domingo, 14 de maio de 2017

Perco a pensão por morte se casar de novo?

Publicado por Melina Lima

Não é raro haver questionamentos acerca da pensão por morte, principalmente nos casos em que viúvas/viúvos recebem esse tipo de pensão e se casam novamente.

Há um mito de que se perde a pensão por morte caso a viúva ou viúvo venha a contrair um novo matrimônio. Isso não é verdade.

De acordo com a legislação atual que regula os benefícios previdenciários do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) não há previsão legal de que a pensão por morte seja cancelada quando a viúva vier a se casar ou mantiver uma união estável. Esse raciocínio é aplicável também para os homens e para as uniões homo afetivas.

O benefício pensão por morte é concedido pelo INSS aos dependente do segurado falecido, correspondente ao valor de 100% da aposentadoria que receberia ou teria o direito de receber caso o segurado falecido viesse a se aposentar por invalidez.

Dessa forma, ao se relacionar novamente, a pensionista pode formalizar a relação perante a lei sem receio de perder a pensão por morte deixada pelo primeiro marido. Porém, caso o segundo marido venha a falecer também, nesse caso, a viúva terá que optar por qual pensão deseja receber.

Não é possível acumular duas pensões por morte proveniente de companheiros falecidos. Nesse ponto, a lei é clara ao proibir o acúmulo de pensões por cada viuvez, por isso, deverá escolher qual é a mais vantajosa, ou seja, a de maior valor.

Recentemente alterou-se a legislação previdenciária no que tange a vitalidade da pensão por morte. Agora, a pensão por morte será vitalícia para a viúva com 44 anos de idade ou mais, desde que o óbito tenha ocorrido a partir do segundo ano de relacionamento.

Sendo assim, para verificar quanto tempo receberá a pensão por morte é preciso verificar na tabela abaixo[1]:



Inclusive, pelas leis atuais, é possível acumular aposentadoria com a pensão por morte do companheiro falecido. Porém, é válido lembrar que a proposta da Reforma da Previdência prevê mudanças nesse sentindo e caso seja aprovada no Senado e no Congresso, provavelmente tal acúmulo terá um limite de valor.

Dra. Melina Lima e Dra. Thais Bonini

[1] FONTE: http://www.tvreplay.com.br/jornalismo/senado-aprova-mp-altera-regras-de-pensao-por-morte-auxilio-doenca-fator-previdenciario/

https://melina92.jusbrasil.com.br/artigos/457496935/perco-a-pensao-por-morte-se-casar-de-novo?utm_campaign=newsletter-daily_20170512_5273&utm_medium=email&utm_source=newsletter

Contrato de gaveta de imóveis e veículos - possibilidade jurídica e problemas envolvidos.

Abordaremos nesse artigo as possibilidades jurídicas, e também as consequências, da prática comum no Brasil da compra e venda de bens, móveis e imóveis, por meio dos chamados "Contratos de Gaveta".

Ainda dentro da série de artigos intitulada “Não Perca seu Imóvel” (e sabemos que não estamos cumprindo, de forma rigorosa, o prazo que nos impusemos na primeira coluna aqui publicada sobre esse tema) falaremos um pouco sobre os contratos de gaveta.

A prática do contrato de gaveta, no Brasil, é algo bastante disseminado, seja por conta de dificuldade de crédito para adquirir o bem [a prazo] por parte do devedor, seja, também, pela grande burocracia envolvida, principalmente no caso de bens imóveis, cujos custos de transferência, em regra, são bastante elevados.

No que consiste: na hipótese de comprar um carro, ou um imóvel financiado, o novo comprador (chamado de gaveteiro) faz um contrato particular com o vendedor (aquele que fez o financiamento em seu nome) e assume a obrigação dos pagamentos das parcelas em carnê para o Banco e/ou depositá-las em conta corrente no caso de débito em conta.

A relação jurídica originária (isto é, Instituição Financeira e Mutuário – no sentido de tomador do empréstimo –) permanece inalterada, à exceção de que o gaveteiro sub-rogou-se nos direitos e obrigações do Mutuário.

A jurisprudência, seja por conta de uma interpretação direta do Código Civil, seja da Constituição, seja da própria Lei 10.150/2.000, vem reconhecendo a legitimidade do gaveteiro para, inclusive, postular em Juízo a redução dos juros contratados pelo Mutuário contra a Instituição Financeira[1].

Contudo, devemos aqui, necessariamente fazer uma ressalva: em que pese o contrato de gaveta seja amplamente aceito legal, doutrinária e jurisprudencialmente, podemos afirmar (indubitavelmente) que o mesmo é uma fonte inesgotável de dores de cabeça.

Não são raros os casos do Mutuário (após ter cedido ao gaveteiro – de modo semiformal – seus direitos) ao ver se processado por um débito cível ou trabalhista, ao ter que indicar um bem à penhora, indicar, exatamente, o bem que vendera ao cessionário (visto que, sob o aspecto registral, ele ainda é o proprietário do mesmo). Tivemos alguns casos de Embargos de Terceiro assim no escritório, e, em que pese tenhamos ganhado todos, nossos clientes, os gaveteiros, tiveram que arcar com os custos de um processo judicial e – eventualmente – de fazer um acordo para livrarem-se do problema judicial.

Também não é incomum o gaveteiro deixar de cumprir com as obrigações financeiras inerentes ao bem adquirido e o mutuário surpreender-se com uma penhora on-line, seja por um débito condominial, seja por uma execução hipotecária, além do lançamento (devido, sob o aspecto legal) do seu nome no SERASA e demais órgãos de proteção ao crédito.

No caso de veículos automotores, a situação fica ainda mais delicada uma vez que o proprietário de um bem responde pelo eventual prejuízo que estes causem a terceiros. Mais ainda, há juristas que entendem que o Novo Código de Processo Civil abriu a possibilidade de o devedor de alimentos oriundos de ato ilícito ser preso civilmente para que seja coagido a cumprir a obrigação.

Noutras palavras, se você, caro leitor, vender um carro a alguém, financiado em seu próprio nome, e este alguém atropelar e matar alguém (e nesses casos as indenizações, por menor que seja o salário da vítima, costumam ser altíssimas), você não apenas poderá ser instado judicialmente a arcar com a indenização (e, observemos que para esse tipo de situação a Lei do Bem de Família é inaplicável), como, também, poderá ser preso civilmente por até 90 dias em razão do não cumprimento da obrigação.

Assim, ante o exposto, embora o contrato de gaveta seja algo permitido (expressamente, diga-se de passagem) pelo Ordenamento Jurídico Brasileiro, ele não é, em hipótese alguma, recomendável.
NOTA

[1] Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, apelação número: 0171416-81.2010.8.26.0100.

PAPINI, Paulo Antonio. Contrato de gaveta de imóveis e veículos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5063, 12 maio 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/57614>. Acesso em: 14 maio 2017.

Pastor pode responder por lavagem de dinheiro ao receber doação de origem ilícita?

A pergunta do pastor

Breve artigo sobre deveres que recaem sobre instituições religiosas que recebem donativos, especialmente aqueles oriundos da boa-fé objetiva e da vedação do abuso do direito.

A notícia foi destaque na imprensa brasileira: conhecido pastor evangélico fora indiciado pela Polícia Federal por suposto envolvimento em esquema criminoso de lavagem de dinheiro.[1] Não adentrando a celeuma criminal que circunda o caso, este artigo pretende extrair de uma das falas de defesa do líder religioso aspectos relevantes na dinâmica de recebimento de donativos por igrejas, apontando elementos de ponderação cuja ausência pode evidenciar a ilegitimidade do ato de receber dízimos e ofertas.

Explicando a origem do dinheiro recebido, o líder religioso argumentou: (...) Recebi uma oferta de R$ 100 mil, de um membro da igreja do meu amigo (...). Não sei e não conheço o que ele faz. Tanto é que o cheque foi depositado em conta. Por causa disso, sou ladrão? Sou corrupto? Recebo ofertas de inúmeras pessoas (...). Declaro no imposto de renda tudo o que recebo.[2] Quer dizer que se alguém for bandido e me der uma oferta, sem eu saber a origem, sou bandido? (...)[3] negrito nosso

Esperando que passado o calor que notícias como essas provocam na opinião pública[4], aqui se intenta um debate que, para longe dos aspectos criminais do caso, repita-se, busque responder justamente a essa última questão levantada pelo pastor e pondere acerca de possíveis deveres que surgem para a igreja ao receber doações.

De pronto cumpre destacar que a prática de pedir, receber e fazer donativos religiosos encontra guarida na Constituição Federal, que assegura a liberdade religiosa em suas diversas dimensões. O ato reflete a liberdade de crença, já que o fiel é livre para acreditar em preceitos sagrados, adotando assim uma concepção de fidelidade do homem para com Deus conforme a convicção formada por sua percepção da divindade (WEINGARTNER NETO, 2007, p. 113-114). Também é refletida a liberdade de culto, na medida em que doar representa forma de externalização da crença, e é claramente uma dessas condutas de motivação religiosa (WEINGARTNER NETO, 2007, p. 121-122). E também acaba sendo expressão da liberdade de organização religiosa, por ser realizada nesse espaço de exercício coletivo da crença e em função da própria manutenção das obras religiosas, revelando-se direito subjetivo das igrejas, conforme uma dimensão coletiva da liberdade religiosa (WEINGARTNER NETO, 2007, p. 73-74).

O amplo respeito a essa forma de exercício da liberdade religiosa também é previsto na Declaração Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou Crença, proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas (ONU) em novembro de 1981. O Documento da ONU buscou determinar o alcance da liberdade religiosa, não de forma exaustiva, como seria contraditório querer fazer, mas assegurando, dentre outras práticas religiosas, a liberdade de solicitar e receber contribuições voluntárias financeiras e de outros tipos (SANTOS JUNIOR, 2007. p. 54).

Na esfera civil, alguns doutrinadores diferem quanto à natureza jurídica dos donativos religiosos (cf. FERREIRA, 2013. p. 36). Ao conceituar doação, o civilista Paulo de Tarso Sanseverino, por exemplo, coloca os donativos às entidades religiosas ao lado daqueles que se faz a hospitais e asilos, e ainda dos atos de liberalidade dos pais aos filhos, considerando a todos eles espécies de doação típica (SANSEVERINO, 2011. p. 66). Arnaldo Rizzardo, por sua vez, não considera os donativos de conteúdo religioso como tipos de doação, e sim apenas liberalidades, os chamando também de donativos, mas com uma valoração diferente daquela feita por Sanseverino (RIZZARDO, 2010. p. 441). Caio Mário também não considera donativos religiosos como forma de doação, pois entende que estariam ausentes os requisitos próprios desse tipo de contrato, classificando-os apenas como atribuições gratuitas (PEREIRA, 2011. p. 208).

A determinação da natureza jurídica dos donativos religiosos pode ter influência na solução de conflitos que surjam dessa prática. Todavia, certos deveres se levantam aos partícipes dessa dinâmica, sejam as oblações reconhecidas como doação típica ou como manifestação de crença qualificada conforme o subtrato constitucional da liberdade religiosa.

Nessa tarefa de identificar deveres que surgem para quem recebe doações, e até possíveis abusos na relação entre igrejas e fieis, salutar compreender que o ato de doar, conforme estabelece o artigo 541 do Código Civil, é essencialmente formal, deverá ser feito por escritura pública ou instrumento particular. Essa é a regra geral quanto à doação: solenidade do ato (GAGLIANO, 2007. p. 17-19). Não se pode negar, porém, que sendo a doação caracterizada muito mais por sua própria natureza que pelo revestimento externo do ato (GAGLIANO, 2007. p.18), um juízo de razoabilidade poderá ser evocado para se concluir que o negócio jurídico em questão fora ou não realizado regularmente (FARIAS; ROSENVALD, 2014. p. 683). Nesse sentido, é de se observar a previsão do parágrafo único do artigo 541 do Código Civil, que autoriza a doação verbal em caso de bens móveis de pequeno valor, se lhes seguir de imediato a tradição, é a chamada doação manual (GAGLIANO, 2007. p. 17-19).

No recorte que aqui se busca, as ofertas religiosas, na maioria dos casos, se enquadram nas hipóteses de doação manual, já que geralmente são oferecidas no momento do culto por meio da entrega imediata de um montante em dinheiro, circunstâncias que os caracterizam como de pequeno valor (FARIAS; ROSENVALD, 2014. p. 683). Não haveria nesse ponto um formalismo determinante da validade da doação, bastando a entrega do numerário, já que, em última análise, o ato, como já dito, caracterizar-se-á muito mais por sua própria natureza que pelo seu revestimento externo (GAGLIANO, 2007. p. 18).

Evidentemente que se a oferta à igreja for de um imóvel, de um carro ou de um montante maior em dinheiro, por exemplo, a doação deverá se revestir das formas determinadas para a validade e a consolidação do tipo de negócio.[5] Não é outra a perspectiva adotada em um julgado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal no qual uma fiel ajuizou ação de anulação de doação de R$ 74.341,40 (setenta e quatro mil, trezentos e quarenta reais) que fizera ao pastor de certa igreja.[6]

Para o caso que ora se comenta, aqui se estabelece um ponto que merece atenção: para uma doação de R$ 100.000,00 é suficiente a emissão de um cheque? A cártula atenderia a exigência do instrumento particular previsto no artigo 541 do Código Civil? Prima oculi não parece ser caso de espécie de doação manual, especialmente pelo montante elevado. De todo modo, sempre é possível argumentar que o ato foi válido por atender aos objetivos pretendidos e ao contexto próprio do exercício da liberdade religiosa. Todavia, eventual desvirtuamento da liberdade religiosa talvez exija a análise de outros elementos.

Nessa senda de ponderar sobre a forma necessária (ou não) para a perfeição do ato de doar, outra característica importante nessa tentativa de vislumbrar deveres que se levantam para as instituições religiosas é a aceitação. Esse é o elemento determinante para a corrente que classifica a doação como contrato. Aquele a quem se destina a doação precisa aceitar a liberalidade, expressa ou tacitamente, de outro modo o ato não se perfaz, não se convalida (RIZZARDO, 2010. p. 442-443). Ainda que parte da doutrina entenda que a aceitação tenha deixado de compor o conceito de doação, já que o Código Civil prevê hipótese em que a aceitação é dispensada (v.g. doação a incapaz), é certo que ela constitui elemento do suporte fático da maioria dos contratos dessa natureza (SANSEVERINO, 2011. p. 75).

Adotando a premissa de que a aceitação da doação poderia servir a eventual controle das razões finalísticas do ato – por exemplo, o donatário poderia recusar a doação feita por um inimigo seu para não ficar em dívida moral com ele – no caso das ofertas religiosas ela pode ganhar uma relevância fundamental para o espectro deste brevíssimo estudo.

Na ótica religiosa, é certo que há um convite quando a igreja incentiva os atos de fé na forma de ofertas. A igreja pede as doações, o fiel atende ao pedido e entrega. Essa dinâmica se amolda ao suporte fático esquematizado por Pontes de Miranda, segundo quem o contrato de doação poderia se realizar não apenas com a oferta do doador e a aceitação do donatário, mas também com a oferta do donatário (pedido da igreja), a entrega pelo doador (oferta do fiel), seguida do recebimento, que significaria a aceitação pelo donatário (MIRANDA, 2012. p. 277).

Aquela manifestação prévia da igreja (o pedido) não afasta, como se percebe, a necessidade da aceitação do donativo. E é nesse momento que a igreja pode (deve) exercer espírito de cautela e cuidado, com a possibilidade de recusa de certos donativos que possam apresentar algum tipo de mácula ou disfunção. Segundo a ética que se espera de qualquer culto, não seria bem visto, por exemplo, o recebimento de ofertas oriundas do tráfico de drogas, ainda que sob algum tipo de argumento de que a liberalidade configuraria expiação pelo pecado cometido pelo doador. De modo que assim como se exige dever de cuidado com a sanidade financeira do crente[7], às igrejas se impõe dever de cuidado com sua própria imagem e reputação, bem como com a sanidade da relação que elas, as igrejas, mantém com o corpo social. Resta evidente, assim, que a aceitação pode significar momento propício a uma orientação religiosa responsável, e à manifestação do compromisso da instituição religiosa com o bem-estar dos crentes e com a ordem social.

Não parece haver espaço para refutar essa certeza: há vícios que podem contaminar o recebimento de doações pelas igrejas, o próprio ato de receber pode ser maculado.[8] Não se fala aqui de condutas criminosas necessariamente. A bandeira da liberdade religiosa se mostra larga o suficiente para esconder desvios de toda sorte sob seu pano (FERREIRA, 2013, p. 58). É certo que uma forma legítima de exercício de um direito subjetivo pode ultrapassar certos limites. É a ideia elementar do conceito de abuso do direito, na medida em que o ato pode se mostrar perfeito na aparência, legítimo enquanto expressão de direito, mas se reveste de antijuridicidade do ponto de vista valorativo, funcional (FIUZA; et al. 2009, p. 359-360). Essa conformação do abuso do direito pode não decorrer exatamente de uma afronta à lei, mas pode advir de uma desconformidade da conduta com um padrão jurídica e socialmente esperado (FIUZA; et al. 2009, p. 369), como decorre, por exemplo, na violação da boa-fé objetiva.

Historicamente, a concepção da boa-fé remonta às lições de Aristóteles sobre amizade, a philia, qualificada como virtude e uma das exigências imprescindíveis da vida e dos relacionamentos humanos, prospectando uma interação subjetiva desprovida de toda intenção de prejudicar, e marcada pela reciprocidade, pela espontaneidade, pelo auxílio mútuo, pela confiança e pela igualdade, como se espera de pessoas virtuosas (GONÇALVES, 2008, p. 37-38). Fato é que a boa-fé é noção jurídica tão antiga quanto o próprio Direito se revela forma de organização social, trazendo a idéia de uma conduta leal e confiável, que integra a própria essência do Direito (NEGREIROS, 1998, p. 1-2).

A boa-fé objetiva comporta-se como vetor que orienta o conteúdo das relações patrimoniais, superando a simples vontade das partes, justamente porque maximiza a cooperação que deve existir entre os envolvidos, e aponta para a função social que deve ser atendida, segundo valores e interesses delimitados pela Constituição (NEGREIROS, 1998, p. 185-193). Nesse quadro principiológico constitucional, a pessoa humana é vista no ápice valorativo do sistema jurídico, ganhando função de suporte desse cenário o dever de solidariedade, que se solidifica na cooperação entre quem se relaciona (NEGREIROS, 1998, p. 252). Não se deve olvidar a projeção de certas condutas na comunidade em geral, tendo por certo que o direito subjetivo, antes de ser um poder, se apresenta como função, prerrogativa conferida à pessoa para que possa auferir todos os proveitos que a lei lhe confere, mas desde que não ofenda aos interesses da comunhão social (DANTAS JUNIOR, p. 260-263)

Retornado à pergunta do pastor, então – “Quer dizer que se alguém for bandido e me der uma oferta, sem eu saber a origem, sou bandido?” – talvez se possa concluir que, a despeito da caracterização de crime depender de elementos que aqui não se cuidou, a boa-fé objetiva e a vedação do abuso do direito prospectam deveres que exigem sim que a instituição religiosa tenha uma postura de cuidado com a forma como pede e recebe donativos. Assim como ofertas oriundas do tráfico de drogas não se coadunam com a ética que se espera das comunidades religiosas, o dinheiro advindo da corrupção, mal tão ou mais vil que o primeiro, não se alinha ao padrão de conduta que a sociedade espera de uma igreja.

Sem com isso afirmar que houve ou não algum ilícito no caso em questão, é necessário que um líder religioso saiba sim, na medida do razoável, de onde vem uma doação de R$ 100.000,00; afinal, ainda que seja imprescindível para as obras religiosas, o recebimento de ofertas não é (deveria ser) exatamente o objetivo primeiro de uma instituição religiosa. Essa cautela preserva não só a confiança depositada por cada fiel, mas também aquela recebida da sociedade, homenageando de forma concreta o valor comunitário veiculado pelo próprio princípio da dignidade humana (BARROSO, 2014, p. 979-980).

BIBLIOGRAFIA

BARROSO, Luís Roberto. Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: natureza jurídica, conteúdos mínimos e critérios de aplicação. in LEAL, Pastora do Socorro Teixeira (coord.). Direito Civil Constitucional e outros Estudos em Homenagem ao Prof. Zeno Veloso. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014.
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CARVALHO NETO, Inácio de. Abuso de Direito. Curitiba: Juruá, 2009.
DANTAS JUNIOR, Aldemiro Rezende. Teoria dos Atos Próprios no Princípio da Boa-fé. Curitiba: Juruá, 2007.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil, 4: contratos, teoria geral e contratos em espécie. 4ª ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2014.
FIUZA, César; BRITO, Lucas Pimenta de Figueiredo. Para uma Compreensão Integral do Abuso de Direito no Contexto da Responsabilidade Delitual e da Boa-fé Objetiva. in FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Direito Civil: atualidades III, princípios jurídicos no direito privado. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.
FERREIRA, Natanael Alves. A Boa-Fé Objetiva Como Elemento de Restrição da Liberdade Religiosa. Brasília: Senado Federal, Instituto Legislativo Brasileiro, 2016.
FERREIRA, Natanael Alves. Dízimos, Ofertas e Abuso do Direito: a boa-fé objetiva como limite da liberdade religiosa. Brasília: Escola da Magistratura do Distrito Federal, 2013.
GAGLIANO, Pablo Stolze. O Contrato de Doação: análise crítica do atual sistema jurídico e seus efeitos no direito de família e das sucessões. São Paulo: Saraiva, 2007.
GONÇALVES, Camila de Jesus Mello. Princípio da Boa-fé: perspectivas e aplicações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.
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NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Fundamentos para uma Interpretação Constitucional do Princípio da Boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: volume III, contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 10ª ed. Rio de janeiro: Forense, 2010.
SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Contratos Nominados II: contrato estimatório, doação, locação de coisas, empréstimo. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
SANTOS JUNIOR, Aloísio Cristovam dos. A Liberdade de Organização Religiosa e o Estado Laico Brasileiro. São Paulo: Mackenzie, 2007.
WEINGARTNER NETO, Jayme. Liberdade Religiosa na Constituição: fundamentalismo, pluralismo, crença, cultos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

NOTAS
[1] http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/02/1861687-pastor-silas-malafaia-e-indiciado-sob-suspeita-de-lavagem-de-dinheiro.shtml
[2] Ainda que a liberdade religiosa assegure a liberdade de auto-organização às igrejas (cf. WEINGARTNER NETO, 2007, p. 73-74), mereceria uma análise mais pormenorizada as consequências dessa confusão entre finanças pessoais do líder religioso e da instituição que ele representa.
[3] http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/pf-indicia-pastor-silas-malafaia-em-inquerito-da-operacao-timoteo.ghtml
[4] Parece ser notório que práticas religiosas relacionadas à captação de recursos pelas igrejas tem sido alvo de críticas, especialmente quando envolvem certos líderes religiosos mais populares.
[5] A escritura pública, por exemplo, é essencial para os negócios que envolvam imóvel de valor superior a trinta salários mínimos, nos termos do artigo 108 do Código Civil. E bens móveis não classificados como de pequeno valor atraem a necessidade de um instrumento particular de doação. Cf. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. op. cit. 2014. p. 682-683.
[6] TJDFT, 5ª Turma Cível, APC 20100111085544, Des. Rel. Angelo Canducci Passareli, 30/01/2013.
[7] Sobre esse argumento específico: FERREIRA, Natanael Alves. Dízimos, Ofertas e Abuso do Direito: a boa-fé objetiva como limite da liberdade religiosa. Brasília: Escola da Magistratura do Distrito Federal, 2013. E FERREIRA, Natanael Alves. A Boa-Fé Objetiva Como Elemento de Restrição da Liberdade Religiosa. Brasília: Senado Federal, Instituto Legislativo Brasileiro, 2016.
[8] v.g. TJSP. 4ª Câmara de Direito Privado. APC 273.753-4/8. Des. Rel. Ênio Santarelli Zuliani. 31.07.2007


FERREIRA, Natanael Alves. Pastor pode responder por lavagem de dinheiro ao receber doação de origem ilícita?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5063, 12 maio 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/57549>. Acesso em: 14 maio 2017.