terça-feira, 30 de maio de 2017

Homem tem direito a herança de pai biológico mesmo já tendo recebido do pai socioafetivo, afirma STJ

Publicado por Jornal da Ordem - Rio Grande do Sul

Conforme a ministra Nancy Andrighi, pode-se especular o porquê da demora do autor na busca pelo reconhecimento da paternidade biológica, mas não se pode negar os efeitos dela, uma vez comprovada.

A 3ª Turma do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) garantiu a um homem de quase 70 anos o direito a receber herança do pai biológico em ação de reconhecimento recente, mesmo já tendo recebido herança do pai socioafetivo. Da tribuna, a parte contrária alegou que, embora tendo ciência por 30 anos da existência de vínculo biológico com outro, o homem só procurou o reconhecimento da paternidade para perseguir a vantagem financeira.

O relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, lembrou no voto o julgamento de repercussão geral pelo STF no qual a Corte fixou: "A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios". Sendo assim, ponderou Cueva, é possível atribuir efeitos amplos, jurídicos, patrimoniais, inclusive, ao reconhecimento da paternidade biológica, ainda que o recorrente, que já goza com 70 anos, tenha vivido ao abrigo de família que o adotou.

Conforme a ministra Nancy Andrighi, pode-se especular o porquê da demora do autor na busca pelo reconhecimento da paternidade biológica, mas não se pode negar os efeitos dela, uma vez comprovada. A decisão da turma foi unânime.

Fonte: Migalhas

https://jornal-ordem-rs.jusbrasil.com.br/noticias/445697890/homem-tem-direito-a-heranca-de-pai-biologico-mesmo-ja-tendo-recebido-do-pai-socioafetivo-afirma-stj?utm_campaign=newsletter-daily_20170403_5086&utm_medium=email&utm_source=newsletter

É lícita a conduta do vendedor que concede apenas 3 (três) dias para troca de produto defeituoso?

Publicado por Alexandre Rodrigues

Já adiantando, a resposta é SIM. O STJ no julgado do REsp 1.459.555-RJ decidiu que é legal a conduta de fornecedor que concede apenas 3 (três) dias para troca de produtos defeituosos, a contar da emissão da nota fiscal, e impõe ao consumidor, após tal prazo, a procura de assistência técnica credenciada pelo fabricante para que realize a análise quanto à existência do vício.

Incialmente, cumpre salientar que não há no CDC norma cogente que confira ao consumidor um direito potestativo de ter o produto trocado antes do prazo legal de 30 (trinta) dias.

A troca imediata do produto viciado, portanto, embora prática sempre recomendável, não é imposta ao fornecedor. O prazo de 3 (três) dias para a troca da mercadoria é um plus oferecido pela empresa, um benefício concedido ao consumidor diligente, que, porém, não é obrigatório. Ademais, verifica-se que essa política de troca não exclui a possibilidade de o consumidor realizar a troca, na forma do art. 18 do CDC.

Registre-se que o STJ, quando do julgamento do REsp 1.411.136-RS (DJe 10/3/2015), no qual se discutiu acerca da responsabilidade do comerciante quanto à sua obrigação de interceder perante a assistência técnica em favor do consumidor, concluiu que, "disponibilizado serviço de assistência técnica, de forma eficaz, efetiva e eficiente, na mesma localidade do estabelecimento do comerciante, a intermediação do serviço apenas acarretaria delongas e acréscimo de custos”.

Ademais, de acordo com a legislação pátria, que deve ser aplicada à espécie, incumbe à empresa fornecedora, observados os prazos do art. 26 do CDC, cumprir o mandamento constante do artigo 18, § 1º, do Código de Defesa do Consumidor, o qual prescreve que se o vício do produto não for sanado no prazo máximo de 30 (trinta) dias pelo fornecedor, o consumidor poderá exigir, alternativamente e ao seu arbítrio, as seguintes opções:
A) substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso;
B) a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos, ou
C) o abatimento proporcional do preço. A exegese do artigo é clara: constatado o defeito, concede-se primeiro a oportunidade de sanar-se o vício no prazo máximo de 30 (trinta) dias, sendo certo que a assistência técnica possui melhores condições para buscar a reparação do vício.

Fonte: STJ

https://alexandre1rm2.jusbrasil.com.br/noticias/445068166/e-licita-a-conduta-do-vendedor-que-concede-apenas-3-tres-dias-para-troca-de-produto-defeituoso?utm_campaign=newsletter-daily_20170403_5086&utm_medium=email&utm_source=newsletter

Como pode pensar o juiz real que faz diferença no modo de argumentar

Por 

Para afirmação da verificação da conduta imputada no processo penal, será relevante o ponto de referência pelo qual as informações processuais (provas) serão geridas. Sabe-se que o movimento somente pode ser percebido a partir de um ponto fixo. No caso penal, do julgador. Alterando-se o ponto de referência (e o mapa mental dos julgadores), as relações se modificam, bem assim os sentidos daí advindos. Tenho defendido a adoção de fatores reais na decisão judicial no livro Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos.
Uma música pode disparar uma sensação de alegria ou tristeza em face da memória e da relação que pode advir de momentos anteriores. A música isoladamente não consegue antecipar os sentidos que advirão. O mesmo se pode dizer em relação a uma conduta criminalizável que pode gerar, pela memória do jogador/julgador processual, a invocação de uma sensação (boa ou ruim). E a teoria da prova e da decisão decotam esta variável em nome da esotérica neutralidade do observador. O caráter dinâmico dos impactos das menores oscilações de humor, de atenção, enfim, da capacidade de percepção do agente processual do “caso penal” em julgamento, deveriam ser relevantes.
O sistema jurídico além do complexo número de normas jurídicas, com gradações e forças distintas, não depende exclusivamente da conformação semântica, pois será justamente no campo da interação humana, em que o processo se situa como arena, limitada pelo tempo, espaço e pelas regras reconhecidas, que se promoverá a interação humana pela linguagem, da qual virão as construções de significados/significantes. A informação trazida para dentro do processo penal será sempre decorrente de inferências, documentos, laudos, perícias, depoimentos, sempre inidôneos para transcrição completa do que se passou. O dispositivo do processo penal regulará a forma e validade do input de informações e guiará o output de conclusões, dependendo do intrincado mecanismo de sentido dos jogadores/julgadores.
A todo o tempo teremos que fazer suposições sobre o que se passa na cabeça dos jogadores/julgadores, testemunhas, peritos, etc., ou seja, da experiência subjetiva de cada um dos agentes que interagem por meio do processo penal. E o passado dos agentes processuais será relevante na atribuição de sentido, isto é, o mapa mental construído pela experiência prévia será fundamental para se poder compreender o que se passa na cabeça do agente e antecipar, probabilisticamente, suas deliberações. Há uma circularidade inerente entre os significantes trazidos aos autos e os agentes processuais, em que o diálogo entre o mapa mental individual, os sentidos coletivizados e o resultado processual, acontece no aqui e agora. As informações se retroalimentam e são cambiáveis.
As táticas adotadas gerarão táticas do adversário e do julgador. Os comportamentos processuais dependem da interação. Não existe um processo penal idealizado. O que há é a singularidade do momento.
A argumentação se importa com o relato (o conteúdo da informação) e dá relevo à relação (a ordem) pela qual serão apresentadas. Isso porque não importa somente a informação, mas a maneira (tempo e ritmo) pela qual será apresentada em face dos agentes processuais reais e as recompensas de cada um. Existirá um auditório ou autoridade investida do exercício do poder de dizer que a conduta se verificou ou não. Com isso, o discurso sobre a informação, em um contexto situado no tempo e espaço, com seus agentes processuais, é fundamental para o êxito processual.  Será preciso saber pontuar as relações de informação e quanto mais se conhecer “como” pensa o julgador real, melhor se poderá fazer-se entender. 

As “séries oscilantes infinitas” indicadas por Bozano podem nos auxiliar a compreender que o ponto de início das cadeias argumentativas pode ser diferenciado e um erro comum é dialogar sobre o mesmo significante (dignidade da pessoa humana, teoria do crime, do processo) sem se atentar o fato de o interlocutor compartilhar o mesmo mapa mental. Todo o discurso que virá depois será paradoxal a ambos, já que falam da mesma temática em diferentes relações/cadeias de significantes — verdadeiro ruído hermenêutico na comunicação. Argumentar adequadamente não é para amadores.
Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).
Revista Consultor Jurídico, 7 de outubro de 2016, 8h00
http://www.conjur.com.br/2016-out-07/limite-penal-pensar-juiz-real-faz-diferenca-argumentacao

No Direito, aprender a pensar e argumentar é algo que depende de você

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A filosofia do Direito e as demais disciplinas propedêuticas são tidas como perfumaria por boa parte dos operadores do Direito. Entretanto, a incapacidade de compreender os pressupostos teóricos pelos quais a prática do Direito deve(ria) se alicerçar, faz com que as confusões sejam enormes. Dar um passo atrás para entender o pano de fundo teórico pode auxiliar a qualidade do modo de pensar jurídico. Com isso, há um ganho na capacidade de compreensão que, no campo do Direito, precisa de pressupostos teóricos sólidos.
A teoria da tomada da decisão — da opinião legal — em relação aos textos normativos e à facticidade, assim, exige certo percurso teórico, justamente porque poderá estabelecer os motivos determinantes do seu modo de pensar — mapa mental — e do porquê de se pensar — ou não — de determinada maneira. Isso será fundamental para se poder estabelecer um discurso argumentativo que possa ser sincero, aberto à mudança e aos desafios que se sucedem.
Em regra, todavia, temos o modo facilitado, do conforto, dos verbetes jurisprudenciais, das súmulas (vinculantes ou não), dos autores famosos (pops) que retiram, aparentemente, a dificuldade de pensar. Diante da multiplicidade de normas jurídicas (princípios e regras), bem assim a profusão de sentidos, pensar originariamente, para além do piloto automático, é o desafio cotidiano do jurista preocupado em compreender o fenômeno jurídico em suas múltiplas facetas.
Assumir o controle da enunciação de sentido e não se vincular às fórmulas prontas pode ser obtido com o resgate dos fundamentos dos fundamentos. Enfim, a aposta é pensar por si mesmo, sem que isso signifique que sejamos livres para criarmos o direito que bem queremos. A normatividade possui limites, assim como os significados, ao mesmo tempo em que o contexto em que o sentido advém possa ser denominado como um “evento de sentido”. Deixar de flutuar no balanço da maré dos informativos e dos sentidos pré-dados, sem que o sujeito possa se posicionar qualitativamente, a saber, concordar ou discordar de modo consistente, constitui o mote da proposta.
Esse passo antecedente, ainda que tido como inútil e/ou irrelevante por muitos, obtém relevância pela amplitude que proporciona, especialmente porque você poderá melhorar sua performance no mundo do Direito. Isso porque, no Direito, nem sempre há resposta única. Ser capaz de argumentar é o desafio para quem deixa de ficar sentado no sofá e decide, de fato, estudar corretamente. Nas colunas seguintes, darei sugestões de leitura, desde meu lugar. Boa semana.
Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).
Revista Consultor Jurídico, 6 de agosto de 2016, 8h00
http://www.conjur.com.br/2016-ago-06/diario-classe-direito-aprender-pensar-argumentar-depende-voce

Antimanual para compreender Estado de Natureza Hermenêutico

Por Alexandre Morais da Rosa

Prometi na coluna No Direito, aprender a pensar e argumentar é algo que depende de você sugerir trajeto capaz de apontar novas bases para compreensão do Direito. O uso retórico da vontade da norma e/ou vontade do legislador é artifício cada vez mais utilizado no ambiente forense, embora não tenha fundamento.
Isso porque a tensão entre o texto e o sentido resultante da norma esteve banhada pela cisão entre sujeito e objeto. De um lado o sujeito universal, capaz de obter a mesma resposta via o método adequado, por outro, um objeto provido de essência. O observador poderia, assim, pelo método, reconfortar-se com a verdade. A estrutura era metafísica e herdada da Escolástica.
A superação do esquema sujeito-objeto procura aterrar esta distinção para os colocar num campo único: a linguagem. A extração da essência do texto desliza para o registro do Imaginário, contracenando com uma certa ausência de mediação Simbólica decorrente da (de)formação filosófica dos atores jurídicos. É impossível a existência de um método universal. Por isso manipula-se (este é o termo) o método conforme as necessidades prévias do sentido, a saber, os métodos servem de argumento manifesto do processo de compreensão latente, existente desde sempre, e rejeitado por uma tradição inautêntica do direito.
Para alcançar alguma sofisticação no campo jurídico, como apontaram Lenio Streck e Ernildo Stein, as contribuições de Heidegger e Gadamer são fundamentais. Ao trazer a compreensão vinculada ao ser-aí, a partir das noções de círculo hermenêutico e diferença ontológica, Streck proporciona uma nova maneira de embate hermenêutico: “Para interpretar, necessitamos compreender; para compreender, temos que ter a pré-compreensão, constituída de estrutura prévia do sentido — que se funda essencialmente em uma posição prévia, visão prévia e concepção prévia — que já une todas as partes do ‘sistema’.”[1] Essa possibilidade contracena com a necessidade de enunciação, ausente na massa jogada na inautenticidade e fomentada por uma nova compreensão de sujeito, à deriva das amarras simbólicas, crente de uma autonomia imaginária que lhe autoconcederia a possibilidade de dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa.
Neste passo, Lenio Streck é enfático ao dizer que a tradição jurídica como tarefa prática não pode significar a relegitimação do “decisionismo” ou da “discricionariedade”, subprodutos da concepção (neo)positivista hegemônica, todavia, no campo da hermenêutica jurídica. Para se romper com este modelo é preciso superar a Filosofia da Consciência e suas cisões metafísicas.
Com Gadamer pode-se dizer que não há momentos hermenêuticos, dado que todos se vinculam ao momento da applicatio, a saber, o sentido. Embora se possa falar de textos jurídicos aplicados a um caso, não se trata (nem pode se tratar) de relativismos absolutos entre casos similares. Dito de outra forma, não é porque são casos diferentes que sempre se pode aplicar resultados diversos. Há uma tradição que deve sustentar esta resposta que se aparta, de qualquer modo, da mera subsunção do pensamento estritamente lógico. Isso porque a lógica articula-se no plano matemático, desprovido de referência à faticidade; com a faticidade e o sujeito, num eterno e renovado círculo hermenêutico, não se pode falar de verdades universais. O sentido é atravessado por um processo de compreensão que convoca diversos sujeitos e significantes, para que ocorra uma fusão de horizontes. Neste momento de fusão de horizontes, contudo, incidem (ou deveriam incidir) constrangimentos de ordem sintática, semântica, pragmática e fundamentalmente da tradição, no que já se denominou de “bricolagem jurídica”[2].
O primeiro destes constrangimentos (sintático) decorre da impossibilidade de se construir proposições (enunciados com sentido) — se e somente se — articulados na forma de uma estrutura linguística. No caso do limite semântico, ainda que se possa articular com os contextos, portanto, com a dimensão pragmática, há um limite[3] de sentido compartilhado que não se pode transcender[4]. Esse limite, cujos referenciais atualmente anda se perdendo, somente pode ser amarrado pela costura de um sujeito enunciador de sua inserção numa tradição democrática.
Caso se tenham sujeitos incapazes de promover enunciação, deságua-se na reiteração de verbetes jurisprudenciais, conceitos pré-dados, cujo trabalho passa a ser de explorador e conceitos, e não hermenêutico, reificando um verdadeiro, diz Streck, “estado de natureza hermenêutico”. O constrangimento decorrente da tradição deveria impor uma Referência, um limite democrático, aos sentidos que podem surgir e deslizar para diversas direções, mas que devem guardar uma pertinência com a Constituição da República tida como projeto emancipador.
A tradição autêntica[5] é o critério do sistema hermenêutico, ocupado necessariamente diante do movimento Neoconstitucional pela compreensão dirigente e compromissória das Constituições (Canotilho). A Constituição é o maior constrangimento[6] de um processo hermenêutico. Por isso que a noção de Constituição, como significante inicial da cadeia de sentido precisa ser invocada. Streck sustenta: “Apesar da revolução copernicana produzida pela viravolta linguístico-hermenêutica, é possível detectar nitidamente a sua não recepção pela hermenêutica jurídica praticada nas escolas de direito e nos tribunais, onde ainda predomina o método, mesmo que geneticamente modificado pelas teorias discursivas. Tantos métodos e procedimentos interpretativos postos à ‘disposição’ dos juristas faz com que ocorra a objetificação da interpretação, porque possibilitam ao intérprete sentir-se desonerado de maiores responsabilidades na atribuição de sentido, colocando no fetichismo da lei e no legislador a responsabildiade das anomalias do direito.”[7]
A compreensão como modo de ser convoca o campo da hermenêutica jurídica para uma nova e complexa tarefa. De um lado opera-se uma crítica de como o direito se apresenta, desvelando seus condicionantes, por outro, convoca-se uma responsabilidade processual e de enunciação. Talvez o maior espanto dos atores jurídicos quando confrontados com a Hermenêutica Filosófica decorre da necessidade da assunção de um lugar de enunciação, isto é, deixar de se situar na condição de consumidores de sentido prêt-à-porter.
Desonerados desta condição de consumidores, passam muito rapidamente, a produtores de sentido. Este acontecimento, todavia, dada a (de)formação filosófica e democrática, derrapa em totalitarismos (decisionismos) de sentido, não raro ocupado por gente que (acha que) sabe o melhor, domina o “Justo” e o “Bom”[8]. No lugar de emissores do discurso, à deriva das amarras de uma tradição, passam a dizer o que lhes bem convier! Por isto o desvelamento do lugar de enunciador precisa de uma mediação Simbólica que sirva de limite (de conteúdo variado, claro), ao que se pode (e como se pode) enunciar. O desafio se renova, como reitera Lenio Streck.

[1] STRECK, Lenio Luiz. Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do esquema sujeito-objeto..., p. 31-32.
[2] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Decisão Penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
[3] STRECK, Lenio Luiz. Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do esquema sujeito-objeto..., p. 42: “Toda a interpretação começa com um texto, até porque, como diz Gadamer, se queres dizer algo sobre um texto, deixe primeiro que o texto te diga algo. O sentido exsurgirá de acordo com as possibilidades (horizonte de sentido) do intérprete em dizê-lo, d’onde pré-juízos falsos acarretarão graves prejuízos hermenêuticos.”
[4] STRECK, Lenio Luiz. Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do esquema sujeito-objeto..., p. 43: “Quando se popularizou a assertiva de que texto não é igual a norma e que a norma é o produto da interpretação do texto, nem de longe quer dizer que o texto não vale nada ou que norma e texto sejam ‘coisas à disposição do intérprete’, ou, ainda, que depende do intérprete a ‘fixação da norma’”
[5] STRECK, Lenio Luiz. Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do esquema sujeito-objeto..., p. 40: “A tradição autêntica (sentido da Constituição compreendido como o resgate das promessas da modernidade) e reconstruindo, a partir dessas ‘premissas’, em cada caso, a integridade e a coerência interpretativa do direito.”
[6] AROSO LINHARES, José Manuel. Entre a reescrita pós-moderna da modernidade e o tratamento narrativo da diferença ou a prova como um exercício de «passagem» nos limites da juridicidade: imagens e reflexos pré-metodológicos deste percurso. Coimbra: Coimbra Editora, 2001.
[7] STRECK, Lenio Luiz. Bases para a compreensão da hermenêutica jurídica em tempos de superação do esquema sujeito-objeto..., p. 35.
[8] Isto decorre da compreensão (equivocada) de que o texto legal guarda consigo todas as possibilidades de sentido, as quais podem ser extraídas, via método adequado, pelos intérpretes autorizados, reeditando a estrutura cristã da interpretação dos textos sagrados. Somente os escolhidos – antes pela Igreja em nome de Deus, e hoje pelos Juízes – teriam as chaves de acesso à porta da Verdade que se esconde nos textos.
Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).
Revista Consultor Jurídico, 8 de outubro de 2016, 8h00
http://www.conjur.com.br/2016-out-08/diario-classe-antimanual-compreender-estado-natureza-hermeneutico

Patrimônios culturais, nomes de lugares também devem ser preservados

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A proteção do patrimônio cultural, em âmbito mundial, de há muito afastou seus olhares exclusivamente para objetos materiais excepcionais, monumentais ou grandiloquentes, passando a mirar outros elementos, tangíveis ou não, que, de igual forma, integram o acervo cultural representativo do caminhar da humanidade, mas que antigamente escapavam à percepção de boa parte dos cidadãos e autoridades públicas.
Todos nós, por força de tradição multissecular, logo que nascemos, recebemos um nome, elemento identificador básico do homem. No Brasil, enquanto sucedâneo do direito à própria dignidade da pessoa humana, o Código Civil Brasileiro estabelece que todos têm direito a um nome.
Em continuidade, conforme estabelecido na Lei de Registros Públicos, a alteração do nome da pessoa civil é excepcional e somente admitida, por exemplo, em casos em que houver exposição ao ridículo ou quando necessário para o indivíduo se furtar à coação ou ameaça decorrente de colaboração com a apuração de crime.  Ou seja: a imutabilidade do nome é uma regra.
Mas e as coisas e lugares que nos cercam, cujas denominações são seculares e tradicionais? Seriam seus nomes passíveis de alteração ao bel prazer de indivíduos ou grupos que assumem o poder circunstancialmente? Haveria algum limite à possibilidade da alteração do nome, por exemplo, de cidades, logradouros públicos ou acidentes geográficos?
Antes de adentrarmos à análise jurídica da questão que nos propomos a perscrutar, vejamos o pensamento dos literatos sobre o assunto, considerando que os incontáveis episódios de mutilação toponímica (do grego topos=lugar; e onoma=nome) não escaparam à percepção dos homens das letras. Em Grande Sertão - Veredas, João Guimarães Rosa, magistral escritor mineiro, deixou a advertência de Riobaldo[1]:
Entre perto de lá tem vila grande - que se chamou Alegres - o senhor vá ver. Hoje, mudou de nome, mudaram. Todos os nomes eles vão alterando. É em senhas. São Romão todo não se chamou de primeiro Vila Risonha? O Cedro e o Bagre não perderam o ser? O Tabuleiro Grande? Como é que podem remover uns nomes assim? O senhor concorda? Nome de lugar onde alguém já nasceu, devia de estar sagrado. Lá como quem diz: então alguém havia de renegar o nome de Belém – de Nosso Senhor Jesus Cristo no Presépio, com Nossa Senhora e São José?! Precisava de se ter mais travação. Senhor sabe: Deus é definitivamente; o Demo é o contrário Dele...
A imortal Raquel de Queiroz também se expressou sobre o tema, de forma perspicaz e contundente, referindo-se à denominação dos logradouros municipais, talvez as maiores vítimas do abandono da proteção toponímica[2]:
É bem conhecido o desrespeito que, em nossa terra, as autoridades municipais manifestam pela toponímia urbana. Nomes tradicionais de logradouros, muitas vezes representando o traço que na memória do povo deixou um fato, um costume, uma figura, são alterados e substituídos por outros de duvidosa significação e sob o pretexto de homenagear personagens algumas vezes de transitória atuação na vida local, quando não lhe sejam de todos estranhos. É por isso sempre interessante recordar e registrar as denominações antigas ou populares dos logradouros de uma comunidade. São designações que evocam imagens do passado.
Por detrás das palavras dos literatos, há um substrato antropológico, histórico e geográfico que precisa ser igualmente percebido, posto que os nomes tradicionais dados às coisas não surgem ao acaso, mas, ao contrário, estão ligados a escolhas e motivações que precisam ser compreendidas. Suprimi-los implica no ocultamento da história e da identidade de uma gente, viabilizando o distanciamento do significado que se dá a um “pequeno pedaço de mundo”[3].
O respeitado historiador mineiro, Waldemar de Almeida Barbosa[4], em brilhante lição sobre o tema, depois de advertir que “tradição é matéria que está longe de ser compreendida por espíritos ligeiros, superficiais” nos ensina:
Quando, ao se proclamar a República, adotou-se aquela bandeira constituída de listas horizontais verdes e amarelas, com um grupo de estrelas em um retangulozinho à esquerda, no alto, o argumento que convenceu Deodoro de tamanha estultícia foi este: a bandeira nacional é qualquer cousa ligada à alma do povo. Que se substitua o emblema da monarquia por outro, mas permaneça a bandeira que a nação se acostumou a admirar e a respeitar, foi o argumento decisivo.
Da mesma forma, o nome de uma localidade, por mais feio que possa parecer a estranhos, está intimamente ligado à alma do povo que o adotou, à sua história, às suas lendas; não deixa de ser uma forma de crueldade inventar um nome sonoro e poético para substituir o primeiro, sem qualquer consulta aos moradores. Às vezes, uma sede distrital é elevada à categoria de cidade; os chefes políticos do município a que pertencia aquele distrito, julgam-se no direito de criar e impor uma bela denominação para o novo município a ser criado.
Com efeito, nomes como Ibitipoca (do tupi, significando serra furada),  Caxambú (do africano, relativo à forma cônica de um tambor), Mantiqueira (do tupi, significando serra que chora, em alusão às muitas nascentes) ou Curral del-Rey (relacionado a antiga estrutura fiscal, de origem lusitana, para controle de animais), não são produtos do acaso. Ao contrário, são verdadeiros fósseis linguísticos[5], carregados de motivações simbólicas e identitárias que nos permitem compreender e interpretar, retrospectivamente, a realidade, as funções e a vida dos lugares e a sua relação com nossos ancestrais.
Nomes de antigos logradouros públicos, como Rua da Cachaça, Rua do Jogo de Bola, Rua do Curtume, Morro da Forca, Largo das Forras, Largo do Pelouro, Beco dos Defuntos e Praça da Liberdade não são designações que surgiram sem motivos. São produtos históricos da vivência do homem e de suas relações com o espaço por ele ocupado, seus usos, valores, acontecimentos e símbolos.
A denominação de “Rua Direita”, por exemplo, presente na tessitura urbana de incontáveis arraiais e vilas do Brasil, é um verdadeiro arquétipo da morfologia das cidades lusitanas e a sua designação (aliás, desvinculada da retitude esperada do nome) está, de fato, relacionada aos eixos primordiais dos núcleos urbanos, remontando a conceitos e funções surgidos na Idade Média, relacionados à ligação espacial, em linha direta, dos principais prédios de uso comercial, administrativo e religioso.
Enfim, o nome de um lugar em um mapa ou documento não se restringe a uma informação meramente cartográfica ou onomástica. Há sempre uma carga de valores e motivos de relevo por detrás dele. Segundo Seabra, “nome de lugar é voz, ferramenta e fundamento da experiência humana, já que é um signo linguístico que transmite informações e reflete a história dos povos”.[6]
Por isso, segundo o ordenamento jurídico brasileiro, as denominações tradicionais dos lugares, enquanto signos da identidade e da memória de nossa sociedade, podem ser compreendidas e classificadas como partes integrantes do patrimônio cultural imaterial e, portanto, passíveis de tutela pelo poder público, nos termos preconizados pelo art. 216, § 1º. da Constituição da República.
Tal constatação impõe a todos um dever de abstenção (non facere) no que pertine à mudança imotivada, arbitrária ou circunstancial dos topônimos, que, inclusive, podem ser protegidos por instrumentos de ordem legislativa, administrativa ou mesmo judicial.
No que tange à denominação de nossas unidades de conservação, por exemplo, o Decreto 4.340/2002, em feliz dispositivo, estabeleceu que: Art. 3º — A denominação de cada unidade de conservação deverá basear-se, preferencialmente, na sua característica natural mais significativa, ou na sua denominação mais antiga, dando-se prioridade, neste último caso, às designações indígenas ancestrais.
Tal mandamento impede, por exemplo, que determinado parque estadual seja denominado, por motivações políticas ou adulatórias, “Governador fulano de tal”, abrindo margem, inclusive, para se perquirir sobre possível ato de improbidade administrativa, por violação aos princípios da legalidade, moralidade e impessoalidade, em caso de descumprimento.
Ainda no campo normativo, a Lei Complementar 01/1967, que estabelece os requisitos mínimos de população e renda pública e a forma de consulta prévia as populações locais para a criação de novos municípios, estabelece no artigo 9º, III, que na designação de novos topônimos não serão utilizados designações de datas ou nomes de pessoas vivas. Na mesma toada, a Lei 6.454/77 dispõe que é proibido, em todo o território nacional, atribuir nome de pessoa viva ou que tenha se notabilizado pela defesa ou exploração de mão de obra escrava, em qualquer modalidade, a bem público, de qualquer natureza, pertencente à União ou às pessoas jurídicas da administração indireta. 
Em âmbito administrativo, conquanto não previsto expressamente no Decreto 3.551/2000, somos de pensamento que os topônimos podem ser protegidos pelo instrumento do Registro e que seria desejável a criação, conforme cláusula de abertura prevista no artigo 1º, parágrafo 3º.[7], de um “Livro das Denominações”, para inscrição dos nomes tradicionais dos lugares.
Outra medida de relevo no âmbito administrativo, e que pode contribuir positivamente para a valorização das antigas denominações, é a educação patrimonial, mediante ações de ensino, promoção e informação, pois a falta de conhecimento sobre as razões que justificaram a atribuição do nome a um determinado lugar pode favorecer a sua mudança, de forma inadvertida. Temos conhecimento de diversos “Dicionários” de nomes de ruas de cidades que revelam, com maestria, as motivações das designações de logradouros e que cumprem os objetivos acima citados.
Em âmbito judicial, considerando a inafastabilidade da apreciação pelo Poder Judiciário de qualquer lesão ou ameaça a direito, e sendo direito de todos a preservação dos bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro, instrumentos como a ação popular e a ação civil pública podem e devem ser utilizados para se evitar o mudancismo toponímico.
Importante destacar que as leis que tratam da designação de lugares são de efeito concreto e, materialmente, se equivalem a atos administrativos, cuja motivação não refoge à possibilidade de apreciação judicial a fim de que sejam perquiridos seus requisitos essenciais, a exemplo da motivação, e obediência aos princípios da administração pública, como os da legalidade, moralidade e impessoalidade, viabilizando o combate a atos de autolatria, bajulatória, oportunismo ou arbitrariedade,  entre outros.
Em sede de ação civil pública, é digna de nota a iniciativa da Associação dos Moradores e Amigos do Vidigal, da cidade do Rio de Janeiro, que combateu ato do município que mudou a tradicional denominação da “Estrada do Tambá”, dando-lhe nome de um presidente da República. Sobre o cabimento do instrumento processual escolhido, assim decidiu o TJ-RJ:
AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Proteção legal a bens de valor histórico – Restabelecimento de antigo nome de rua – Admissibilidade – Tutela legal que não se limita a bens materiais. A proteção a bens de valor histórico não se limita a bens materiais. Norma constitucional assegurando proteção a locais de valor histórico. Inclui-se no conceito a denominação de ruas e logradouros públicos. Provimento do recurso para admitir o exame do pedido. (TJRJ – Ap. 238/89 - Rel. Semy Glanz – J. 27/06/1989 – RT 657/144-145)
Por meio de ação popular, registramos o feito do Estado de São Paulo movido em face da Câmara Municipal de Rio Grande da Serra e da Prefeitura local, alegando que em 08 de dezembro de 1999 as ruas Vênus e Mercúrio, ambas localizadas na Vila Albano, haviam sofrido alteração na denominação, passando a ser denominadas ruas Francisco Martin Rueda e João Manoel Fernandes, por força das Leis Municipais 1.239/99 e 1.244/99, respectivamente. A ação, extinta em primeira instância, teve seu trâmite restabelecido pelo TJ-SP, que assim decidiu:
AÇÃO POPULAR - Extinção do processo sem exame do mérito - Ausência de lesividade - Art. 267, inciso IV, do CPC - Mudança de nome de rua sem anuência dos moradores - Lesão ao patrimônio histórico e cultural. Inegavelmente, a denominação do logradouro público tem importância histórica e cultural para seus moradores. E se assim não fosse, não se incomodariam com a atual denominação, a ponto de se manifestarem contrariamente à mudança (fls. 24/31). Ante o exposto, dá-se provimento aos recursos para anular a r. sentença, a fim de que a ação tenha seu regular prosseguimento. Sentença reformada. Recursos providos. (Apelação Cível n° 234.298-5/9-00, de Ribeirão Pires, 6ª Câmara Cível do TJSP, Rel. Des. José Elias Habice Filho, Julgado em 15/12/2003).
Enfim, os nomes tradicionais dos lugares devem ser respeitados e protegidos, por todos, por serem bens integrantes do patrimônio cultural imaterial brasileiro. Alterá-los imotivadamente é ação que não se concebe diante do ordenamento jurídico hoje vigente.


[1] ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 19 ed. 2001. p. 58
[2] Apud CINTRA, Sebastião de Oliveira. Nomenclatura de ruas de São João del-Rei. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei. Vol. VI. 1988. p. 05.
[3] HISSA, Cássio Eduardo Viana e MELO, Adriana Ferreira de. O lugar e a cidade. Conceitos do mundo contemporâneo. In: Saberes ambientais: desafios para o conhecimento disciplinar. Belo Horizonte. UFMG. 2008. p. 299.
[4] BARBOSA. Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico Geográfico de Minas Gerais.  Belo Horizonte: Itatiaia. 1995. p.  11.
[5] DICK, Maria Vicentina de Paula do Amaral. Toponímia e antroponímia no Brasi.l Coletânea de estudos. São Paulo. USP. 1987. p. 25
[6] SEABRA, Maria Cândida Trindade Costa de. Toponímia do Vale: passado e presente.  In: SOUZA, João Valdir de.  HENRIQUES, Márcio Simeone (Orgs.). Vale do Jequitinhonha. Formação histórica, populações e movimentos.  Belo Horizonte: UFMG. 2010. p. 95
[7]  O Decreto prevê a existência dos Livros de Registro dos Saberes, das Celebrações, das Formas de Expressão e dos Lugares e prevê que outros livros de registro poderão ser abertos para a inscrição de bens culturais de natureza imaterial que constituam patrimônio cultural brasileiro e não se enquadrem nos livros definidos explicitamente na norma.
Marcos Paulo de Souza Miranda é coordenador da Promotoria Estadual de Defesa do Patrimônio Cultural de Minas Gerais, especialista em Direito Ambiental, secretário da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente, professor de Direito do Patrimônio Cultural e membro do International Council of Monuments and Sites (ICOMOS) Brasil.
Revista Consultor Jurídico, 8 de outubro de 2016, 8h01
http://www.conjur.com.br/2016-out-08/ambiente-juridico-patrimonios-culturais-nomes-lugares-tambem-preservados

Calvário da cobrança de pensão alimentícia vai além da morosidade

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A cobrança de pensões alimentícias, mesmo com o CPC 2015, continuam sendo um verdadeiro calvário para os alimentários. Os procedimentos judiciais continuam favorecendo o devedor, em razão da sua morosidade e do emperramento da máquina judiciária. E assim, o Judiciário continua com a sua melancólica incapacidade de fazer Justiça.  O CPC 2015 poderia, mas não desfez esse nó procedimental que é vergonhoso.
Pior que isso, é a comunidade jurídica ter se acostumado, aceitado e achar normal, e não se indignar que uma cobrança de pensão alimentícia seja feita pelas mesmas regras que se cobra um cheque ou um título executivo qualquer. A fome não espera, e assim a responsabilidade de alimentar os filhos acaba recaindo sobre as mulheres que nunca fogem da raia, tendo ou não tendo dinheiro, e se viram, reviram e se desdobram para fazer a sua parte e a do pai irresponsável que não se compromete com seus filhos.
O que leva uma pessoa, geralmente o homem, a não pagar a pensão alimentícia? Qual o verdadeiro motivo da inadimplência de alimentos? Tenho me deparado e me perguntado isto há mais de 30 anos em minha “Clínica do Direito”. A razão objetiva é a dificuldade financeira, desemprego, crise econômica do país etc. Este é o quadro geral aparente. Entretanto, a subjetividade que permeia as relações jurídicas, às vezes inconsciente, nos autoriza a dizer que o verdadeiro motivo é outro.
O mundo se divide em bons e maus pagadores. O bom pagador, mesmo não tendo dinheiro, negocia a dívida, conversa sobre diminuir e faz cortes temporários nas despesas até que se restabeleça , negocia na escola do filho, pede prazo, enfim assume sua responsabilidade e “se vira”. Para o mau pagador, o desemprego e falta de dinheiro é uma boa desculpa para se isentar da responsabilidade com seus filhos e sabe que, ao contrário dele, a mãe vai “se virar”. Ou seja, ele paga a pensão se puder e quando der.
Associado a essas características do inadimplemento alimentar está a relação de amor e ódio mal resolvida. Assim como na alienação parental, o resumo da ópera é: não quis ficar comigo, vai comer o pão que o diabo amassou. Se ela está com outro, não precisa do meu dinheiro; o dinheiro da pensão é para sustentar outras pessoas etc. Frases e lamentações, pensamentos e justificativas como estas são muito comuns para o mau pagador isentar-se de sua responsabilidade com a criação do filho. Ora, quem põe filho no mundo, planejado ou não, desejado ou não, tem que assumir a responsabilidade de sua criação. E, para aqueles que não têm essa lei interna é que a lei externa, isto é, a lei jurídica deve atuar. Essa é a função do Direito: colocar limites nas pulsões inviabilizadoras do convívio social e barrar os excessos gozosos.
Em outras palavras, quem não paga pensão alimentícia deve ser responsabilizado e sofrer as consequências de sua irresponsabilidade. Aqueles que verdadeiramente não podem pagar devem tomar as medidas necessárias, como propor revisional, negociar redução, enfim, justificar oficialmente sua dificuldade, dialogar etc. Entretanto, o que mais se vê, é o devedor simplesmente parar de pagar a totalidade alegando dificuldades, desemprego, ou por pura pirraça. Ou seja, “encosta” e passa sua obrigação para outra pessoa, como se pudesse se destituir da sua função de pai.
A prática forense mostra que o mecanismo processual mais eficaz para o recebimento de pensões é a possibilidade da prisão civil do devedor. Esta é a única exceção de prisão civil (artigo 5º, LXVII da CR 1988) no ordenamento jurídico brasileiro, pois a outra possibilidade, também prevista constitucionalmente, no mesmo artigo, a do depositário infiel, já não se aplica mais por interpretação do STF (Súmula Vinculante 25).
Há vozes dissonantes sobre a eficácia dessa prisão civil, mas ela se manteve no CPC  2015: “se o executado não pagar ou se a justificativa apresentada não for aceita, o Juiz, além de mandar protestar o pronunciamento judicial na forma do §1ª decretar-lhe á a prisão pelo prazo de 1(um) a 3(três) meses (Art. 528, §3ª)”. Ele cumprirá a pena em regime fechado, separado dos presos comuns, e o cumprimento da pena não quita a dívida. O débito alimentar autorizador da prisão é o das três últimas prestações anteriores ao ajuizamento da execução, e obviamente as que se vencerem no curso do processo (Art. 528 §4ª à 7ª)
Segundo dados da Divisão de Vigilância e Capturas da Polícia Civil de São Paulo, de maio de 2016, há 27.413 mandados de prisão expedidos em ações de execução de alimentos pendentes de cumprimento e cerca de 1/4 desses devedores estão foragidos. Para viabilizar essas prisões a comissão dos defensores públicos do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) solicitou ao Conselho Nacional de Justiça, a criação de um banco nacional de prisão de devedores de alimentos, tal como existe pela Resolução 137/2011 do CNJ que regulamenta o banco de dados de mandados de prisão, nos termos do artigo 289-A do CPP, acrescentado pela Lei 12.403, de 4 de maio de 2011. A diferença é que esse é específico da seara criminal, divergindo da natureza da dívida alimentar. Daí a justificativa da pretensão do IBDFAM, em dar efetividade as execuções de alimentos, pois uma vez criando esse banco de mandado de prisão, poderá dar efetividade ao cumprimento da prisão. Milhares deles permanecem sem cumprimento em virtude das dificuldades de localização dos devedores.
Mais importante que a prisão, é a possibilidade dela. É esta espada sobre a cabeça do devedor que pode colocar limites onde não há. Todo mundo sabe que uma execução por penhora de bens não intimida ninguém.  Muitos deles não têm bens, ou o transferiram para terceiros, e mesmos os que têm, sabem que um processo judicial de execução dura cerca de cinco anos, com possibilidade de resultado ineficaz. E aí a pergunta permanece: como garantir e proteger pessoas vulneráveis, na maioria das vezes crianças ou adolescentes, que precisam de verba de subsistência?

O Ministério Público, muitas vezes tem sido omisso neste sentido e não tem denunciado o crime de abandono material. O IBDFAM apresentará no próximo mês um Projeto de Lei, a exemplo da Alemanha e Argentina, ampliando o leque de restrições que deve sofrer o devedor de alimentos, como por exemplo, a suspensão de conduzir veículo, apreensão do passaporte etc. Certamente o dinheiro para pagar a pensão vai aparecer mais facilmente e quem sabe, assim, o devedor de alimentos não continuará sendo premiado com a morosidade judicial.
Rodrigo da Cunha Pereira é advogado e presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), mestre (UFMG) e doutor (UFPR) em Direito Civil e autor de livros sobre Direito de Família e Psicanálise.
Revista Consultor Jurídico, 9 de outubro de 2016, 8h00
http://www.conjur.com.br/2016-out-09/calvario-cobranca-pensoesalimenticias-alem-morosidade

Tratamento jurídico e social à pessoa traída no passado e no presente


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A traição no amor sempre fez parte das relações humanas. O nono dos Dez Mandamentos dispõe: não cobiçar a mulher do próximo. Por sua vez, Jesus Cristo (Evangelho de João, 8:1-11) revelou a necessidade de misericórdia com os que erram, dizendo: “Aquele que dentre vós está sem pecado, seja o primeiro que lhe atire uma pedra”.
Entre 1572 e 1617, o teólogo alemão Georg Braun escreveu em seis tomos a obra Civitates orbis terrarum, onde descreveu os costumes e características das mais importantes cidades de seu tempo. No quinto volume,[1] falando sobre a cidade de Sevilha,  inseriu uma pintura (vide abaixo) com um castigo público a uma mulher adúltera e ao seu marido, que nela é chamado de “Cornudo Paciente”, pois, ao que tudo indica, concordava com as aventuras da sua mulher.
O homem trazia na cabeça uns galhos que imitavam chifres e, atrás dele, uma mulher com o rosto escondido e um provável servidor da Justiça que executava a sentença do Tribunal do Santo Ofício. Açoitavam-no com umas varas compridas, sob a supervisão de um homem a cavalo, certamente um alto servidor do Tribunal. Na frente, dois jovens caçoavam com os dedos em V, que tinha naquele tempo o mesmo significado de hoje.A traição conjugal sempre foi repudiada, mas, revelando o machismo milenar da humanidade, nas mais diferentes culturas, a reprovação era apenas contra a conduta da mulher.












Nosso Código Penal, de 1940, trazia no artigo 240 a previsão de adultério, punido com 15 dias a 6 meses de prisão simples. Como promotor de Justiça de 1970 a 1980, nunca vi uma ação penal por tal crime. Este artigo foi revogado em 2005.
Na verdade, quando havia alguma iniciativa policial o objetivo mesmo era o de colher provas para a ação de natureza civil, que no passado se chamava desquite. Com a prova do adultério, o marido traído venceria a ação civil e seriam a seu favor todas as consequências da sentença, por exemplo, não pagar alimentos.
Certa feita, no ano de 1968, como estagiário de delegado de Polícia na cidade de São Vicente, tive ocasião de acompanhar uma diligência policial relacionada com o então crime de adultério. O marido traído compareceu à Delegacia com seu advogado. Era um sábado à tarde, momento propício para o ato furtivo. Acompanhados do delegado e da vítima, fomos em caravana ao apartamento onde estaria se dando a prática sexual proibida. Após a autoridade policial dar três batidas na porta e dizer em voz alta “abra em nome da lei”, depois de uns 15 minutos saiu o conquistador, seguido pela envergonhada esposa, esta com uma toalha na cabeça. Foram autuados em flagrante e depois postos em liberdade.
Havia ainda uma circunstância paralela no pensamento da época. Não raramente maridos assassinavam mulheres adúlteras, às vezes por mera suspeita, e levados a julgamento perante o Tribunal de Júri, onde só havia homens, eram absolvidos por legítima defesa da honra.
No âmbito penal, foi lenta a evolução para firmar-se jurisprudência no sentido de que a honra não se transfere, ou seja, que o marido não podia considerar-se ofendido pela quebra de compromisso de fidelidade da mulher. Esta, sim, é que teria sua honra ferida, que deveria sentir vergonha e não ele. A partir desta mudança de foco surgiram as primeiras condenações em casos de homicídio. Cita-se, a título de exemplo, acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo:
Júri - Decisão contrária à evidência dos autos - Impossibilidade do seu reconhecimento - Decisão dos Jurados fundamentada em prova existente nos autos - Legítima defesa da honra - Marido que mata a mulher - Inexistência da legitima defesa da honra - Asfixia - Reconhecimento de meio cruel - Rejeição de homicídio privilegiado - Pena corretamente dosada, tendo em conta o afirmado pelos Jurados - Regime inicial fechado - Apelo improvido.[2]
O tempo passou e, com ele, a aplicação do Direito. Na sociedade atual, pelo menos no mundo ocidental, a traição passou a ser vista com menos rigor. O tema acabou se desenvolvendo no âmbito civil. Corretamente, pois o Direito Penal não deve ocupar-se de assunto que diz respeito exclusivo dos cônjuges. Vejamos a jurisprudência.
A primeira observação é a de que não é mais necessário, como ao tempo dos romanos, que ocorra o que o advogado Paulo Sérgio Leite Fernandes membra em artigo anterior à descriminalização:  “solus cum sola, nudus cum nuda, in eodem lecto” cuja tradução, em interpretação livre é: “Ambos nus, isolados, no mesmo leito”. [3] Não, agora para que haja a traição não precisam estar nus. Ela pode ser reconhecida mesmo que ambos estejam vestidos e à distância.
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal julgou procedente ação de indenização de mulher contra o marido, por manter relacionamento com outra mulher via internet, condenando-o a pagar R$ 20 mil de indenização, mesmo não tendo relações carnais.[4] O demandado deixou gravadas no disco rígido de seu computador mensagens eróticas trocadas e a demandante, conhecendo a sua senha, teve acesso à prova material da conduta.
Não há mais distinção de tratamento pelo fato do traidor ser o homem ou a mulher. A jurisprudência vem condenando maridos sem distinção. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em decisão colegiada de 1988, portanto em época em que as mulheres tinham seus direitos menos respeitados, decidiu que
Separação judicial. Adultério do marido evidenciado nos autos. Nenhuma prova demonstrou vida desregrada da mulher: a prova do processo ha de ser analisada e valorada tendo-se em conta a época em que vivemos: critérios, valores, atitudes e comportamentos segundo as pessoas, no caso de classe media, que constituem os personagens vivos, de carne e osso, com que o juiz convive. Improveram a primeira e proveram a segunda apelação. [5]
            Contudo, para que haja indenização por danos morais, há julgados que entendem necessária prova objetiva da lesão à honra. Vale dizer, não basta a traição, é preciso que ela tenha exposto a vítima ao ridículo, à humilhação. Veja-se, a título de exemplo, decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:
INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - INFIDELIDADE CONJUGAL - AUSÊNCIA DE PROVA DE OFENSA À HONRA SUBJETIVA - RESPONSABILIDADE CIVIL NÃO CONFIGURADA. A alegação de infidelidade conjugal, por si só, sem a prova de ofensa à honra objetiva da vítima, não enseja a condenação em indenização por danos morais, por ausência dos elementos configuradores da responsabilidade civil.[6]
E há, ainda, casos em que o marido participa da traição da mulher, seja porque se excita com o fato, seja porque dele obtém alguma vantagem econômica, social ou profissional. Isto não é algo típico dos tempos atuais, sempre existiu ainda que em menor quantidade. A diferença é que agora tornou-se público, inclusive objeto de sites na internet. Nestes casos, obviamente, não há direito a qualquer tipo de reclamação por infidelidade.
Em suma, a sociedade se transforma e o Direito deve acompanhar as mudanças. A traição não deixa de ser vista com reprovação. Todavia, sem os rigores da Idade Média. Felizmente.


[1] José Júlio García Arranz. El castigo del cornudo paciente:  um detalle iconográfico en La Vista de Sevilla de Joris Hoefnagel (1593). Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/3755287.pdf. Acesso em 08 out. 2016.
[2] TJ-SP - ACR: 974554370000000 SP, Relator: Almeida Sampaio, Data de Julgamento: 13/10/2008,  2ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 25/11/2008. Acesso 7/9/2016.
[3] FERNANDES, Paulo Sérgio Leite.Revogação da punição de adultério na lei será um avanço. In: revista eletrônica Consultor Jurídico, 21/9/2004.
[4] http://www.jurisway.org.br/v2/noticia.asp?idnoticia=25169, acesso em 6/9/2016.
[5] TJRS, Apelação Cível Nº 587048166, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nelson Oscar de Souza, Julgado em 30/06/1988.
[6] TJ-MG - AC: 10699060652137001 MG, Relator: Brandão Teixeira, Data de Julgamento: 10/07/2013,  Câmaras Cíveis / 2ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 19/07/2013.
Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.
Revista Consultor Jurídico, 9 de outubro de 2016, 8h02
http://www.conjur.com.br/2016-out-09/segunda-leitura-tratamento-juridico-social-pessoa-traida-passado-presente