sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Adoção - 6 A PREFERÊNCIA PELOS LAÇOS CONSANGUÍNEOS

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Como já exposto anteriormente, o §1º do artigo 39 do ECA, adicionado pela Lei nº 12.010/09, embora elaborado observando o melhor interesse da criança e do adolescente, ainda deixa margens para interpretações que, em razão de uma supervalorização da consanguinidade, podem prejudicar crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.

Dispõe o referido parágrafo que “a adoção é medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa”. Esse texto, no entanto, provoca um questionamento: quando se consideram esgotados todos os recursos de manutenção na família natural ou extensa? Por quantas tentativas as crianças e adolescentes devem passar para que se considerem esgotados todos os recursos? É claramente perceptível que a expressão “apenas quando esgotados todos os recursos” é demasiadamente genérica. Ou seja, essas perguntas dificilmente serão respondidas com ampla certeza.

Nessa perspectiva, a prioridade dada pela legislação à família natural, mais precisamente aos vínculos consanguíneos, pode acarretar em alguns prejuízos, dentre os quais destacamos o prolongamento em instituições de acolhimento e os problemas relacionados à adoção tardia.

A adoção de crianças e adolescentes consubstancia-se em um ato repleto de complexidades. Uma dessas complexidades caracteriza-se pelo fato de que a adoção depende, em grande parte, do perfil de crianças/adolescentes que os pretendentes mais almejam.

Nesse sentido, quanto mais fora desse padrão uma criança ou um adolescente se encontra mais distante de uma adoção ela estará.

Pretendentes à adoção, nacionais ou estrangeiros, querem crianças, preferencialmente, com pouca idade e em boas condições de saúde. À medida que os anos passam, além de se tornar cada vez mais difícil a reinserção familiar, uma vez que os laços, com o tempo, fragilizam-se ou rompem-se, a colocação em família substituta, especialmente na modalidade de adoção, torna-se cada vez mais difícil. Quanto menor a idade da criança, mais chances terá para ser reinserida numa família. (KREUZ, 2012, p.57).


Esse fato se torna evidente com a análise dos relatórios, em anexo, acessíveis no site do Conselho Nacional de Justiça acerca dos pretendentes e crianças vinculados ao Cadastro Nacional de Adoção. Os dados indicam que, no dia 01/10/2016, foram registrados um total de 35.874 pretendentes disponíveis para um total de 4.914 crianças aptas à adoção.

De acordo com o relatório de pretendentes disponíveis, dentre aqueles que desejam adotar pela faixa etária, a preferência está em crianças com até três anos de idade, sendo de 20,22% o total de pretendentes que desejam crianças com esse perfil. Em contrapartida, dentre as 4.914 crianças disponíveis, apenas 144 estão na faixa etária de zero a três anos de idade.

Esses dados demonstram, portanto, que a idade tem grande influência na adoção, sendo que o seu avançar cresce de forma inversamente proporcional ao desejo dos pretendentes. Ou seja, restou evidenciado que quanto mais tarde crianças e adolescentes ficam aptas à adoção, menores são as chances de serem adotadas. Sem contar as demais classificações de perfil com as quais as crianças e os adolescentes estão sujeitos, seja com relação à presença de doenças, raça ou sexo, que também influenciam no desejo dos pretendentes e, consequentemente, fazem com que as chances de adoção aumentem ou diminuam para determinada criança/adolescente.

Em pesquisa do Conselho Nacional de Justiça a respeito do tempo dos processos relacionados à adoção no Brasil, publicada em 2015, verificou-se a existência de evidências de que, de certa forma, uma das causas da existência de muitas crianças com idades avançadas no CNA e, consequentemente, de sua não adoção, é a idade de disponibilização. Ou seja, essas crianças já entram no CNA em idade avançada, conforme se depreende do seguinte trecho: “É possível observar, que das crianças disponíveis, mais de 85% entraram no cadastro com mais de 5 anos”. (NUNES, 2015, p. 49).

Não se pode ignorar que, para chegar ao acolhimento institucional, a criança ou o adolescente já passou pelo abandono, por maus-tratos, diversas formas de negligência, carência material e afetiva, sendo que muitas crianças acolhidas, assim como os adolescentes, não demonstram sentimentos para com os genitores no intuito de voltar ao convívio com os mesmos. Devendo, pois, ser sempre praticada a ideia de que o acolhimento institucional é medida excepcional e provisória, mas que seu prolongamento produz consequências prejudiciais às crianças, apenas tendo plena efetividade quando alcançar o retorno da criança e do adolescente ao convívio familiar. (KREUZ, 2012, p. 58-59).

O que pode ser exemplificado através de um interessante estudo realizado com 23 crianças e adolescentes em instituições de acolhimento da cidade de Patos de Minas, em Minas Gerais. Os resultados sugeriram que, dentre outras causas, ter um histórico de acolhimento, e um tempo de acolhimento superior a 2 anos pode potencializar os sintomas de depressão em crianças e adolescentes. (ÁLVARES; LOBATO, 2013, p. 162).

Nesse sentido, a preferência dada aos laços consanguíneos pela própria legislação gera uma obrigatoriedade de esgotar todos os recursos de manutenção da criança em uma família natural ou extensa, a qual pode não querer, de fato, modificar sua conduta para se manter junto à criança ou adolescente. Esse esgotamento de recursos, no entanto, requer um tempo que, muitas vezes, as crianças/adolescentes não possuem, a depender do seu perfil e, principalmente, da sua idade.

Entendimento semelhante pode ser visto nas palavras de Kreuz (2012, p. 83):
Na prática, é comum o sistema de proteção, notadamente, os conselhos tutelares e varas de infância e juventude, tentarem, por anos, a reintegração familiar. Não se ignora a necessidade de envidar todos os esforços possíveis na busca da reinserção familiar, que deve ser a primeira dentre as alternativas que se colocam no caso concreto, mas não pode ser a única. A linha mestra que harmoniza e sustenta os princípios constitucionais aplicáveis à criança e ao adolescente é a da proteção integral. Proteção integral é reconhecer que todas as demais disposições legais devem convergir para atender às necessidades da criança e não às dos adultos, muitas vezes omissos, negligentes e violentos. Tentativas inúteis de reintegração familiar; busca por familiares totalmente ausentes, sem qualquer vínculo com a criança e o adolescente acolhidos, a espera por pais presos e condenados por anos; a espera por recuperação da dependência química ou do alcoolismo, especialmente quando se nota que não há adesão aos tratamentos; tentativas de colocação de crianças com avós ou bisavós com idade avançada, sem condições de assistir as crianças; inserção de crianças e adolescentes em família extensa, quando esta não os deseja, mas o faz como um favor, um ato de caridade, são práticas recorrentes que só vêm em prejuízo das crianças e dos adolescentes acolhidos.

A pesquisa do CNJ acerca do tempo dos processos relacionados à adoção no Brasil, citada anteriormente, verificou que o processo de suspensão ou perda do poder familiar é uma das causas para a disponibilização tardia das crianças à adoção.

As evidências empíricas e as entrevistas com magistrados e funcionários das varas sugerem que é possível que o problema da adoção não seja a duração dos processos de adoção em si, mas sim a duração dos processos relacionados à adoção, especialmente o processo de suspensão ou perda do poder familiar, cuja duração exagerada pode afetar a idade de disponibilização das crianças para adoção e, como consequência, reduzir as probabilidades de adoção dessas crianças. (NUNES, 2015, p. 53).

Nesse sentido, a pesquisa sugere que existe um conflito entre os interesses da criança e de outros atores no processo de adoção, sendo um deles o confronto entre os direitos à ampla defesa e devido processo legal dos genitores e o direito das crianças e adolescentes de colocação em uma nova família no menor tempo possível.

[...] a implementação dessas garantias em favor dos pais podem consumir um tempo valioso que poderia ser empregado em esforços de colocação da criança em uma família substituta, o que reduz suas chances de adoção. Em casos mais graves, essas providências podem deslocar a criança, que está envelhecendo em instituições de acolhimento, para uma faixa etária de quase inadotabilidade. (NUNES, 2015, p. 114).

Observados os problemas relatados, a referida pesquisa trouxe algumas sugestões de aprimoramento do sistema de adoção, das quais destacamos a utilização de critérios objetivos para o ingresso da ação de destituição do poder familiar, uma vez que, de certa forma, relaciona-se com a problemática acima exposta sobre como saber quando se pode considerar esgotados todos os recursos de manutenção na família biológica. Nesse caso, uma das sugestões seria a criação de hipóteses mais objetivas capazes de trazer a presunção para o ingresso imediato da ação de destituição do poder familiar, deixando para o curso do processo a investigação da viabilidade de manutenção da criança ou adolescente em sua família de origem, com pleno respeito ao princípio do contraditório.

Dentro dessas hipóteses estaria o tempo de abandono da criança, tornando-se necessário definir um prazo máximo de permanência em abrigo. As instituições de acolhimento, portanto, informariam a situação da criança enquadrada nessa hipótese, fazendo surgir o dever funcional do representante do Ministério Público de ingressar com a ação de destituição do poder familiar, independentemente da elaboração de relatórios técnicos. Dessa forma, a equipe interprofissional estaria elaborando o relatório necessário, ao mesmo tempo em que o cartório judicial estaria localizando e citando os genitores. Trazendo, pois, uma enorme economia no tempo da criança, principalmente, caso se evidencie, no curso do processo, que a melhor solução para o interesse da criança é a sua disponibilização para a adoção. (NUNES, 2015, p. 120-123).

A demora nas reiteradas tentativas de manutenção da criança/adolescente na família biológica gera sua disponibilização tardia e, consequentemente, faz surgir outro problema: a dificuldade da adoção de crianças com idade elevada.

De acordo com Rosana Maria Souza de Barros (2014, p. 65), utiliza-se o termo adoção tardia para “a adoção de crianças maiores de dois anos, ou seja, que já deixaram de ser bebês, com características físicas e psicossociais diferenciadas de uma criança ainda muito pequena, e consequentemente apresenta demandas de atenção e cuidados distintos de um bebê". No entanto, a mesma autora alerta que a utilização desse termo tem sido questionada e evitada, tendo em vista que pode gerar certos preconceitos, no sentido de relacionar à palavra “tardia” a ideia de que a adoção de crianças maiores de dois anos é impossível.

A preferência dos pretendentes é por crianças mais novas, principalmente bebês, que ainda não demonstram ter consciência dos traumas sofridos pelo abandono e afastamento da família biológica, o que reflete uma menor dificuldade para a adaptação dos pais adotivos. Por essa razão é que Hália Pauliv de Souza relata a devolução, ou desistência de dar continuidade ao processo de adoção já no estágio de convivência, como um dos fatos que geralmente se apresentam nas adoções tardias. Explica que isso ocorre porque, em regra, crianças maiores exigem mais atenção e preparação dos pais.

Onde há adoção, há abandono, existindo lutos e história anterior. Como crianças com menos idade são poucas, os pretendentes acabam aceitando uma criança maior, isto é, fazem a chamada “adoção tardia”. [...] A criança maior vem com muito sofrimento, é infeliz, ávida de afeto, atenção e para verificar se é aceita irá fazer testagens e provocações destes adultos. É ato inconsciente. Exige muita dedicação, paciência, empenho dos novos pais. A adaptação deverá ser dos pais em relação ao filho e o que esperam é o contrário. Aí é que está um dos erros. (SOUZA, 2012, p. 25-26)

Complementa a mesma autora que os maiores percebem a saída dos mais novos e precisam lidar com o sentimento de desesperança de fazer parte de uma família. Então, quando surge a oportunidade de entrarem em uma nova família, fazem todos os testes possíveis para se assegurarem de que serão aceitos e não voltarão para a instituição. (SOUZA, 2012, p. 31).

Rosana Maria Souza de Barros (2014, p. 65-66), indica que a adoção de crianças maiores de dois anos traz uma singularidade consubstanciada no fato de que parte do desenvolvimento dessas crianças se deu em um contexto diferente da família adotiva, onde podem ter vivenciado situações de violência, privação material, negligência, abandono ou, até mesmo, podem ter passado longos períodos em instituição de acolhimento sem atenção individualizada de suas necessidades psicossociais. Algumas famílias, nas tentativas de estabelecer vínculos com a criança, enfrentam essa singularidade e, muitas vezes, não estão preparadas para se adaptar. Essa realidade, no entanto, pode contribuir para a construção da representação social de que a adoção de crianças maiores carrega o peso das dificuldades e dos traumas insuperáveis, concorrendo para o fortalecimento da ideia de que a adoção, especialmente de crianças mais velhas, repercute em “filhos problema”.

Outro obstáculo para adoção tardia apresentado por Barros (2014, p. 67) é o desejo de grande parte dos pretendentes em se amoldarem ao modelo hegemônico de família nuclear burguesa, fundamentada em vínculos consanguíneos. Havendo uma preferência por bebês com características físicas semelhantes a dos pretendentes, permitindo com que criem uma ideia de que o filho surgiu de uma concepção biológica e não por meio da adoção. O que poderia mudar essa realidade seria o incentivo às diversas configurações de famílias, como se pode assimilar do seguinte trecho:

A realização de estudos e a divulgação sobre as diversas configurações de família, inclusive a adotiva, suas especificidades, potencialidades e necessidades, têm significativa importância para a consolidação das diversas representações sociais de família, em que o princípio da consanguinidade e da procriação não sejam considerados essenciais para a constituição familiar. (BARROS, 2014, p. 68-69)

Logicamente, a dificuldade de adoção de crianças com idade elevada, tanto em razão da possibilidade de devolução como em razão da espera por uma família adequada, gera o prolongamento em instituição de acolhimento cujo princípio fundamental é a excepcionalidade e a provisoriedade, caracterizando uma contradição notória. Porém, ainda pior que o acolhimento institucional prolongado é a inserção da criança ou do adolescente em um ambiente familiar que não está adequado às suas necessidades ou que não deseja espontaneamente acolher um novo membro.

Manter uma criança ou adolescente em um ambiente familiar despreparado e sem comprometimento para com suas particularidades, apenas porque há um entendimento dominante de que os laços consanguíneos são a prioridade, pode acarretar em prejuízos irreversíveis.

Pior do que o acolhimento institucional, certamente, é manter ou inserir a criança ou adolescente em uma família que não a deseja, que não a quer, mas muitas vezes pressionada por órgãos de proteção, acaba aceitando. A criança e o adolescente serão, sempre, objetos de favor, sentir-se-ão rejeitados, com inevitáveis consequências de ordem psicológica e social. O sentimento de pertencer, de sentir-se como parte de um grupo social, é uma das necessidades básicas da criança. A família é o primeiro grupo onde se estabelecem os laços afetivos duradouros, seguros, tão importantes para o seu desenvolvimento. (KREUZ, 2012, p. 84)

O que se extrai da leitura do § 1º do art. 39 do ECA, bem como da doutrina e pesquisas citadas neste capítulo, reflete mais em um privilégio ofertado pela legislação à família de origem, em razão da existência de uma ligação consanguínea entre os envolvidos.

Essa preferência gera a obrigatoriedade de esgotar todos os recursos para a manutenção da criança/adolescente junto à família natural ou extensa, mesmo não existindo norma que limite a quantidade de esforços para a reinserção sem que haja alguma resposta positiva, gerando um prolongamento prejudicial à criança/adolescente em situação de acolhimento.

Nesse sentido, a prioridade exagerada na manutenção com a família biológica, apenas por existir vínculos consanguíneos, traz prejuízos às crianças/adolescentes de três formas: quando prolonga sua institucionalização, quando impede que tenham a possibilidade de ingressarem em uma família adotiva, e quando há uma reinserção em família natural ou extensa sem a existência real de vínculos afetivos.
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ALBUQUERQUE, Cecília. Adoção excepcional: um confronto entre o biológico e o afetivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5181, 7 set. 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/60108>. Acesso em: 8 set. 2017.

Adoção - 5 A MANUTENÇÃO JUNTO À FAMÍLIA DE ORIGEM É SEMPRE O MELHOR?

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Para dar continuidade à indagação aqui proposta, é de grande importância entender, inicialmente, o poder familiar e seu reflexo no processo de adoção, uma vez que esse confronto ajudará na elucidação dos questionamentos objetos deste capítulo.

O poder familiar “é o exercício da autoridade dos pais sobre os filhos, no interesse destes”. (LÔBO, 2011, p. 295). Como previsto no artigo 21 do Estatuto da Criança e do Adolescente, este poder será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, perdurando até a maior idade dos filhos ou até a emancipação destes, quando então se extinguirá. Nesse contexto, o poder familiar pode ser definido como:
[...] um complexo de direitos e deveres pessoais e patrimoniais com relação ao filho menor, não emancipado, e que deve ser exercido no melhor interesse deste último. Sendo um direito-função, os genitores biológicos ou adotivos não podem abrir mão dele e não o podem transferir a título gratuito ou oneroso. (MACIEL, 2010, p. 82).

A adoção atribui a condição de filho ao adotado, em que se cria um vínculo de filiação, do qual repercutem diversas responsabilidades, dentre as quais se destaca o poder familiar. Contudo, esse poder parental não advém da adoção em si, mas da relação de filiação existente entre pais e filhos que pode ser constituída mediante a adoção, isto é, “decorre tanto da paternidade natural como da filiação legal ou socioafetiva” (DIAS, 2013, p. 436). Por isso é que se afirma que os pais biológicos, naturalmente, a partir do nascimento com vida de seu filho, já possuem esse poder familiar.

Nesse caso, como uma das características do poder parental é a irrenunciabilidade e a intransferibilidade, não há como se transferir esse poder-dever dos pais biológicos aos adotivos, sendo necessário, primeiramente a extinção ou a perda do poder familiar dos genitores para que a adoção possa constituir um novo vínculo e consequentemente um novo poder familiar.

Na perspectiva do poder familiar, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 22, delega aos pais “o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais”. O Código Civil, por sua vez, apresenta um rol de competências nos incisos do artigo 1.634 que constituem o pleno exercício do poder familiar. Embora nesse extenso rol não tenha sido elencado “o que talvez seja o mais importante dever dos pais com relação aos filhos: o dever de lhes dar amor, afeto e carinho.” (DIAS, 2013, p. 440).

No entanto, nas palavras de Paulo Lôbo (2011, p. 302), os deveres provenientes do poder familiar constantes no ECA e na Constituição somam-se aos elencados pelo Código Civil.

Existem, apesar de tudo, situações em que os pais podem perder o poder familiar, em razão de atitudes suas que ponham “em perigo permanente a segurança e a dignidade do filho”. (LÔBO, 2011, p. 308). Destacando-se, no entanto, que a perda do poder familiar tem um caráter sancionatório e protetivo, não se confundindo com sua suspensão ou sua extinção, vez que a suspensão consiste em uma medida menos gravosa e de caráter temporário, sujeita a revisão. E a extinção, por sua vez, ocorre em razão de situações incompatíveis com a manutenção do poder parental em face dos filhos e, no mais das vezes, não rompe o vínculo de filiação e parentalidade existente. (DIAS, 2013, p. 444-446). Na interpretação do artigo 1.635 do Código Civil, observa-se que a perda do poder familiar é uma das hipóteses que levam à extinção do mesmo.

A respeito do tema, dispõe Maciel (2010, p. 135):
[...] a perda ou a destituição do poder familiar é uma das formas de extinção do poder familiar (art. 1635, V, do CC) que ocorre dos casos de castigos imoderados, abandono, atos contrários à moral e aos bons costumes, incidência reiterada nas faltas antecedentes e, ainda, quando comprovado o descumprimento injustificado dos deveres inerentes ao poder familiar (art. 24 do ECA).

A mesma autora complementa, ainda, explicando que a destituição do poder familiar depende de uma decisão judicial condenatória, a qual deve ser proferida em ação própria, dando aos pais, portanto, o direito ao contraditório.

Além dos descumprimentos injustificados quanto aos deveres de guarda, educação e sustento, a legislação civil traz outras hipóteses que ensejam na perda do poder familiar, quais sejam castigar imoderadamente o filho, deixá-lo em abandono, praticar atos contrários à moral e aos bons costumes e incidir reiteradamente nas faltas que levam à suspensão do poder parental, todas previstas no artigo 1.638 do Código Civil. Ademais, como previsto nos artigos 98 e 101 do ECA, a falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável, são causas que podem levar ao acolhimento institucional.

De acordo com pesquisa realizada pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que fez inspeção em 2.370 entidades brasileiras de acolhimento institucional, foi constatado que, dentre as principais causas de acolhimento de crianças e adolescentes, a negligência dos pais ou responsáveis encontra-se em primeiro lugar, seguido por alcoolismo e dependência química dos pais, abandono e violência doméstica. Na interpretação dos referidos dados, a pesquisa destacou, ainda, o seguinte:

Em todos os gráficos, a violência doméstica e a sexual praticada pelos pais ou responsável ocupam as primeiras posições dentre as causas que levam as crianças e adolescentes aos serviços de acolhimento. Dados recolhidos pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAM) do Ministério da Saúde em 2011 e divulgados no Mapa da Violência em 2012 registram que a maioria esmagadora dos atos de violência cometidos contra crianças e adolescentes, em todas as faixas etárias, acontecem dentro de casa. O maior número de vítimas está entre 1 a 4 anos: 78,1% dos atos de violência ocorrem dentro de sua própria residência. (BRASIL, 2013, p. 46).

O Relatório sobre Violência e Saúde apresenta quatro formas de maus-tratos que podem ser cometidos por parte dos responsáveis pelos cuidados com os infantes: o abuso físico, sexual, emocional e a negligência. Destacando, contudo, que a negligência não pode ser confundida com as circunstâncias de pobreza, vez que, diferentemente destas, a negligência apenas se configura nos casos “onde recursos razoáveis estejam disponíveis para a família ou responsável” (KRUG, et al, 2002, p. 60) e, mesmo assim, insistem em não utilizá-los em favor das crianças ou adolescentes.

O que deve ser veementemente verificado, uma vez que o ECA proíbe a suspensão ou perda do poder familiar por mera falta ou carência de recursos materiais (Art. 23). Ademais, a violência doméstica contra crianças e adolescentes gera consequências severas às vítimas, impedindo seu desenvolvimento saudável, conforme se depreende do fragmento adiante:

As pesquisas revelaram que a exposição de crianças e adolescentes à violência doméstica pode trazer consequências múltiplas e severas às vítimas. Estudos comprovam que a violência afeta o desenvolvimento emocional, comportamental, social, sexual e cognitivo das vítimas, interferindo negativamente no seu bem-estar e qualidade de vida, e as sequelas podem persistir ao longo da fase adulta. (BARROS; FREITAS, 2015, p. 105).

No estudo realizado por Fukuda, Penso e Santos (2013, p. 79-84) sobre o perfil sociofamiliar de crianças e adolescentes com múltiplos acolhimentos institucionais em Brasília/DF, entre 2007 e 2009, foram identificados 248 motivos para o acolhimento institucional, sendo os de maior frequência maus-tratos (19,8%), vivência de rua (18,5%) e negligência (17,7%). Ficou evidenciado, também, uma duração média de 3 anos das medidas de acolhimento.

Nesse sentido, acerca dos resultados gerais dessa pesquisa, concretizou-se o entendimento de que as múltiplas medidas de acolhimento foram caracterizadas por uma fragilidade familiar e social em razão da falta de assistência do Estado, gerando a necessidade de que os pais entregassem seus filhos às instituições de acolhimento por falta de recursos financeiros e violência. Em contrapartida, na pesquisa realizada pelo Conselho Nacional do Ministério Público (BRASIL, 2013, p. 43-46) a carência de recursos materiais como motivo de acolhimento não consta nas primeiras colocações, ocasião em que, no ano de 2012, apareceu em 32% dos casos, tanto nos abrigos quanto nas casas-lares; em 2013, apareceu em 26% dos casos nos abrigos e em 21% nas casas-lares. Ou seja, sempre abaixo do número de casos relacionados à negligência, dependência química dos responsáveis, abandono e violência.

Como muito bem evidencia Kreuz (2012, p. 50-51), boa parte dos acolhimentos não ocorrem em razão de uma única causa. Geralmente a pobreza é uma das causas, sendo acompanhada da negligência, falta de higiene, alcoolismo, drogas, maus-tratos, abandono escolar, entre outros. Inclusive, informa que, nos últimos tempos, tem ocorrido um aumento significativo de acolhimentos institucionais em razão de dependência química e do alcoolismo dos responsáveis, e que nessas circunstâncias:
[...] raros são os casos que permitem o retorno dessas crianças às suas famílias biológicas. Os tratamentos existentes para os dependentes químicos, quando aceitos, normalmente são de longa duração, o que faz com que os já fragilizados vínculos afetivos existentes entre pais e filhos se enfraqueçam ainda mais, quando não se rompem definitivamente. Além do tempo prolongado, os resultados desses tratamentos são incertos, não têm eficácia, em grande parte dos que a eles se submetem.” (KREUZ, 2012, p. 50).

É importante destacar que não é apenas a situação de vulnerabilidade, acima demonstrada, que prejudica o desenvolvimento saudável da criança/adolescente. O acolhimento institucional prolongado, impedindo o infante de conviver em ambiente familiar, também propicia complicações significantes.

Diante desse contexto, é importante verificar quais os reais motivos que levam uma criança ou adolescente às instituições de acolhimento. Isto é, se a situação de vulnerabilidade da criança ocorreu somente em razão de pobreza da família ou se decorrente de uma família completamente desligada de vínculos afetivos para com o infante. Pois, a partir desse entendimento inicial, será mais fácil compreender quando a reinserção na família biológica é uma possibilidade evidente ou se a preparação para a adoção é o melhor caminho.
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ALBUQUERQUE, Cecília. Adoção excepcional: um confronto entre o biológico e o afetivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5181, 7 set. 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/60108>. Acesso em: 8 set. 2017.

4 ADOÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO VIGENTE

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A adoção na visão de Digiácomo (2013, p. 190) “é o instituto pelo qual se estabelece o vínculo de filiação por decisão judicial, em caráter irrevogável, quando não for possível a manutenção da criança ou adolescente em sua família natural ou extensa”. Complementa Bordallo (2010, p. 205) que “a esta modalidade de filiação dá-se o nome de parentesco civil, pois desvinculado do laço de consanguinidade, sendo parentesco constituído pela lei, que cria uma nova situação jurídica, uma nova relação de filiação”.

O ECA não apresenta muitas restrições para que alguém possa adotar, salvo àquelas necessárias para proteger a criança/adolescente.

Quanto aos adotantes, de acordo com seu artigo 42, o estatuto exige a maior idade do indivíduo para que possa adotar, assim como uma diferença de idade de 16 anos entre adotante e adotando. O §1º do mesmo artigo traz impedimento total quanto à adoção por ascendentes e irmãos, uma vez que:

[...] o adotado é descendente e, na hipótese de irmãos, confundiria a relação de parentesco tão próximo (irmão e filho, ao mesmo tempo). O avô, por exemplo, pode ser detentor da guarda do neto, pode ser seu tutor, mas não pode adotá-lo como filho. Por conseguinte, não há impedimento para adoção de parentes colaterais de terceiro grau, a exemplo de sobrinhos, muito comum nos costumes brasileiros. (LÔBO, 2011, p. 277)

Em relação aos tutores e curadores, pelo que dispõe o artigo 44 do Estatuto da Criança e do Adolescente, estes são impedidos de adotar pupilo ou curatelado até que prestem contas de suas administrações. Tratando-se, pois, de impedimento parcial, tendo em vista que “ao ser superada a causa, ou seja, forem prestadas as contas, não haverá nenhum empecilho à adoção”. (BORDALLO, 2010, p. 206)

Salienta-se que, nos termos do artigo 43 do estatuto, a adoção apenas será deferida “quando apresentar reais vantagens ao adotando e fundar-se em motivos legítimos”. Tal preceito está intimamente ligado ao princípio do superior interesse da criança e da proteção integral, principalmente quando exige motivos legítimos à adoção, que, embora seja um termo bastante abstrato, impede que alguém possa adotar por motivos alheios à noção de filiação e suas responsabilidades. Deve-se ter em mente que a adoção não deve ser mais vista como solução para adultos com problemas e sim como garantia à convivência familiar de crianças e adolescentes.

O fundamental é que a adoção é uma medida de proteção aos direitos da criança e do adolescente, e não um mecanismo de satisfação de interesses dos adultos. Trata-se, sempre, de encontrar uma família adequada a uma determinada criança, e não buscar uma criança para aqueles que querem adotar. (BECKER, 2013, p. 207)

Quanto aos adotandos, tendo em vista a excepcionalidade da adoção, crianças e adolescentes apenas poderão ser adotadas quando não mais tenham qualquer possibilidade de reintegração na família de origem ou que não possuam família natural (BORDALLO, 2010, p. 207).

À vista disso, não será possível a adoção sem o consentimento dos representantes legais do adotando, em razão do que dispõe o artigo 45 do ECA. Devendo sempre ser considerada a vontade da criança e, no caso de adolescentes maiores de 12 anos de idade, estabelece o § 2º do mesmo artigo que seu consentimento será também necessário para a efetivação da adoção. Em contrapartida, o artigo 45, por meio do seu § 1º, apresenta as hipóteses em que o consentimento dos representantes legais será dispensado, o que somente ocorrerá quando os pais forem desconhecidos ou tenham sido destituídos do poder familiar.

A intensão do legislador, nesse caso, foi evitar o prolongamento desnecessário do processo com uma tentativa fadada ao insucesso de conseguir suprimento de autorização dos pais que não têm mais qualquer ligação com seus filhos.

A criança/adolescente, todavia, somente estará apta à adoção quando ocorrer o trânsito em julgado da sentença judicial fundamentada, prevista no art. 1º, § 1º da Lei nº 12.010/09, apoiada na impossibilidade da recolocação junto à família natural. Destacando ainda, que a inclusão no Cadastro Nacional de Adoção (CNA) deve ser feita logo após o trânsito em julgado da sentença e pela mesma autoridade judiciária que deixou a criança/adolescente apta à adoção. (RIO GRANDE DO SUL, 2016). De forma mais precisa, o § 8º do artigo 50 do ECA estabelece um prazo de 48 horas para que a autoridade judiciária providencie a inscrição das crianças e adolescentes em condições de serem adotadas no CNA.

Conforme aponta Bordallo (2010, p. 227):
O responsável pela alimentação dos cadastros será a autoridade central estadual (art. 50, § 9º, ECA, acrescido pela Lei 12.010/09) – o Poder Judiciário – que transmitirá estas informações para o cadastro nacional, cuja responsabilidade está a cargo do Conselho Nacional de Justiça.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, já em sua publicação original, estabelecia que em cada comarca ou foro regional deveria haver um registro de crianças e adolescentes aptas à adoção e outro de pessoas interessadas em adotar. Ocorre que no ano de 2008, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com o intuito de aprimorar a referida regra, editou a Resolução nº 54, implantando no Brasil o Cadastro Nacional de Adoção, unificando os dados existentes em cada comarca das unidades da federação. O objetivo da referida medida foi facilitar e agilizar os processos de adoção.

Entretanto, com o advento da Lei 12.010/09, acrescentando o § 1º ao artigo 39 do ECA, a adoção torna-se ainda mais excepcional, sendo recorrida somente após esgotadas todas as possibilidades de manutenção da criança ou do adolescente na família natural ou extensa. Assim, diante dessa determinação, para que a criança/adolescente tenha a possibilidade de ser adotada, deverá caminhar por uma estrada longa e íngreme.

No caso de crianças de tenra idade abandonadas, sem qualquer informação de sua origem, o processo tende a ser mais célere, embora seja admitida a demora na hipótese desta ocorrer em razão das tentativas de descobrir a família biológica do infante. Já para as crianças maiores e adolescentes que são capazes de informar sobre sua origem, deve ser feita uma verificação da veracidade das informações prestadas, bem como uma investigação sobre os reais motivos que ensejaram no acolhimento institucional a fim de que se possa constatar a possibilidade de reintegração familiar.

Nessa situação, um dos grandes problemas se manifesta quando a criança/adolescente encontra-se abrigada, mas recebendo visitação esparsa de sua família biológica, vez que há uma grande dificuldade de identificar, nesses casos, se houve ou não o abandono. (BORDALLO, 2010, p. 224-225).

A Lei 12.010/09, no entanto, também acrescentou o § 1º ao artigo 19 do ECA, estabelecendo que:
Toda que criança ou adolescente que estiver inserido em programa de acolhimento familiar ou institucional terá sua situação avaliada, no máximo, a cada 6 meses, devendo a autoridade judiciária competente, com base em relatório elaborado por equipe interprofissional ou multidisciplinar, decidir de forma fundamentada pela possibilidade de reintegração familiar ou colocação em família substituta. (BRASIL, 1990).

A avaliação a cada seis meses permite à equipe multidisciplinar identificar com mais rapidez a situação das crianças e adolescentes afastadas da família natural, ou seja, se podem ser reintegradas ou não. Porém essa regra não impede que se mantenham nessa situação por longos períodos. Isso porque o § 2º do mesmo artigo, também acrescentado pela Lei nº 12.010/09, embora traga uma limitação do tempo em que uma criança/adolescente possa permanecer em programa de acolhimento institucional, o período de dois anos (que pode ser prorrogado) ainda continua sendo deveras extenso para que uma criança ou adolescente se mantenha afastada de um ambiente familiar, seja ele fundado em laços consanguíneos ou não.

Conforme expõe Bordallo (2010, p. 226):
Apesar de termos o prazo de seis meses para a avaliação de cada um dos casos, temos que ter em mente que este prazo não precisa ser de todo utilizado, podendo e devendo ser elaborado relatório de cada um dos casos em período inferior, tudo dependendo do fato em concreto. Devemos trabalhar com o conceito de razoabilidade em face de cada caso concreto para chegarmos à conclusão de estar, ou não, o menor abrigado, em condição de ser inserido no cadastro de adoção. Exemplificando, a criança/adolescente que recebe visitas esporádicas do seu pai ou parente e este, após instado a buscar meios para poder ter o filho novamente sob sua guarda, nada faz, mostrando que prefere que a medida de abrigo se mantenha, está em condições de ser adotada. [...] A pior coisa que pode acontecer para uma criança/adolescente é encontrar um profissional que fica com pena da situação apresentada pelo genitor ou parente e fica tentando manter um vínculo que, de fato, não existe. [...] Mesmo existindo norma expressa (§ 3º, do art. 19, do ECA, acrescido pela Lei nº 12.010/09) determinando que a manutenção e reintegração familiar serão medidas que terão preferência sobre qualquer outra, não podemos nos esquecer que a atuação de todos os profissionais que atuam na área da infância e juventude deverá ter em mente o que for melhor para o destinatário da medida. E o destinatário da medida é a criança/adolescente, não sua família.

Realizadas, pois, todas as medidas e constatada a impossibilidade de reintegração na família de origem, só então a criança ou o adolescente terá seu nome inserido do Cadastro Nacional de Adoção.

Ato contínuo, o artigo 46 do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece o estágio de convivência como uma etapa primordial para o convencimento do juízo acerca da adoção.

Isso acontece para que tanto a equipe interprofissional quanto a autoridade judiciária possam verificar o fortalecimento dos laços afetivos, a adaptação da criança ou adolescente com a família e o novo ambiente, ou seja, se a adoção é conveniente e atende os maiores interesses do infante.

Estágio de convivência é o período no qual a criança ou o adolescente é confiado aos cuidados da(s) pessoa(s) interessada(s) em sua adoção (embora, no início, a aproximação entre os mesmos possa ocorrer de forma gradativa), para que seja possível avaliar a conveniência da constituição do vínculo paterno-filial. Por força do contido no caput do dispositivo, a realização do estágio de convivência será a regra, como forma de aferir a adaptação da criança ou adolescente à família substituta e a constituição de uma relação de afinidade e afetividade entre os mesmos, que autorize o deferimento da adoção. (DIGIÁCOMO, 2013, p. 212).

Após toda a espera da criança/adolescente, a adoção, como dispõe o caput do artigo 41 do ECA, desliga o adotado de qualquer vínculo com pais e parentes biológicos, atribuindo-o a condição de filho do adotante, com os mesmos direitos e deveres que teria o filho biológico, inclusive sucessórios, sendo mantido com a família biológica apenas os impedimentos matrimoniais. A extinção do vínculo de consanguinidade, portanto, demonstra a opção do direito brasileiro pela família socioafetiva, bem como pela filiação fundada na afetividade, independentemente de sua origem (LÔBO, 2011, p. 289).

A nossa Constituição Federal, por meio do art. 227, garante à toda criança ou adolescente o direito à convivência familiar, sendo dever da sociedade, da família e do Estado, a assegurar-lhes esse direito, além de protegê-los de qualquer forma de discriminação, violência, crueldade, opressão, exploração e negligência. A adoção, pois, se configura como meio efetivo de proteção do infante diante de tais situações, bem como do abandono, sendo uma forma de garantia à convivência familiar.

(...)

ALBUQUERQUE, Cecília. Adoção excepcional: um confronto entre o biológico e o afetivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5181, 7 set. 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/60108>. Acesso em: 8 set. 2017.

3 O SUPERIOR INTERESSE E A AFETIVIDADE COMO INGREDIENTES DO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR

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O primeiro documento internacional que faz referência aos direitos da criança, tratando-a como sujeito de direitos, é datado do ano de 1924, quando a Assembleia da Sociedade das Nações reconheceu os princípios elencados na Declaração dos Direitos da Criança promulgada anteriormente pelo Conselho da União Internacional de Proteção à Infância.

Esse documento ficou conhecido como Declaração de Genebra de 1924, a qual visava uma proteção especial à criança. Contudo, apenas mais tarde, após a Segunda Guerra Mundial, o melhor interesse da criança ganhou mais notoriedade. Isto é, quando a Assembleia Geral das Nações Unidas promulgou a Declaração dos Direitos da Criança, em 1959 (ALBUQUERQUE, 2015), dispondo em seu princípio 2 que:

A criança gozará proteção social e ser-lhe-ão proporcionadas oportunidades e facilidades, por lei e por outros meios, a fim de lhe facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, de forma sadia e normal e em condições de liberdade e dignidade. Na instituição das leis visando este objetivo levar-se-ão em conta, sobretudo, os melhores interesses da criança. (Declaração dos Direitos da Criança, 1959).

Percebe-se que, desde então, esse princípio tornou-se determinante, passando a ser observado nos demais instrumentos jurídicos que visam a proteção da criança. A Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, em seu artigo 3º, é bem expressiva quando estabelece que todas as ações relacionadas às crianças devem, primordialmente, considerar o maior interesse destas. Seu artigo 9º, da mesma forma, utiliza o maior interesse do menor como orientador para busca da melhor solução nas situações de conflito entre o direito da criança em se manter junto aos pais ou afastada dos mesmos.

A origem histórica desse instituto protetivo é anterior às convenções internacionais referentes aos direitos das crianças. Mas foi a partir da Convenção sobre os Direitos da Criança, adotando a doutrina da proteção integral, assim incorporada pelo artigo 227 da Constituição Federal de 1988, que se adotou um novo olhar sobre a aplicabilidade desse princípio. O que antes se limitava a crianças e adolescentes em situação irregular, atualmente é aplicado a todo público infanto-juvenil, sendo entendido como o princípio que orienta tanto o legislador quanto o aplicador como critério de interpretação da lei, na solução de conflitos e, até mesmo, na elaboração de futuras normas. (AMIN, 2010, p. 27-28).

O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente não se limita, portanto, à interpretação das leis, uma vez que também deve ser utilizado como orientador das políticas públicas, assim como na aplicação de medidas de proteção pela rede de atendimento ou nas ações administrativas. Nesse sentido, as decisões devem sempre se voltar para aquelas soluções que atendem melhor os interesses das crianças/adolescentes e não dos adultos ou seus responsáveis, considerando não somente o interesse imediato, como também o seu futuro. (KREUZ, 2012, p. 73-74).

Para dar início a uma análise mais atenta ao princípio da convivência familiar, é importante entender o significado dessa expressão. Paulo Lôbo (2011, p. 74) entende convivência familiar como “a relação afetiva diuturna e duradoura entretecida pelas pessoas que compõem o grupo familiar, em virtude de laços de parentesco ou não, no ambiente comum”. Percebe-se, nessa conceituação, a valorização do afeto com a independência de laços de parentesco, o que, de certa forma, não harmoniza com entendimento exposto por Maciel (2010, p. 75) ao conceituar convivência familiar como sendo:

[...] o direito fundamental de toda pessoa humana de viver junto à família de origem, em ambiente de afeto e de cuidado mútuos, configurando-se como um direito vital quando se tratar de pessoal em formação (criança e adolescente).

A autora, nessa oportunidade, destaca a valorização da família de origem, isto é, dos laços consanguíneos, embora ambos concordem que o afeto deve estar presente para caracterizar o ambiente familiar saudável.

A Constituição Federal faz alusão ao princípio da convivência familiar na redação do artigo 227, garantindo a proteção integral do menor, consequentemente priorizando o seu desenvolvimento saudável através da manutenção em um ambiente familiar adequado. No entanto, instrumentos normativos anteriores à nossa Constituição de 1988 já abordavam acerca da importância da família no desenvolvimento saudável dos infantes.

A Declaração dos Direitos da Criança, em 1959, já norteava, em seu princípio 6, sobre a necessidade de um ambiente afetivo e familiar, inclusive, trazendo obrigações à sociedade e às autoridades públicas para que assegurassem esses cuidados especiais às crianças sem família. Ademais, o preâmbulo da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, ainda que após a nossa Constituição, apresenta o reconhecimento internacional da imprescindibilidade de uma criança crescer em um ambiente familiar repleto de amor, compreensão e felicidade, para o seu desenvolvimento pleno e harmonioso.

Notável passagem do referido princípio 6 da Declaração dos Direitos da Criança orienta a necessidade do infante criar-se “sempre que possível, aos cuidados e sob a responsabilidade dos pais e, em qualquer hipótese, num ambiente de afeto”. Destaque-se a utilização da expressão “em qualquer hipótese”, vez que nos remete à compreensão de que o afeto foi reconhecido como elemento primordial para o pleno desenvolvimento da criança ainda na década de cinquenta. A utilização dessa expressão, portanto, indica que uma criança, ainda que não seja possível se manter sob a responsabilidade dos pais biológicos, deverá, necessariamente, ser criada em um ambiente afetivo.

Os ensinamentos de Sindey Guerra (2013, p. 53) apontam que as declarações de direitos “têm força na medida em que os textos constitucionais erigem seus ditames como princípios informadores e de validade de toda a ordem jurídica nacional, e valem na medida em que essa mesma ordem jurídica está preparada para torna-las efetivas”.

Nesse sentido, Kreuz (2012, p. 52-53) afirma que os tratados acima referidos reconheceram expressamente o afeto como um direito fundamental da criança, e que o Brasil, ao tornar-se signatário destes, incorporou definitivamente o afeto como um princípio jurídico e um direito fundamental. Conservando o mesmo entendimento, Maria Berenice Dias (2013, p. 72) preleciona que “o princípio norteador do direito das famílias é o princípio da afetividade”.

Interessante análise de Mônica Rodrigues Cuneo (2016) apresenta um estudo demonstrando como a presença ou a falta de afeto pode influenciar no desenvolvimento da criança:

O psicanalista René Spitz estudou as relações vinculares e a formação do apego. Em suas pesquisas realizadas junto a um orfanato, Spitz (1945) observou que os bebês institucionalizados que eram alimentados e vestidos, mas não recebiam afeto, nem eram segurados no colo ou embalados, apresentavam dificuldades no seu desenvolvimento físico, faltava-lhes apetite, perdiam peso, sofriam de insônia, tinham grande suscetibilidade a resfriados intermitentes, desenvolviam sentimentos de abandono e embotamento afetivo e, com o tempo, perdiam o interesse por se relacionar.

Esse estudo estimula uma compreensão de que os laços afetivos consubstanciados por atos de carinho, cuidado e amor, representam o elemento precípuo para o desenvolvimento saudável das crianças e adolescentes, independentemente desses laços afetivos originarem-se de vínculos biológicos ou não, desde que estejam em um ambiente familiar. Inegável que “a família pós-moderna ou contemporânea é a família cujos laços de união estão fundamentados no afeto”. (KREUZ, 2012, p.42)

É no seio da família natural que a criança criará os primeiros laços de afetividade, uma vez que aos pais nasce o dever de dedicar aos seus filhos os primeiros cuidados, a segurança e o afeto. Isso ocorre pela simples razão de que a família biológica, em regra, é o primeiro contato humano de uma criança. Nesse sentido, é de maior interesse desta que se mantenha junto à família com a qual tenha criado laços afetivos sólidos.

Contudo, nem sempre os laços afetivos estarão presentes entre a criança e seus pais e parentes consanguíneos. Dessa forma, sem levar em consideração demais variáveis de fatos concretos, a família adotiva se faz profundamente necessária para concretização do direito fundamental à convivência familiar em um ambiente consolidado em laços de afetividade. Como orienta Kreuz (2012, p. 97), inspirado na recomendação do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, “na reintegração familiar, não se deve sacralizar os laços biológicos, especialmente quando a criança não mantém com os parentes laços afetivos importantes”.

Apesar disso, alguns doutrinadores, assim como a legislação vigente, ainda mantém forte crença na família natural como sendo a única capaz de proporcionar um verdadeiro desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes, priorizando, não a afetividade existente, mas os laços consanguíneos. O que pode ser observado nas palavras de Bordallo (2010, p. 201), em comentários ao Projeto de Lei nº 1.756/03 que tratava da Lei Nacional da Adoção:

Foi bom esse projeto também ter sido arquivado. Dentre os piores problemas que este projeto trazia era o de entender a adoção como um direito da criança e do adolescente, ignorando o direito fundamental à convivência familiar (tendo-se aqui a convivência familiar não só com a família natural, mas, também, com a família extensa).

Percebe-se, pois, dentro desse entendimento expresso por Bordallo, a omissão da família advinda da adoção também como garantidora da convivência familiar.

Todavia, não se pode ignorar todas as transformações socioculturais pelas quais o nosso país passou, principalmente àquelas relacionadas ao conceito de família, as quais levaram o Direito brasileiro à reconhecer a afetividade como um princípio.

Portanto, o direito à convivência familiar interpretado e aplicado sob a orientação do princípio da afetividade assemelha-se à conceituação apresentada por Paulo Lôbo. Isto é, independentemente de laços de parentesco, busca sempre o maior interesse da criança e do adolescente, priorizando os laços afetivos e não a consanguinidade.
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ALBUQUERQUE, Cecília. Adoção excepcional: um confronto entre o biológico e o afetivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5181, 7 set. 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/60108>. Acesso em: 8 set. 2017.

ANÁLISE CRÍTICA: A FAMÍLIA ADOTIVA SOB A ÓPTICA DA LEGISLAÇÃO

O instituto da adoção é tratado pelo ordenamento jurídico como último recurso. Há entendimento dominante de que os laços consanguíneos são mais adequados ao bom desenvolvimento da criança/adolescente, e que, em razão disso, deve-se buscar sua manutenção junto à família natural. Mas considerar apenas o vínculo biológico é uma contradição.
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2 ANÁLISE CRÍTICA: A FAMÍLIA ADOTIVA SOB A ÓPTICA DA LEGISLAÇÃO

O Estatuto da Criança e do Adolescente, em sua redação original, já contemplava o conceito de família natural, sendo esta entendida como a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes. Maria Berenice Dias (2013, p. 57) afirma que essa expressão está vinculada à noção de família biológica, em sua concepção nuclear. Trata-se, portanto, de uma definição fundada eminentemente no aspecto consanguíneo, não alcançando a família proveniente da adoção (MACIEL, 2010, p. 71). Washington de Barros Monteiro (2013, p. 129), no entanto, estabelece que a expressão do artigo 25 “procurou, tão somente, fixar o dualismo com a família substituta”.

A família extensa, por outro lado, foi incluída no ECA pela lei 12.010/09, que inovou ao acrescentar o parágrafo único ao artigo 25 do citado estatuto. Trata-se de um alargamento do conceito de família natural, em que se considera também como família os parentes próximos da criança/adolescente, com os quais a mesma conviva e tenha vínculos afetivos. Ishida (2014, p. 72) comenta sobre os termos afetividade e afinidade expressos no parágrafo único do artigo 25, entendendo como afetividade algo que comporta uma ideia de sentimento e amor, enquanto a afinidade teria, não o sentido de parentesco previsto no código civil, mas o de proximidade e interesses convergentes entre a criança/adolescente e o parente.

Prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente na seção III, a família substituta possui uma definição residual, ou seja, aquilo que não se enquadrar na definição de família natural ou extensa será a substituta, a qual é materializada a partir de três institutos: guarda, tutela e adoção, conforme se observa na leitura do artigo 28 do ECA. A guarda e a tutela, porém, não possuem um caráter sólido como o tem a adoção, pois, como disposto no artigo 41 do referido estatuto, esta atribui ao adotado a condição de filho, diferentemente do que ocorre com as demais formas de colocação em família substituta. Bordallo (2010, p. 197) destaca entendimento semelhante quando exprime que a adoção, dentre todas as modalidades de colocação em família substituta, é:

[...] a mais completa, no sentido de que há a inserção da criança/adolescente no seio de um novo núcleo familiar, enquanto que as demais (guarda e tutela) limitam-se a conceder ao responsável alguns dos atributos do poder familiar. A adoção transforma a criança/adolescente em membro da família, o que faz com que a proteção que será dada ao adotando seja muito mais integral.

É evidente que a adoção, analisada em décadas anteriores, não era vista sob essa perspectiva. Foram as transformações sociais e culturais que ensejaram nessa mudança na maneira de enxergar a filiação no ordenamento jurídico brasileiro. Onde antes existia, por exemplo, notório tratamento diferenciado entre filhos legítimos e adotivos, hoje não se admite qualquer tipo de discriminação entre ambos. Sustenta Paulo Lôbo (2011, p. 273) que a ordem jurídica brasileira optou pela família socioafetiva quando igualou os direitos dos filhos biológicos e adotados, indicando que:

[...] a filiação não é um dado da natureza, e sim uma construção cultural, fortificada na convivência, no entrelaçamento dos afetos, pouco importando sua origem. Nesse sentido, o filho biológico é também adotado pelos pais, no cotidiano de suas vidas.

Em uma tentativa conceitual, Dias (2013, p. 498) aponta que “a adoção constitui um parentesco eletivo, pois decorre exclusivamente de um ato de vontade”. No entanto, este ato de vontade deve conter um elemento essencial para sua formação, qual seja o vínculo afetivo entre adotante e adotado, o que pode ser verificado no artigo 46 da Lei 8.069/90, quando esta impõe que a adoção seja precedida de estágio de convivência.

À vista disso, por mais que o afeto seja reconhecido juridicamente como princípio, como se verá mais à frente, percebe-se certa incongruência quando se confronta esses entendimentos com o ordenamento jurídico vigente, especialmente com a lei 12.010/09. O que se verifica na leitura do art. 1º, § 1º, da referida lei.

A intervenção estatal, em observância ao disposto no caput do art. 226 da Constituição Federal, será prioritariamente voltada à orientação, apoio e promoção social da família natural, junto à qual a criança e o adolescente devem permanecer, ressalvada absoluta impossibilidade, demonstrada por decisão judicial fundamentada. (BRASIL, 2009).

Isso porque nossa ordem jurídica adota um posicionamento de priorizar a família natural como melhor medida a atender o direito à convivência familiar do infante, o que, em uma análise superficial, não incorre em qualquer problemática, mas que quando estudado com maior profundidade, é possível verificar que os laços consanguíneos ainda são considerados mais importantes que os laços afetivos.

O artigo 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu texto original, já previa a excepcionalidade da convivência no seio da família substituta. Esse entendimento atende à premissa de que as crianças/adolescentes não podem ser retiradas do seio de sua família sem qualquer motivo plausível, isto é, sem que haja um enorme prejuízo ao seu desenvolvimento saudável.

Contudo, o artigo 19 não apresenta a priorização dos laços consanguíneos. A preferência ao vínculo biológico em detrimento do adotivo é verificado no artigo 39, §1º, do ECA, introduzido pela Lei 12.010/09, que trata da excepcionalidade do instituto da adoção, pelo qual somente se recorrerá após esgotadas todas as medidas necessárias para a manutenção do vínculo com a família natural ou extensa.

Esta interpretação pode ser verificada nos ensinamentos de diversos doutrinadores, no sentido de que:

Finalmente, a Lei nº 12.010/09 elegeu a família natural como prioridade (art. 1º, § 2º), entidade a qual a criança e o adolescente devem permanecer, ressalvada a absoluta impossibilidade, devendo existir decisão judicial fundamentada. Assim, nos procedimentos da infância e juventude, a preferência é sempre da mantença do menor junto aos genitores biológicos. Na impossibilidade, existe a colocação em acolhimento familiar ou institucional (§1º). Somente após o acompanhamento técnico-jurídico verificatório da inexistência de condições dos genitores, inicia-se a colocação em lar substituto. (ISHIDA, 2014, p. 43).

Na concepção de Figueirêdo (2013, p. 16-30), a prevalência da família natural sobre a família substituta é um princípio, e a lei 12.010/09 apenas reforçou o que já estava contido no ECA e na Constituição, trazendo mecanismos de orientação, apoio e promoção social capazes de viabilizar essa preferência. O mesmo autor, comentando o §1º do artigo 39 do mencionado estatuto, entende que a tentativa de manutenção em família extensa, como novo obstáculo à adoção, parece atender aos maiores interesses das crianças e dos adolescentes.

Murillo Digiácomo (2013, p. 193), corroborando entendimento semelhante, é mais expressivo em seu posicionamento quando afirma que:

Com tais mecanismos, o legislador tenta reverter uma tendência um tanto quanto perversa e preconceituosa, além de equivocada (com o devido respeito), de parte da doutrina e da jurisprudência de “demonizar” a paternidade biológica em favor da socioafetiva. É preciso tomar cuidado com semelhantes posturas, que têm levado à propositura de ações de destituição do poder familiar de forma açodada, sem a prévia realização de qualquer trabalho sério junto à família de origem da criança ou adolescente voltado a seu “resgate social”, em flagrante violação ao disposto na lei e na Constituição Federal e, não raro, com graves prejuízos àqueles que, com a medida, se pretendia proteger.

Ishida (2014, p. 43), ao dialogar acerca do princípio da convivência familiar, o conceitua como sendo “o direito fundamental da criança e do adolescente a viver junto à sua família natural ou subsidiariamente à sua família extensa”. Percebe-se, pois, a omissão da família substituta, principalmente a advinda da adoção, também como garantidora da convivência familiar.

Outros doutrinadores, porém, contrariando o posicionamento acima destacado, defendem que essa ordem de preferência pelo vínculo biológico pode trazer prejuízos aos infantes. É o que argumenta Dias (2013, p. 57), quando afirma que:

Até chegar-se à adoção, no entanto, há um longo caminho a percorrer: quer tentando-se que os pais adquiram condições de acolher o filho, quer procurando algum familiar que o queira. Só depois de frustradas essas iniciativas é que tem início o exasperante processo de destituição do poder familiar até a inclusão no cadastro à adoção. Enquanto isso, de um modo geral crianças e adolescentes restam anos depositadas em abrigos, perdendo, no mais das vezes, a chance de terem uma família.

Paulo Lôbo (2011, p. 276-277) também apresenta uma avaliação bastante crítica a respeito desse tratamento diferenciado oferecido à família adotiva:

A Lei n. 12.010/2009 encara a adoção como medida excepcional, valorizando excessivamente o que denomina de “família natural” (biológica e nuclear) como se a família socioafetiva também não fosse dotada de mesma dignidade. É uma lei restritiva e limitante da adoção, ao contrário do que apregoaram as razões legislativas. O § 1º do art. 39 do ECA, com a redação introduzida pela lei, é explícito: “a adoção é medida excepcional”, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os esforços para manutenção da criança na “família natural ou extensa”. Este conceito alargado de família extensa abrange os parentes próximos. Se nenhum deles manifestar interesse em cuidar da criança, então se recorrerá à adoção. Condicionar a adoção ao interesse prévio de parentes pode impedir ou limitar a criança de inserir-se em ambiente familiar completo, pois, em vez de contar com pai e (ou) mãe adotivos, acolhido pelo desejo e pelo amor, será apenas um parente acolhido por outro, sem constituir relação filial.

Em pesquisa realizada por Rosana Maria Souza de Barros (2014, p. 131) constatou-se que a representação social de família nuclear burguesa, isto é, aquela constituída por pais e filhos biológicos, em que os vínculos afetivos se estabelecem por meio da consanguinidade, configurou-se na representação de família de todos os pesquisados, indicando ser esta a representação social de família dominante. O que nos remete à reflexão de que, talvez, esse seja o motivo pelo qual os laços consanguíneos são supervalorizados, gerando a preferência pelo vínculo biológico da legislação vigente.

Nesse sentido, há uma tendência de se enxergar a família adotiva apenas como uma alternativa para a resolução de um problema e não como uma garantia à convivência familiar.

De acordo com Barros (2014, p. 47-50), embora a adoção, dentro de um contexto histórico, tenha sofrido transformações, adquirindo uma concepção mais social de garantia aos direitos de crianças e adolescentes, atualmente a sociedade ainda vivencia a adoção como uma forma de dar filhos a quem não os pode gerar. A autora complementa, ainda, que “a sociedade brasileira ainda vê a adoção como última alternativa, como a solução de um problema e supervaloriza a maternidade biológica”. (SCHREINER, p. 50 apud BARROS, 2014, p. 50). Nesse contexto, é possível verificar esse modo de enxergar a adoção na seguinte passagem:

É sonho de muitas famílias ter um filho, todavia, por algumas razões isso não acontece e assim, surge a adoção como solução. A adoção soluciona problemas de quem não pode ter filhos e também das pessoas que por algum motivo nem sequer tem pai ou mãe. (RIEZO, 2014, p. 168)

O instituto da adoção, pois, é tratado pelo nosso ordenamento jurídico como último recurso. Consequentemente a família adotiva é vista sob um aspecto de menor importância, considerando, principalmente, o entendimento dominante de que os laços consanguíneos são mais adequados ao bom desenvolvimento da criança/adolescente, e que se deve buscar sempre a manutenção desta junto à família natural.
(...)

ALBUQUERQUE, Cecília. Adoção excepcional: um confronto entre o biológico e o afetivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5181, 7 set. 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/60108>. Acesso em: 7 set. 2017.