Rothacker, Erich. Problemas de Antropología Cultural. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1957, pp. 126 e segs.; Cf. Rothacker, Erich. Filosofía de la Historia. Madrid: Pegaso, 1951, capítulo II, passim). Os autores comparativistas, de uma maneira geral, referem-se ao common law e ao Direito Romano-Canônico como famílias (David, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2002, passim), tradições (Merymann, John Henry. Pérez-Perdomo, Rogelio. The Civil Law Tradition. 3 ed. Stanford: Stanford University Press, 2007, passim) ou sistemas (Losano, Mário. Os Grandes Sistemas Jurídicos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, passim.).
[2] A tensão entre o universal e o singular que existe no âmbito da decisão jurídica é apresentada de maneiras diversas por diversos autores. Particularmente interessante é a exposição que faz Jan Schapp (Problemas Fundamentais da Metodologia Jurídica. Porto Alegre: Fabris, 1985, pp. 13 e segs.).
[3] Veja-se, nesse sentido, a discussão feita por Arthur Kaufmann em seu Analogia e Natureza da Coisa, no interior do qual o autor propõe uma espécie de realismo moderado que procura equilibrar as posições extremas entre o universal e o particular. Para Kaufmann os “juristas dos conceitos” (jurisprudência dos conceitos/pandectistica) representariam um modo de pensar a questão em que se dá total primazia ao universal como se este possuísse existência autônoma. Por outro lado, os adeptos do Direito Livre ou dos movimentos teleológicos, tais quais o finalismo de Ihering e a jurisprudência dos interesses de P. Heck, seriam seguidores de um “nominalismo extremo”, para o qual só existe o particular, os universais estariam apenas “na inteligência”. Assim, para sair desse confronto de extremos — que Kaufmann retrata segundo a terminologia da “controvérsia dos universais” que teve lugar no medievo entre os realistas escolásticos e os nominalistas — dever-se-ia postular uma posição mediadora, que temperasse em doses equilibradas os argumentos extremados. Assim, recorre ele ao conceito de analogia entis desenvolvido pela filosofia tomista para postular uma correspondência entre ser e dever-ser, entre o universal e o singular (Cf. Kaufmann, Arthur. Analogía e Naturaleza de la Cosa. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1956, passim).
[4] Cf. Losano, Mario G. Sistema e Estrutura no Direito. Vol. II. São Paulo: Martins Fontes, 2010, pp. 153-154.
* Texto atualizado às 14h do dia 19/11/2016 para correção.
Rafael Tomaz de Oliveira é advogado, mestre e doutor em Direito Público pela Unisinos e professor do programa de pós-graduação em Direito da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp) e da Faculdade Guanambi (BA).
Revista Consultor Jurídico, 19 de novembro de 2016, 8h00
http://www.conjur.com.br/2016-nov-19/diario-classe-decisao-juridica-contexto-entre-universo-singular

Meação não impede indisponibilidade de bens obtidos de forma irregular

Bens e valores obtidos de forma ilícita e revertidos em benefício da família podem ficar indisponíveis, apesar de meação com cônjuge — desde que se que comprove a origem irregular. Por isso, a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região confirmou sentença que negou o desbloqueio de 50% dos bens de um casal de Ponta Grossa (PR), cujo marido, servidor público, está sendo processado por improbidade administrativa. A decisão da corte foi proferida na sessão de 8 de novembro.
No primeiro grau, o juiz da 6ª Vara Federal de Curitiba entendeu que a meação da parte autora não merece ser preservada, diante dos fortes indícios de que os bens obtidos pelo casal ao longo do tempo foram produto de atos ilícitos (simulação de contratos de prestação de serviços e sonegação fiscal). Além disso, observou que a autora não advoga para nenhum cliente, a não ser para o esposo, vivendo de "bicos" de artesanato, cuja renda não alcançava, em 2006, sequer R$ 1 mil por mês.
Face a este quadro, o juízo de origem concluiu que a mulher contribuiu muito pouco (ou quase nada) para a formação do patrimônio do casal. Por consequência, não há razão plausível para restringir a medida de indisponibilidade dos bens em virtude da invocação do direito de meação. Afinal, ficou evidente que o eventual proveito econômico resultante dos atos ilícitos criminais do marido se deu em benefício do casal.
"A meação da esposa não responde pelos atos ilícitos praticados pelo marido, a não ser que fique demonstrado que o enriquecimento indevido tenha beneficiado o casal, incidindo, nessa última hipótese, a exceção antes consagrada no art. 246, parágrafo único, do antigo Código Civil, e agora mantida, com outra redação, nos artigos 1.663, § 1º, e 1.664 do atual Código Civil, dispositivos legais aplicáveis também ao regime de comunhão universal, ex vi [por determinação] do artigo 1.670 do mesmo diploma legal", registra a sentença.
Apelação mantém sentença
Em apelação ao TRF-4, a mulher do servidor alegou que a multa eventualmente imposta ao marido não pode passar de 50% do patrimônio dele, haja vista a meação a que tem direito. Garantiu que não há qualquer prova na Ação Civil Pública de que os bens acautelados são produto de crime. Além disso, argumentou que estes bens foram adquiridos até o início do ano de 2007, anterior aos supostos fatos que deram ensejo ao processo. Por fim, apontou estar em grave situação financeira.
O relator do recurso na corte, desembargador Fernando Quadros da Silva, no entanto, manteve a decisão, por também não considerar legítima a pretensão da embargante, já que não ficou delimitada a origem lícita dos bens em discussão. Em síntese, reforçou que, havendo indícios fortes de que o patrimônio amealhado é produto de conduta ilícita, não é possível sua liberação.
"Vale destacar, ainda, que sobre os bens acautelados na Ação Civil Pública somente foi decretada a sua indisponibilidade, não houve lavratura de termo de penhora, muito menos arrematação dos bens ou qualquer ameaça de alienação dos bens acautelados. Logo, a meação da embargante não sofre qualquer risco de expropriação, não havendo falar em reserva da meação de bens, dos quais tão somente foi decretada a indisponibilidade", explicou Quadros no acórdão. Com informações da Assessoria de Imprensa do TRF-4.
Apelação Cível 5043791-09.2015.4.04.7000/PR
Jomar Martins é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.
Revista Consultor Jurídico, 20 de novembro de 2016, 7h53
http://www.conjur.com.br/2016-nov-20/meacao-nao-impede-indisponibilidade-bens-obtidos-forma-irregular

Opinião: É preciso entender o negro e dar espaço para ele achar sua personalidade

Por 
O dia da consciência negra foi fixado em 20 de novembro por ser o aniversário da morte de Zumbi do Palmares. Dentre tantas objeções que ouço, uma questão que se apresenta para mim é a sua representatividade.
Tentar explicitar as origens e indagações que surgem por conta da instituição de um dia para os negros foi o que me levou a escrever este texto, que se apresenta extremamente diminuto para o tamanho do quadro envolvido.
O primeiro ponto é o questionamento de “por que não o dia da consciência humana”. Ora, se a intenção é chamar atenção para a necessidade de igualdade racial, como uma abstração iria ajudar?
Pensar na consciência humana é tão genérico que acaba excluindo do âmbito da discussão aquilo que se quer envolver.
Seguindo por este caminho, um aspecto precisa ser esclarecido: a necessidade de autoafirmação e ratificação de determinado assunto, qual seja, a desconstrução do etnocentrismo.
Um grande problema que enfrentamos é a necessidade de eterna justificação da luta pela emancipação dos afrodescendentes. Se antes era uma verdade absoluta a desqualificação, hoje o discurso se concentra em (i) que inexiste racismo e (ii) falar da diferença é errado, porque todos são iguais.
Existe uma pesquisa interessante sobre o racismo, que consiste em duas perguntas: se ele existe e se o entrevistado se considera racista. 98% das pessoas afirmaram que há racismo no país e 95% não se considera racista. Quando não se reconhece a própria responsabilidade dentro de um determinado problema, exclui-se a possibilidade de identificá-lo com clareza e, por conseguinte, a sua resolução, abstrativizando a questão e apontando a um ente disforme aleatório.
Ainda como um conceito aberto e em construção, entendo a sistemática do racismo como uma instituição que se espalha por todos (ou grande parte) dos nichos da sociedade contemporânea. O caráter genérico dessa figura se dá por sua presença concreta em todas as partes da sociedade, diferente do que se coloca normalmente como à margem, acredito que ele esteja potencialmente presente na maioria das vezes.
Isso se dá quando analisamos alguns dados estruturais de nossa sociedade.
O Brasil tem 53% de negros e 46,3% de brancos em sua população. Quando observamos as faixas de renda, esse equilíbrio some. Na zona classificada como extremamente pobre, evidencia-se que 71% é composta por negros, traduzidos em 5,6 milhões de pessoas. Ainda na base, mas subindo um degrau, considerada pobre, o correspondente é de 75% negros, ou 7,3 milhões de pessoas.
Recentemente chegou ao conhecimento da população um dado, no mínimo, curioso: dos 5.568 municípios do país, em 2.512 cidades não há candidato negro (preto ou pardo) disputando as eleições para o cargo de prefeito. Isso quer dizer que em 45,11% das cidades sequer existe negros que se candidatem ao cargo de chefe do executivo local.
De acordo com o último Censo racial do CNJ, em 2010, no Brasil, temos apenas 1,4% de juízes negros. No MP-SP, apenas 3% de promotores negros.
Por último, um fato assustador: segundo o Ministério da Saúde, somente no ano de 2014, no Brasil, 44.582 negros morreram por homicídio. Isso quer dizer que todos os dias morreram 123 negros, correspondendo a 2,4 vezes mais do que brancos, demonstrando um crescente em relação aos demais anos em que a taxa de mortalidade era de 34,7 em 2011, 36,2 em 2012 e 36,4 em 2013.
Assim, quem hoje não vê diferença entre brancos e negros, precisa de óculos para memória e para mínima capacidade crítica. Explico: historicamente todos sabem que o ponto de partida do desenvolvimento da personalidade do negro, enquanto ser humano, é absolutamente recente, já que até a abolição da escravatura, sua classificação era coisa.
Então, falo de 128 anos a partir de uma liberdade formal (abolição da escravatura no Brasil) versus séculos e séculos de pleno desenvolvimento do curso do destino do mundo. Creio que este argumento não pode ser ignorado quando se analisa as diferenças existentes.
Daí a imprescindibilidade de se refletir sobre o papel do negro hoje. Quando falo em pertencimento, penso em dois planos, quais sejam o da pessoa e o de integrante da sociedade.
Enquanto ser humano, urge a necessidade de não somente observar e entender o negro como um sujeito, mas sim de conceder a ele o espaço de desenvolvimento de identidade para o alcance pleno de sua personalidade.
No âmbito da integração, está a lógica da anuência e aceitação da diversidade. Assim, uma das referências mais fortes que me vem à cabeça é um samba da Vila Isabel do carnaval de 1988, de Luiz Carlos da Vila, sobre esta data que representa tanta coisa, cuja letra peço licença para transcrever:
“Valeu Zumbi / O grito forte dos Palmares / Que correu terras, céus e mares / Influenciando a Abolição / Zumbi valeu / Hoje a Vila é Kizomba / É batuque, canto e dança / Jongo e Maracatu / Vem, menininha, pra dançar o Caxambu / Ô nega mina / Anastácia não se deixou escravizar / Ô Clementina / O pagode é o partido popular / Sarcedote ergue a taça / Convocando toda a massa / Nesse evento que congraça / Gente de todas as raças / Numa mesma emoção / Esta Kizomba é nossa constituição / Que magia / Reza, ajeum e orixá / Tem a força da Cultura / Tem a arte e a bravura / E um bom jogo de cintura / Faz valer seus ideais / E a beleza pura dos seus rituais / Vem a Lua de Luanda / Para iluminar a rua / Nossa sede é nossa sede / De que o Apartheid se destrua”.
Em uma música com um pouco mais de um minuto, na qual o poeta conseguiu captar e resumir todo o conteúdo deste texto e ganhar o carnaval do referido ano, é possível destacar todo o grito de independência de identidade pretendida ainda hoje pelos negros, que contribui para o atingimento do nível de parte, enquanto identificável pertencente a um grupo, bem como de participante, no sentido da atuação relevante no contexto social.
Interessa atentar, ainda, para o destaque das mais variadas características particulares do povo de matriz africana, chegando-se a eleger uma constituição própria, revelando uma separação imposta, como exemplo do Apartheid, em que se pede o seu fim. Daí, a dicotomia identificadora e integrativa exposta neste texto.
Ser parte e ser referência é o objetivo, pois, do processo de busca pela igualdade étnica que se deve discutir, pensar e projetar pelo dia da consciência negra.
Não quer dizer que a carga histórica de luta por identidade de um povo seja fixada somente por um dia; o raciocínio é inverso, existe um dia oficialmente designado para lembrar a necessidade de olhar ao passado para escrever um novo futuro, sem que se olvide que os esforços necessários são realizados diariamente. Por este motivo, recorrer à consciência a respeito da situação da desigualdade racial é importante.
Uma frase atribuída a Martin Luther King diz que “a maior tragédia do período de transição social não é o clamor dos maus, mas o silêncio dos bons”. Portanto, é preciso repisar que fechar os olhos para os fatos da desigualdade histórica e atual, é anuir com a perpetuação de uma situação que não se deve permitir permanecer da forma que continua se apresentando.

Assim, entendo que enquanto existir a necessidade de integração e independência, enquanto a distância imposta pelos vários anos de submissão não for substituída pela igualdade de oportunidade, será plenamente justificável a manutenção e reverberação de um dia da consciência negra, nem que se preste a mera discussão, porque, como ensina um provérbio africano “o sol caminha devagar, mas atravessa o mundo” e assim espero que consigamos um dia.
Irapuã Santana do Nascimento da Silva é assessor de ministro no Supremo Tribunal Federal, mestre e doutorando em Direito Processual pela UERJ. Professor da pós-graduação do UniCEUB.
Revista Consultor Jurídico, 20 de novembro de 2016, 10h44
http://www.conjur.com.br/2016-nov-20/irapua-silva-dia-consciencia-negra

O divórcio como quebra da base objetiva do testamento

Por 

Na aprazível cidade de Maceió, ao lado do amigo de longas e profícuas jornadas, Zeno Veloso, e sua mulher, Lilian, estávamos nos preparando para conhecer o Museu de Arte Sacra Pierre Chalita, quando Zeno lança questão inquietante:
“Simão, tu que és sabido em matéria de sucessões, responde esta: sujeito faz um testamento, casado, com filhos, e deixa a parte disponível para sua esposa. O testamento tinha apenas esse objetivo e mais nada. Depois de alguns anos, o casamento naufraga e eles se divorciam. O testador morre sem ter revogado o testamento. Pergunto: o ex-cônjuge recebe a herança testada?”.
A questão é espinhosa e merece alguma reflexão. Efetivamente, o argumento pela manutenção da eficácia do testamento é forte. O testador não revogou o testamento, não lhe retirou a eficácia, o que poderia ter feito após o divórcio. Assim, o testador quereria ver a deixa produzir todos os efeitos após a sua morte. Não é essa, em regra, a orientação adequada. Para explicar a questão, precisamos partir de duas premissas.
1. Quebra da base objetiva e os Coronation Cases
A primeira premissa é que o testamento, assim como contrato, é negócio jurídico, e nesse ponto não há qualquer controvérsia. Não só Pontes de Miranda como Antonio Junqueira de Azevedo, cada um por meio de uma visão do instituto, concluem que o testamento é realmente negócio jurídico. Na linguagem ponteana, é a autorregulamentação da vontade da pessoa, que pretende certos efeitos e, por isso, se vale do testamento.
O testamento revela a vontade declarada do testador que não pretender ver, em sua sucessão, a vontade presumida pela lei (vocação hereditária, por exemplo) ser aplicada. O negócio jurídico causa mortis tem o condão de afastar a incidência das regras da sucessão legítima que são sucedâneas, supletivas à vontade do de cujus.
É por isso que o testamento, assim como o contrato, nasce da vontade, e seus efeitos decorrem da vontade. É fruto da autonomia privada[1].
A segunda premissa diz respeito à velha e repisada (muitas vezes malpisada) cláusula rebus sic stantibus[2]. A premissa dos contratos é que esses devem ser cumpridos, porque obrigam (pacta sunt servanda). Contudo, se alteradas as circunstâncias fáticas entre o momento da formação e da execução, o contrato pode se extinguir, resolver, pois o contrato só obriga estando assim as coisas, rebus sic stantibus.
A cláusula, fruto da contribuição dos canonistas ao Direito Civil, nasce na Idade Média e é retomada nos fins do século XIX, quando dos trabalhos de codificação do BGB. A partir dessa cláusula medieval, surgem modernas teorias: pressuposição, base do negócio (objetiva e subjetiva), bem como a teoria da imprevisão.
Essa última, de grande aplicação na França, tem seu ápice com a Lei Faillot, que permitia a revisão e extinção de todos os contratos após a 1ª Guerra Mundial. Tem por inspiração a decisão do Conselho de Estado a respeito do preço do gás fornecido em Bordeaux. A mais alta instância decisória administrativa permitiu que o preço fosse reajustado por força da guerra, evento imprevisível e que altera substancialmente o preço do gás.
A quebra da base objetiva do negócio teve sua aplicação nos famosos Coronation Cases quando da coroação do Rei Eduardo VII, na Inglaterra[3]. A coroação de um monarca é espetáculo de grande apreço entre os britânicos. Eduardo VII sucedera sua mãe, a Rainha Vitória[4], monarca mais longeva da História daquele povo, após 64 anos de reinado. Para assistir ao desfile de coroação (26 de junho de 1902), contratos de locação da varanda (balcony) foram celebrados entre os proprietários de imóveis (locadores) e pessoas que queriam uma visão privilegiada do cortejo (locatários).
Contudo, por motivos de saúde do Monarca[5], a coroação foi adiada para agosto daquele ano. O problema jurídico que surgiu foi saber se o pagamento do preço deveria ser pago pelos locatários. Para os locadores, não houve perda do objeto do contrato, nem sua impossibilidade, já que o uso das varandas prosseguia possível. Para os locatários, apesar de possível o uso era inútil, já que a coroação não ocorreria e desfile não haveria.
A solução jurídica adotada foi a adoção da teoria da quebra objetiva do negócio, como desdobramento histórico da velha cláusula rebus. Ninguém havia locado varandas para utilizar a varanda como espaço de lazer. A locação tinha um único objetivo: a visão privilegiada do cortejo real. Isso porque, normalmente, para se ver um cortejo real, o volume de pessoas e a aglomeração é tão grande que praticamente nada se vê.
Mudou a base objetiva porque mudaram as circunstâncias. A locação tinha por base a passagem do cortejo real. Sem a passagem do cortejo, frustrou-se o fim contratual, e o contrato é considerado extinto, resolvido, sem o dever de se pagar o aluguel.
2. Quebra da base objetiva e o divórcio
No caso em questão, temos um testamento em que o testador nomeia como herdeira “sua esposa”, “sua mulher”, Maria. Contudo, após o testamento ocorreu o divórcio, e o testamento não foi alterado, manteve-se inalterado. A pergunta que se faz é se há ineficácia do testamento em razão do divórcio. Haveria caducidade em decorrência do divórcio superveniente?
Cabe a interpretação da vontade do morto para a solução da questão. Deixar bens “para minha esposa, minha mulher” significa que a vontade do testador não era de beneficiar Maria, mas sua mulher, com quem dividia a comunhão de vida, com quem tinha convivência more uxorio, baseada no vínculo de afeto. A vontade perde seu substrato fático, há uma mudança das condições objetivas do testamento. Entre a formação e a eficácia do testamento mudaram as bases objetivas, as circunstâncias. Logo, o testamento perdeu seus efeitos. É clara situação de caducidade.
Situação distinta se verifica se o testamento já é feito após o divórcio ou separação de fato do casal. Nessas hipóteses, a vontade do testador é clara: ele quer beneficiar Maria, e não sua mulher. Assim, o testamento permanece eficaz.
Todavia, podemos avançar no raciocínio com algumas ponderações: se o casal se divorcia, mas prossegue convivendo em união estável, o que ocorre com o testamento? A situação é mais comum do que parece. O casal pode se divorciar inclusive por força de eventuais credores, mas prosseguir com a convivência familiar, sob a forma de união estável. Pode, ainda, o casal se divorciar e, por razões do coração, se reconciliar não por meio de novo casamento, mas de união estável.
Nessas hipóteses em que, no momento da morte a comunhão de vidas prosseguia, mesmo após o divórcio, a qualidade de herdeiro se mantém.
Assim, como fica a resposta a Zeno Veloso? Cada caso é um caso? Não, casuística não é ciência, é casuística.
Há uma presunção relativa de caducidade (ineficácia) do testamento quando o divórcio ocorre, porque a base do negócio jurídico se alterou. Mudaram as condições fáticas entre a existência do testamento e sua posterior eficácia mortis causa. Entretanto, se a comunhão de vida prossegue, se após o divórcio mantém-se, a convivência more uxório, cabe ao sobrevivente provar tal fato afastando a presunção relativa de caducidade do testamento.
Por fim, se o próprio testador informar que após o divórcio o cônjuge deixa de ser herdeiro ou que mesmo após o divórcio o ex-cônjuge mantém a qualidade de herdeiro, dúvida não há que prevalecerá a vontade declarada do morto.
De qualquer forma, terminamos a manhã no Museu de Arte Sacra de Maceió. Museu fantástico, que vale a visita. 


[1] Auto + nomos = própria lei.
[2] In contractus qui habent tractum sucessivum et dependentia de futuro, rebus sic stantibus inteliguntur.
[3] É Antonio Junqueira de Azevedo quem narra o caso.
[4] A Rainha Vitória só foi ultrapassada recentemente por Elizabeth II, cujo reinado se iniciou em 1952 e ainda prossegue.
[5] O Rei Eduardo, obeso e fumante contumaz, passou por uma operação em razão de problemas estomacais.
José Fernando Simão é advogado, diretor do conselho consultivo do IBDFAM e professor da Universidade de São Paulo e da Escola Paulista de Direito.
Revista Consultor Jurídico, 20 de novembro de 2016, 8h00
http://www.conjur.com.br/2016-nov-20/processo-familiar-divorcio-quebra-base-objetiva-testamento

A insurreição do ministro Gilmar Mendes contra o realismo jurídico

Por  e 

Realismo jurídico (especialmente “o realismo à brasileira” rima com juristocracia — sempre indicando o livro Towards juristocracy, de Ran Hirschl). Denunciar esse estado de coisas que vem crescendo, dia após dia, no Brasil, tem seu preço. Lamentavelmente. E ele é ainda mais caro quando a crítica é legítima, necessária e intramuros.
Na última quinta-feira (15/12), os juízes federais dos estados de São Paulo e de Mato Grosso do Sul, por meio de nota subscrita por sua associação de classe (Ajufesp), sugeriram que o ministro Gilmar Mendes renunciasse à toga e se tornasse comentarista, tendo em vista que ele “vem reiteradamente violando as leis da magistratura e os deveres éticos impostos a todos os juízes do país, valendo-se da imprensa para tecer juízos depreciativos sobre decisões tomadas no âmbito da operação 'lava jato' e mesmo sobre decisões de colegas seus”.
Isso porque, no dia anterior, em entrevista ao Estado de S. Paulo, o ministro Gilmar Mendes declarou que a decisão (do ministro Luiz Fux) que anulou a tramitação do projeto de lei referente às 10 medidas contra a corrupção era um “AI-5 do Judiciário” e, ainda, que seria “melhor fechar o Congresso e entregar as chaves ao (Deltan) Dallagnol (coordenador da força-tarefa da 'lava jato')”.
Qual o problema da manifestação do ministro Gilmar? Depende. Vejamos. Para a Ajufesp, o problema é que o Estatuto da Magistratura aplica-se a todos os juízes do Brasil e, portanto, o ministro está proibido de manifestar “por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério” (artigo 36, III, LC 35/79). Para nós, o problema é que o ministro Gilmar tem razão!
Dito de outro modo, a nota da Ajufesp transforma o problema secundário no principal! Além disso, é curioso como seus posicionamentos são pautados por um juízo de mera conveniência, uma vez que a associação sempre apoiou o magistrado da “República de Curitiba” (sic), especialmente após ele cometer um rosário de ilegalidades (interceptações não autorizadas, provas ilícitas, vazamento de informações sigilosas etc.).
Vejamos outro exemplo envolvendo os mesmos ministros. Durante a penúltima sessão do ano no Tribunal Superior Eleitoral (assista aqui), ao retomar o julgamento do REsp 7.586, de relatoria da ministra Luciana Lóssio, discutiu-se a incidência da jurisprudência do STF sobre a Lei da Ficha Limpa em caso relativo ao município de Abelardo Luz (SC).
Após os ministros Gilmar Mendes, Luciana Lóssio e Napoleão Nunes Maia Filho votarem pelo improvimento do recurso do MPE — e os ministros Rosa Weber e Herman Benjamin divergirem —, houve um caloroso debate acerca da situação absurda que resultaria da simples aplicação da jurisprudência do STF diante da singularidade do caso concreto. Na ocasião, o ministro Luiz Fux revelou sua vertente realista ao afirmar: “O absurdo está chancelado pelo Supremo. E o Direito é aquilo que os tribunais dizem que é”.
Imediatamente, o ministro Gilmar contestou: “Não, ministro. Isso, não. Aí não. De jeito nenhum. Se o Supremo chancelar absurdos... O Supremo não faz do quadrado um redondo. Data vênia, isso não é conceito que se possa sustentar. Nem o Código Fux sustenta isso. E nós não podemos chancelar. E eu mesmo vou defender a insurreição contra esse tipo de jurisprudência”. O ministro Henrique Neves pediu vista, pondo fim à discussão, enquanto o ministro Luiz Fux esclareceu que, na verdade, estavam em concordância, uma vez que o caso sob exame exigia a realização do devido distinguishing, sob pena de se prolatar uma decisão inconstitucional.
Veja-se: de novo, o ministro Gilmar tem razão. Claro que ele mesmo por vezes se contradiz. Ou se corrige. Por exemplo, no episódio em que o juiz Sergio Moro vazou ilegalmente as conversas telefônicas entre Lula e terceiros, incluindo a presidente Dilma, ele considerou esses vazamentos como regulares. Particularmente, levando em conta a posição de defesa da Constituição do ministro e do professor de Direito Constitucional, estranhamos, à época, sobremodo tal manifestação. Depois, o STF definiu que, de fato, Moro errara ao divulgar as escutas.
Agora, no episódio envolvendo a delação do ex-diretor de Relações Institucionais da Odebrecht, o ministro Gilmar foi enfático ao referir a necessidade de se anular os acordos de colaboração premiada cujo teor foi publicizado à revelia da lei e da Constituição. Está corretíssimo sua excelência! No caso, o ministro Gilmar fez um correto overruling de sua posição anterior. Assim é que tem de ser. Nem o STF nem um ministro em particular têm o direito de errar por último. E tampouco podem dizer que o Direito é o que o STF diz que é. As declarações do ministro Gilmar, na discussão travada no TSE, podem ser um importante começo para o enfrentamento das velhas teses realistas que tanto ainda fazem sucesso no Brasil. Façamos um overruling das teorias de Holmes. E de todos os autores que sustentam esse tipo de tese. Por quê? Porque vivemos — e assim queremos permanecer — numa democracia.

A “coisa” está tão complexa e dicotomizada no Brasil que sempre é difícil falar sobre algo especialmente quando estão envolvidos ministros da suprema corte ou altas autoridades dos Poderes. No caso, pelo “princípio da caridade”, chamamos à colação, a nosso favor, o sétimo aforismo de Wittgenstein (sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar), porém na sua forma invertida: sobre aquilo que não se pode calar, deve-se falar! Eis um dever republicano, cada vez mais raro nos dias de hoje.
André Karam Trindade é doutor em Direito, professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Guanambi (FG/BA) e advogado.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck e Trindade Advogados Associados:www.streckadvogados.com.br.
Revista Consultor Jurídico, 17 de dezembro de 2016, 8h05
http://www.conjur.com.br/2016-dez-17/diario-classe-insurreicao-ministro-gilmar-mendes-realismo-juridico

Sistema de adoção no Brasil é cruel com as crianças e os adolescentes

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O sistema de adoção no Brasil é cruel com as crianças e os adolescentes. São os números que dizem isso: mais de 46 mil estão em abrigos à espera de uma família. Pior que isso são os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário parecerem achar tudo normal. É perverso! Todos fazem de conta que não veem essa violência de os menores não poderem ter uma família para acolhê-los. O aforismo de Lacan, “A mulher não existe”, pode ser ampliando também para “A criança não existe”. Elas se tornaram invisíveis e não há nenhuma política pública séria para tratá-las como verdadeiros sujeitos de direitos. Elas não fazem parte da engrenagem política. Não dão voto. Elas não têm voz nem vez.
Por que tem tantas crianças e adolescentes em abrigos esperando serem adotados? A primeira resposta é que a maioria dos adotantes pretendem crianças até três anos de idade, e grande parte delas já passou dessa faixa etária. É claro que se pode incentivar a chamada adoção tardia, isto é, de crianças que não estejam nesse perfil preferencial. Mas antes disso é preciso se perguntar porque elas demoram tanto em abrigos, e o porquê de a adoção ser tão emperrada. Há quem passe toda sua infância e juventude nos abrigos à espera de uma família que nunca chega. Há ações isoladas de alguns operadores do Direito pelo Brasil afora que fazem a diferença com o seu trabalho para interceder neste perverso ciclo de crianças que não têm famílias. Mas são casos isolados. É preciso muito mais.
A raiz do problema está, inclusive, em uma interpretação equivocada e preconceituosa da lei, no sentido de que deve-se buscar a qualquer custo que a criança seja adotada pela família extensa, ou seja, pelos seus parentes. Um verdadeiro culto ao biologismo, incentivado equivocadamente inclusive por dogmas religiosos. Ainda não temos um Estado verdadeiro laico. Esta procura pelo adotante “preferencial” costuma durar anos e, quando é encontrado, na maioria das vezes o parente adota não por amor, mas por culpa. O consagrado princípio constitucional do melhor interesse da criança fica longe do que seria realmente melhor para ela. Grande parte dos juízes e membros do Ministério Público ainda está paralisada na ideia de que família é da ordem da natureza, e não da cultura, ignorando toda a evolução do pensamento psicanalítico e antropológico. Isso por si só já leva o processo a atrasar anos.
Seria irresponsabilidade fazer um processo de adoção em apenas um  ou dois meses. Mas demorar anos como tem acontecido na maioria deles é compactuar com o sistema que mais violenta essas crianças e esses adolescentes do que os protege. Quem aceita essa situação justifica que é culpa do sistema e que deveria ter mais profissionais no quadro das varas de infância e juventude, para dar conta do volume enorme de processos etc. Seja como for, se cada um dos profissionais envolvidos na adoção não parasse de se indignar com as crianças depositadas nos abrigos, certamente teríamos mais adoções no Brasil. Não há valor jurídico, moral ou religioso que justifique essa cruel realidade.
O sistema de adoção brasileiro precisa ser revisto urgentemente. Todos os governos em início de mandato prometem mudanças, mas nunca levaram isso a sério. O Ministério da Justiça do atual governo elaborou um bem intencionado anteprojeto de lei para desemperrar as adoções. O Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) vê com bons olhos a iniciativa e tem dado contribuição para seu aperfeiçoamento, pois entende que serão necessários ajustes, tais como simplificação e redução dos prazos processuais e a suspensão do poder familiar, que deve ser feita tão logo constatada a impossibilidade de permanência no núcleo familiar originário.
O melhor desse anteprojeto é que ele toca em pontos nevrálgicos da adoção e abre brechas para enfrentar o preconceito que ronda e impede que crianças tenham uma família. Nele, as adoções internacionais poderão ser vistas sem preconceito. Afinal, em uma era globalizada, a transnacionalidade é uma realidade. E, se considerarmos que os estrangeiros são os que menos exigência fazem para adoção, certamente muitas crianças sairão do abrigo, e nós, advogados, deixaremos de ser vistos como vendedores de crianças para o exterior. Outro preconceito enfrentado é o da adoção intuitu personae, ou dirigida. Há pessoas que querem entregar o filho para adoção, mas só se dispõem a fazê-lo se for para determinada pessoa. No atual sistema, isso, a rigor, não é possível, (exceção para doação unilateral, isto é, de padrastos), pois toda criança adotável deve entrar em uma lista oficial criada no início de 2008 pelo Conselho Nacional de Justiça, denominada de Cadastro Nacional de Adoção (CNA). Tomara que esse anteprojeto não se torne apenas uma das boas intenções como aconteceu em tantos outros governos.
A comunidade jurídica interessada e preocupada em dar uma família a estes milhares de crianças e adolescentes espera que em breve ele se torne lei e possa ajudar a mudar esta triste realidade da adoção. Até que isso aconteça, é possível interferir e mudar imediatamente o sistema com algumas ações práticas. A primeira delas, e que pode ser rápida, é alterar o atual sistema do Cadastro Nacional de Adoção, que, ao invés de facilitar, tem dificultado as adoções. O excesso de proteção e segurança acabou por emperrá-lo ainda mais.

Há sempre esperança de que boas intenções se transformem em realidade. E, até que elas se transformem em ações efetivas, e independentemente delas, os profissionais envolvidos com adoção podem contribuir para sua efetividade, se tiverem um olhar mais generoso para o real interesse das crianças e adolescentes, comprometido com a ética do bem, saindo de seu lugar de conforto e, principalmente, acabando com o preconceito de que a família biológica é melhor ou tem preferência sobre a adotiva, que é uma espécie do gênero da família socioafetiva. Adoção não é uma filiação de segunda classe. Ao contrário, somente os pais adotivos podem repetir aos seus filhos o que Cristo disse aos seus apóstolos: “Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu quem vos escolhi a vós”.
Rodrigo da Cunha Pereira é advogado e presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), mestre (UFMG) e doutor (UFPR) em Direito Civil e autor de livros sobre Direito de Família e Psicanálise.
Revista Consultor Jurídico, 18 de dezembro de 2016, 8h00
http://www.conjur.com.br/2016-dez-18/processo-familiar-sistema-adocao-brasil-cruel-criancas-adolescentes

O fim negativo do contrato de consumo e os efeitos do inadimplemento

Todo contrato celebrado destina-se ao cumprimento. Na célebre afirmação doutrinária, as obrigações tendem ao adimplemento. É o fim a que devem servir. Ocorre que nem sempre tudo ocorre como esperado, e não raras vezes o contrato celebrado não chega ao adimplemento. Nessas situações, se pode falar do fim negativo do contrato (ao contrário do seu fim positivo, que seria o cumprimento). Esta expressão “fim negativo”, embora não seja de melhor técnica, é bastante didática, ao indicar as situações em que não ocorre a prestação ajustada pelos contratantes, seja em razão de inadimplemento imputável ao devedor, ou outras situações previstas na legislação.
Nos contratos de consumo, há inúmeras situações em que o contrato deixa de ser cumprido pelas partes, dando causa à sua extinção, mediante exercício do direito de resolução pelo credor quando ocorre, propriamente, o inadimplemento, ou, ainda, em razão de situações que a própria lei define um direito à resilição unilateral (caso do direito de arrependimento, previsto no artigo 49 do CDC), ou subordine seus efeitos a condição suspensiva (caso da venda a contento ou sujeita a prova, prevista nos artigos 509 e 510 do Código Civil). É muito comum, nesses casos, ocorrer a incidência comum de institutos próprios do Direito do Consumidor e outros do Direito Civil, exigindo redobrada atenção quanto aos limites de sua aplicação em acordo com a o caráter de ordem pública das normas protetivas do CDC[1], e o respeito à autonomia privada dos contratantes.
No caso de inadimplemento contratual, o CDC basicamente limita seus efeitos quando o inadimplente for o consumidor. Seu artigo 52, parágrafo 1°, expressamente limita as multas de mora, definindo que não poderão ser superiores a 2% do valor da prestação. Da mesma forma, o artigo 53 do CDC não permite as chamadas cláusulas de decaimento, como são conhecidas aquelas que estabelecem a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.
Em ambos os casos, orientou-se o CDC, segundo uma tendência também percebida nas relações civis, de limitar e controlar seus efeitos, de modo que não deem causa a um enriquecimento excessivo do credor[2]. Naturalmente que o fez com maior intensidade no caso da multa moratória (ou cláusula penal moratória), cujo limite, na legislação civil, é definido até o valor da prestação principal (artigo 412 do Código Civil), impondo ademais, ao juiz, o dever de sua redução quando reputada excessiva (artigo 413 do Código Civil). Não é desconhecida, nesse particular, que a estrita limitação da cláusula penal, embora encontre plena justificativa nos contratos civis e de consumo, observa críticas em relação aos contratos empresariais. Sobretudo em vista das funções que lhe são normalmente reconhecidas, como de estímulo ao cumprimento da obrigação e de pré-estimação dos danos[3].
Ocorre que, ao lado desses institutos, a criatividade negocial — porque não dizer, a partir de uma inteligente estratégia jurídica de certos fornecedores — vem dando uso a outros figuras típicas do Direito Privado, para definirem efeitos distintos no caso do contrato de consumo não chegar a seu fim positivo, o adimplemento.
A primeira delas diz respeito às arras, instituto de tradição milenar e amplamente utilizada em certos contratos civis, especialmente nas promessas de compra e venda de imóveis. Como se sabe, a cláusula penal e as arras são institutos que tem semelhanças quanto a certas funções que desempenham, mas com substanciais diferenças em relação à sua estrutura. As arras consistem na entrega, a um dos contraentes, de determinada coisa (normalmente, certa quantia em dinheiro), no momento de celebração de contrato ou pré-contrato, visando demonstrar a existência do acordo (daí denominar-se também sinal), antecipar ou garantir seu cumprimento, ou ainda, assegurar possibilidade de arrependimento. Quando se tomam as arras em sua função de garantia ou reforço do acordo, conforme se apresentavam no Direito Romano[4], percebe-se pontos de contato com a cláusula penal. O princípio é simples: se quem deixou de realizar a prestação foi quem prestou as arras, irá perdê-las em favor do outro contratante. Porém, se quem deixou de cumprir foi quem recebeu as arras, deverá devolvê-las, acrescidas do seu equivalente (as arras confirmatórias, do artigo 418 do Código Civil). Como regra, as arras não excluem a possibilidade daquele que sofre com o inadimplemento exigir indenização suplementar, se provar que os danos sofridos são superiores ao valor prestado. A não ser que seja convencionada expressamente a possibilidade de arrependimento (artigo 420 do Código Civil), hipótese em que as arras se consideram com natureza indenizatória, afastando-se indenização suplementar (as arras penitenciais). É promessa de prestação condicionada ao inadimplemento[5]. Uma vez prevista na obrigação, terá seus efeitos subordinados à condição do inadimplemento do devedor.
A utilização das arras nos contratos de consumo se dá com frequência em relação aos contratos de promessa de compra e venda de bens imóveis, em que o consumidor promete adquirir da incorporadora seu imóvel residencial. Ocorre que, mesmo nesses casos, a jurisprudência, ao reconhecer a possibilidade de que seja convencionada, também controla seus efeitos, especialmente para evitar a perda, pelo consumidor, de parte substancial do que já tenha pago até a resolução do contrato. Há, nesse caso, um controle de proporcionalidade pelo Poder Judiciário, em especial para assegurar o cumprimento do artigo 53 do CDC, que proíbe as cláusulas que imponham a perda total das prestações pagas[6].
Mais recentemente, viu-se que as arras passaram a ser utilizadas também na aquisição de bens móveis de maior valor, em especial automóveis recém-lançados, cuja encomenda pelo consumidor condiciona-se ao pagamento de arras. A princípio, não há regra que impeça a prática, desde que se trate de compra e venda presencial, na concessionária, por exemplo, e sempre considerando a proporcionalidade assegurada pelo artigo 53 do CDC. Em sentido contrário, não pode ter lugar as arras ou retenção de pagamento a qualquer título, quando se trate de contratos sobre os quais incidam o artigo 49 do CDC. Para compras feitas fora do estabelecimento comercial, inclusive aquelas feitas pela internet, assegura-se o direito de arrependimento do consumidor no prazo de sete dias, para os quais não deve ser admitida limitação de qualquer espécie.
Outra situação que merece atenção é o chamado abono de pontualidade. Embora não diga respeito ao fim negativo propriamente dito, uma vez que, em regra, tem lugar em contratos de duração, enfrenta séria discussão sobre sua conformidade ou não com as normas do CDC.
Pode ocorrer de, por livre convenção das partes, e visando assegurar a diligência do devedor na realização da prestação devida no tempo ajustado, que se convencione espécie de desconto ou abono, como estímulo ao cumprimento. É convenção que resulta do exercício da autonomia privada. Nesse sentido, o valor da prestação principal será reduzido se o devedor atenda a determinada condição que, normalmente, é seu pagamento até determinada data estipulada na obrigação. Nesse sentido é de reconhecer, conforme o interesse das partes, que as fórmulas de incentivo à pontualidade tanto podem conformar o desconto para o adimplemento pontual, quanto definir valores distintos da contraprestação como forma de estimular certo tempo de cumprimento. Quem pretende receber pontualmente pode, da mesma forma, comprometer-se a contraprestar com acréscimo, no caso do atendimento dessa condição.
Controversa é a possibilidade de utilização do abono de pontualidade como espécie de cláusula penal oculta ou disfarçada. O argumento, nesse caso, é que o desconto oferecido para pagamento na data ajustada a rigor disfarçaria eventual cláusula penal superior ao limite legal no caso de pagamento após o vencimento, como efeito da purga da mora. Nos contratos de consumo, o limite legal de 2% do valor da prestação principal, no caso de cláusula penal moratória, é impositivo. Assim, por exemplo, suponha-se uma obrigação de cumprimento diferido, na qual a parcela periódica a ser adimplida é de R$ 100, com vencimento no dia 30 de cada mês. Todavia, para quem pague antes, ou até o vencimento, se estipula abono de 10%. Logo, quem faz o pagamento até o dia 30 deverá prestar, na verdade, R$ 90. Já o devedor que cumpra um dia depois não fará jus ao abono, pagando os R$ 100, mais os efeitos da mora. A diferença de valor da prestação para o devedor em mora, superará 10%, o que — segundo esse raciocínio — violaria a lei. O STJ ao decidir questão semelhante entendeu pela licitude do abono de pontualidade como espécie de sanção premial, incentivando o comportamento diligente do devedor[7].
De fato, não há razão em sustentar-se a proibição do abono de pontualidade. E aqui nem se precisa argumentar em excesso. Não há proibição, porque não há lei que o faça, prevalecendo, no plano obrigacional, o predomínio da autonomia privada. O que se pode cogitar é que, em certas situações, a convenção do abono de pontualidade com o propósito de burlar limite legal impositivo ao valor da cláusula penal, possa configurar fraude à lei, dando causa a sua nulidade (artigo 166, VI). Daí porque outra solução indicada pela jurisprudência é a restrição de cumulação, para o inadimplemente, dos efeitos próprios do inadimplemento e da cláusula penal moratória[8], ou ainda sua incidência sobre o valor com desconto[9].
Por fim, mencionem-se as cláusulas de limitação ou exclusão de responsabilidade. Como regra, são expressamente proibidas nos contratos de consumo, em acordo com o que estabelece o artigo 25 do CDC, ao estabelecer: “É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas seções anteriores”. No artigo 51, I, do CDC, todavia, admite-se a possibilidade da convenção de cláusula limitativa de indenização, quando se trate de consumidor pessoa jurídica, em situações justificáveis. A determinação do que sejam essas situações justificáveis, confia-se à concretização judicial. Alguns critérios úteis, todavia, serão a identificação, em concreto, do poder de barganha da pessoa jurídica consumidora, a possibilidade que teve de vistoriar, antes, os produtos adquiridos, não reclamando vícios aparentes; ou a vantagem que tenha obtido em razão do contrato, nas condições específicas em que foi celebrado[10].
De tudo se vê que a criatividade negocial, útil ao desenvolvimento do mercado, em relação aos contratos de consumo deve respeitar o necessário equilíbrio entre o exercício da autonomia privada dos contratantes e o balizamento definido pelas normas de ordem pública estabelecidas no CDC.

[1] Bruno Miragem. Curso de Direito do Consumidor, 6ª ed. São Paulo, 2016, p. 68.
[2] Bruno Miragem. Direito Civil: Direito das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2017, no prelo; Karl Larenz, Derecho de obligaciones, t. I. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1958, p. 371; Denis Mazeaud, La notion de clause pénale. Paris: LGDJ, 1992; Isabel Espín Alba, La cláusula penal. 1997, Madrid: Marcial Pons, p. 95 e ss.
[3] Bruno Miragem. Direito Civil: Direito das Obrigações. São Paulo: Saraiva, cit.
[4] Max Kaser; Rolf Knütel, Römisches privatrecht. 20 aufl. München: C.H.Beck, 2014, p. 241-242; Biondo Biondi, Istituzioni di diritto romano. 4ª ed. Milano: Giuffrè, 1972, p. 448-449; Reinhard Zimmermann, The law of obligations. The roman foundation of the civilian tradition. New York: Oxford University Press, 1996, p. 230 e ss.
[5] Francisco Cavalcante Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado, t. XXVI. São Paulo: RT, 2012, p. 145.
[6] Assim o REsp 355.818/MG, rel. min. Aldir Passarinho Júnior, 4ª Turma, j. 22/4/2003, DJ 25/8/2003; REsp 1056704/MA, rel. min. Massami Uyeda, 3ª Turma, j. 28/4/2009, DJe 4/8/2009; AgRg no REsp 1.222.139/MA, rel. min. Massami Uyeda, 3ª Turma, j. 1/3/2011, DJe 15/3/2011. Sobre a impossibilidade de retenção quando tenha sido o vendedor quem deu causa ao descumprimento: AgRg no REsp 997.956/SC, rel. min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. 26/6/2012, DJe 2/8/2012.
[7] STJ, REsp 1.424.814/SP, rel. min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. 4/10/2016, DJe 10/10/2016.
[8] TJ-SP, ApCiv 10256919020148260007, rel. Ruy Coppola, 32ª Câmara de Direito Privado, j. 17/9/2015, DJ 18/9/2015; TJ-SP, ApCiv 00051775920118260001, rel. Vianna Cotrim, 26ª Câmara de Direito Privado, j. 18/12/2013, DJ 18/12/2013; TJ-SC, ApCiv 20120291749, 5ª Câmara de Direito Civil, rel. Henry Petry Junior, j.12/9/2012. Na doutrina, alinha-se com esse entendimento, Carlos Roberto Gonçalves, Curso de Direito Civil Brasileiro, v. 2. Teoria geral das obrigações. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 425.
[9] REsp 832.293/PR, rel. min. Raul Araújo, 4ª Turma, j. 20/8/2015, DJe 28/10/2015.
[10] Bruno Miragem. Direito Civil: Direito das Obrigações, cit.
Bruno Miragem é advogado e professor dos cursos de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Presidente nacional do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).
Revista Consultor Jurídico, 23 de novembro de 2016, 8h05
http://www.conjur.com.br/2016-nov-23/garantias-consumo-fim-negativo-contrato-consumo-efeitos-inadimplemento