domingo, 16 de abril de 2017

Cabe ao direito estabelecer os limites da ciência

Quando ouvi o ministro Carlos Ayres Britto aludir à falta de cérebro, no embrião, para concluir pelo seu uso em pesquisas; quando a ministra Ellen Gracie se referiu à falta de nidação como elemento de convicção, no mesmo sentido; e, por fim, quando o ministro Celso de Mello invocou o benefício de tantas pessoas - lembrei-me de todos os estudos que vimos procedendo na disciplina biodireito constitucional, na PUC-SP. 

O que define o ser humano não incide unicamente no cérebro ou no coração, ou em qualquer dos seus órgãos, senão no sistema de órgãos e funções, conexos e orientados para uma finalidade comum: viver uma vida. Assim, poder-se-ia perguntar: Então, onde está o cérebro do embrião? Terá de ser-lhe colocado, em algum momento? E o coração? E a estrutura óssea? Onde estão para que possa tê-los? Tudo está... no próprio embrião, nele mesmo: durante o processo vital a que alude o jurista José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo), ninguém deverá ir colocando o que quer que seja: tudo está contido no óvulo fecundado ou no embrião. Basta deixar sucederem-se as fases do processo e ter-se-á tudo pronto, completo, segundo a ordem do tempo.

É o que faz com que afirme o jurista italiano Franco Bartolomei (La Dignitá Umana come Concetto e Valore Costituzionale): "O óvulo fecundado não é coisa, criatura inferior, mas homem, pessoa - tertium non datur. A antecipação da tutela da vida e da dignidade humana a esta primeiríssima forma de vida é imposta pela Constituição". 

Viver uma vida... E o que é vida? Na acepção comum, registra o dicionário Aurélio, "é o conjunto de propriedades pelas quais animais e plantas, ao contrário dos organismos mortos ou em matéria pura, se mantêm em contínua atividade, manifestada em funções orgânicas, tais como: o metabolismo, o crescimento, a reação a estímulos, a adaptação ao meio, a reprodução e outras". 

No sentido jurídico, o mesmo José Afonso da Silva esclarece: "Vida, no texto constitucional (art. 5º, caput), é um processo vital que se instaura com a concepção, transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que muda de qualidade, deixando, então, de ser vida para ser morte". E ressalva: "Tudo que interfere em prejuízo deste fluir espontâneo e incessante contraria a vida". Ou seja, tudo que interfere nesse processo vital contraria a Constituição, que é expressa em determinar, no aludido art. 5º: "garantindo-se a inviolabilidade do direito à vida". A quem se refere a expressão "garantindo-se"? À Constituição, ela mesma, e com ela (e por causa dela) os Poderes Públicos, os cidadãos brasileiros e todas as pessoas no território nacional.

 A pergunta seguinte é: o embrião é humano? Está vivo? Ambas as respostas serão, inequivocamente, afirmativas, senão a lei não disporia sobre eles. Se afirmativas, aos embriões humanos estende-se o direito à vida. É o que diz a Constituição. No curso destas ponderações já vimos percebendo que o que foi manifestado, até agora, no Supremo Tribunal refere-se à natureza do processo (fase, nidação) e não à essência (humano, vivo).

O filósofo Jürgen Habermas (O Futuro da Natureza Humana) refere momentos significativos da mesma questão: quando o presidente da Alemanha advertiu, em discurso de 2001: "Quem começa a fazer da vida humana um instrumento e a distinguir entre o que é digno ou não de viver, perde o freio". Assim, o uso da balança do valor das vidas humanas (pré-pessoais/pessoais) fazendo pender para um dos lados ("o que é bom para nós", no dizer de Habermas) demonstra logo a falta de harmonização ("o que é bom para todos") dos valores sopesados, de nítido critério utilitarista ou instrumental. Ainda mais considerando que uma das partes (embriões) não detém o poder da manifestação e da autodefesa - situação intolerável para o direito, nem sequer o direito de viver e ser.

 Minha impressão é que, até o século 20, o homem voltou-se para a conquista do entorno, o que culminou com a energia nuclear, incontrolável; agora, volta-se para o domínio do corpo humano. Até onde poderá chegar? Cabe ao direito estabelecer os limites da ciência. 

Essas reflexões trazem a lembrança do texto de Kafka no "O Processo", o homem diante da porta da lei (a Constituição é a Lei): "Diante da lei está um porteiro. Um homem do campo dirige-se a este porteiro e pede para entrar na lei. Mas o porteiro diz que agora não pode permitir-lhe a entrada. O homem do campo reflete e depois pergunta se não pode entrar mais tarde. "É possível, diz o porteiro, mas agora, não". E, no final: "O porteiro percebe que o homem já está no fim e, para ainda ser ouvido, ele grita: Ninguém mais do que Você tinha o direito de entrar aqui pois esta entrada estava destinada a Você; agora eu me retiro e fecho-a?".

Teremos entrada na Constituição? Acima de tudo, todavia, é necessário ficar claro, conforme duas frases da juíza Jutta Limbach, ex-presidente da Suprema Corte Alemã que (1) "A Ciência do Direito não é competente para responder à questão sobre a partir de quando começa a vida humana" e (2) "As ciências naturais, em virtude do seu conhecimento, não estão em condições de responder à questão a partir de quando a vida humana deve ser colocada sob a proteção da Constituição". Cabe, apenas, cumprir a Constituição e esta garante a inviolabilidade desse direito, sem distinções, onde haja o bem jurídico vida. 

*Maria Garcia é livre-docente em direito do Estado, professora de direito constitucional e educacional pela PUC-SP

Publicado no "O Estado de S.Paulo" em  10 Março 2008.
http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,cabe-ao-direito-estabelecer-os-limites-da-ciencia,137286