terça-feira, 17 de outubro de 2017

6ª LISTA DE EXERCÍCIOS DE DIREITO CIVIL II – (DO PAGAMENTO)


6ª LISTA DE EXERCÍCIOS DE DIREITO CIVIL II – (DO PAGAMENTO)
PROF.ª PATRICIA DONZELE CIELO
1. Considerando o lugar do pagamento, não dispondo de forma expressa a convenção entre as partes, pode-se dizer que pelo direito brasileiro:
a) A presunção é que o pagamento seja quesível, devendo o devedor ser procurado pelo credor;
b) A presunção é que o devedor ofereça o pagamento ao credor no domicílio deste;
c) O devedor sempre pagará onde o credor indicar, podendo mudar constantemente;
d) A opção do lugar de pagamento sempre caberá somente ao devedor;

2. “A” é devedor de “B”. “C” que não tem nenhum interesse na obrigação, paga a dívida. Assinale a alternativa correta (60º Exame de ordem /MS):
a) Se “C” pagou em nome do devedor não terá direito a receber o que pagou.
b) Se “C” pagou em seu próprio nome sub-roga-se nos direitos do credor.
c) “B” não está obrigado a dar quitação sem a anuência de “A”.
d) Se “C” pagou em seu próprio nome tem direito a se reembolsar, mas só se sub-roga nos direitos do credor se este autorizar.

3. Assinale a alternativa falsa: A quitação regular de dívida, para liberar o devedor e impossibilitar a cobrança de qualquer parcela relativa à obrigação quitada deve conter... (63º Exame de ordem /MS):
a) Designação do valor e da espécie da dívida quitada;
b) Nome do devedor ou quem por este pagou;
c) Tempo e lugar do pagamento;
d) Assinatura do devedor ou de seu representante.

4. Nas obrigações portáveis de dar coisa certa, o perecimento do objeto da prestação, após o prazo de entrega, corre por conta do (117 OAB SP):
a) Credor, independentemente de sua constituição formal em mora.
b) Devedor, independentemente de sua constituição formal em mora.
c) Credor, desde que tenha sido formalmente constituído em mora.
d) Devedor, desde que tenha sido formalmente constituído em mora.

5. Entre os efeitos das obrigações estão estes: (1) atribuir ao credor o direito de exigir do devedor o cumprimento da obrigação no tempo, no lugar e pelo modo devidos; (2) impor ao devedor o cumprimento exato da prestação, e dar-lhe o direito de exigir a quitação da prestação cumprida; (3) ter o credor o direito de demandar o devedor por ações pessoais, se ele incorrer em culpa; (4) repelir o devedor as ações propostas pelo credor, provando que a obrigação se acha extinta ou modificada por alguma cláusula legal; (5) impor ao devedor o cumprimento exato da prestação, ressalvando qualquer possibilidade dele exigir a quitação de sua prestação. (MP/MG 1997)
Da análise das assertivas acima, pode-se concluir que:
a) 1 e 2 estão corretas, e 4 e 5 incorretas;
b) 1, 2, 3 e 4 estão corretas, e a 5 incorreta;
c) 2 e 5 estão corretas, e 1 e 2 incorretas;
d) nenhuma está correta;
e) todas estão corretas;

6. Assinale a alternativa correta. “Aquele que paga o indevido tem o direito de reclamar do que recebeu a repetição do que lhe pagou”. São casos em que o pagamento indevido não confere direito à restituição (60º Exame de ordem /MS):
a) Quando o que recebeu inutilizou o título da dívida.
b) Quando o pagamento se destinava a solver obrigação natural.
c) Quando o pagamento visava obter fim ilícito.
d) As alternativas “a”, “b” e “c” são corretas.       

7. João deve R$ 1.000,00 a Pedro e este recebe esse valor, por depósito em sua conta bancária, após o vencimento da dívida, conforme prometera João. Acreditando haver recebido a dívida, Pedro remeteu o título a João, como quitação e, em seguida, recebeu a cobrança de José que alega haver depositado a importância em conta errada e por engano. Assinale a alternativa correta (61º Exame de ordem /MS):
a) Pedro deve devolver a importância a José e tentar reaver o título dado a João;
b) Pedro deve devolver o valor recebido a José, apenas se este devolver-Ihe o título;
c) Pedro não tem que devolver a que recebeu, nem deve reclamar de João o título;
d) José, demonstrando erro, pode reclamar de João a restituição do valor depositado.

8. Assinalar a opção incorreta: (MP/MG 1999)
a) É indevido o pagamento quando feito em cumprimento de obrigação natural;
b) Não se pode falar em pagamento indevido quando se deu alguma coisa visando à obtenção de fim ilícito;
c) É cabível o pagamento por consignação quando o devedor oferece o objeto da prestação no tempo, modo e lugar convencionados e o credor se recusa a recebê-lo;
d) É cabível o pagamento por consignação quando o devedor oferece o objeto da prestação no tempo, modo e lugar convencionados e o credor se recusa a passar regular quitação;
e) É cabível o pagamento por consignação quando pender litígio sobre o objeto do pagamento.

9. Quanto ao PAGAMENTO, é falso afirmar que: (OAB-MS – 64º exame)
a) Qualquer interessado na extinção da dívida pode pagá-la, usando, se o credor se opuser, dos meios conducentes à exoneração do devedor;
b) O terceiro não interessado, que paga a dívida em seu próprio nome, tem direito a reembolsar-se do que pagar; mas não se sub-roga nos direitos do credor;
c) O devedor, que paga, tem direito a quitação regular, porém, não poderá reter o pagamento, se a mesma não lhe for dada;
d) O pagamento deve ser feito ao credor ou a quem de direito o represente, sob pena de só valer depois de por ele ratificado, ou tanto quanto reverter em seu proveito.

10. Quanto ao PAGAMENTO é falso afirmar que: (OAB-MS – 66º exame)
a) O terceiro não interessado, que paga a dívida em seu próprio nome, tem direito a reembolsar-se do que pagar, sub-rogando-se nos direitos do credor;
b) Qualquer interessado na extinção da dívida pode pagá-la, usando, se o credor se opuser, dos meios conducentes à exoneração do devedor;
c) Considera-se autorizado a receber o pagamento o portador da quitação, exceto se as circunstâncias contrariarem a presunção daí resultante;
d) O devedor, que paga, tem direito a quitação regular, e pode reter o pagamento, enquanto lhe não for dada.

11. Segundo a regra do Código Civil, havendo o pagamento voluntário de dívida de jogo ou aposta, o devedor: (OAB-MS – 67º exame)
a) Não pode recobrar a quantia que pagou.
b) Pode recobrar a quantia que pagou.
c) Deve honrar o pagamento, já que seu ato foi voluntário.
d) Pode exigir a restituição do que pagou judicialmente.

12. A exclusão da restituição do indébito dar-se-á se (119 OAB SP):
a) O gerente pagar débito de empresa, supondo que se tratava de dívida própria.
b) O solvens pagar débito condicional antes da realização da condição.
c) Alguém pagou imposto ilegal ou inconstitucional.
d) O solvens pagou juros não convencionados.

13. (OAB/MG mar05) Quanto ao adimplemento e extinção das obrigações, é CORRETO afirmar:
a) O credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, exceto se for mais valiosa.
b) A quitação somente poderá ser dada por instrumento público.
c) A entrega do título ao devedor firma a presunção do pagamento.
d) O pagamento cientemente feito a credor incapaz não é válido, mesmo que o devedor prove que em benefício dele efetivamente reverteu.

14. Tratando-se de pagamento de obrigações, é correto afirmar (OAB PI III 2001):
a) Sendo princípio básico do ordenamento jurídico pátrio a vedação ao locupletamento à custa alheia, o terceiro não interessado, que paga a dívida em seu próprio nome, sub-roga-se nos direitos do credor.
b) O pagamento feito de boa fé ao credor putativo despe-se de validade, eis que quem paga mal está sujeito a pagar novamente.
c) É regra geral que seja quesível.
d) Cuidando-se de quotas periódicas, a quitação da última estabelece presunção juris et de jure de estarem solvidas anteriormente.

15. O devedor, que paga, tem direito à quitação regular e pode reter o pagamento, enquanto lhe não for dada, é o que contém na redação do Art. 939, do Código Civil. O que significa quitação regular? (OAB/RN 2001 I):
a) A quitação regular deve designar a espécie da dívida quitada, o nome do devedor, ou quem por este pagou, com a assinatura do credor, ou do seu representante;
b) A quitação regular deve designar o valor e a espécie da dívida quitada, o nome do devedor, ou quem por este pagou, o tempo e o lugar do pagamento, com a assinatura do credor, ou do seu representante;
c) A quitação regular deve designar tão somente a espécie da dívida quitada, o tempo e o lugar do pagamento, com a assinatura do credor, ou do seu representante com a expressão "recebida";
d) A quitação regular consiste tão somente em devolver o título ao devedor.

16. Sobre o pagamento das obrigações, assinale a alternativa incorreta:
a) Existe a possibilidade, embora excepcional, de sub-rogação convencional, para o terceiro não interessado que paga uma dívida com recibo em seu próprio nome, desde que o credor expressamente lhe transfira seus direitos e garantias.
b) Quando as garantias dadas ao credor cessarem e o devedor intimado quedar-se inerte sobre tal situação, o credor poderá cobrar a dívida, mesmo antes de vencido o prazo expressamente estipulado para a satisfação do débito.
c) O terceiro interessado, tal como o terceiro não interessado, quando paga a dívida do devedor principal tem o direito de se reembolsar do que pagou, desde que o recibo esteja em seu próprio nome, mas a execução de eventuais garantias só é transferida de forma expressa, em ambos os casos, pela sub-rogação convencional.
d) Caso um terceiro pague uma obrigação já prescrita, com o desconhecimento do devedor, este não estará obrigado ao reembolso se realmente tinha meios para ilidir a eventual ação a ser proposta.
e) Pelo nosso código civil existe uma presunção relativa de que havendo quitação do capital sem reserva de juros, estes presumem-se pagos.

Gabarito: 1-a, 2-a, 3-d, 4-b, 5-b, 6-d, 7-d, 8-a ,9-c , 10-a, 11-a, 12-d, 13-c, 14- c, 15- b, 16-c.

As formalidades do testamento público e a vontade do testador

O testamento público é instituto jurídico cercado de muitas formalidades. Entretanto, urge refletir sobre a forma como nossos tribunais têm resolvido os casos em que as solenidades ameaçam o núcleo do testamento: a vontade do testador.

INTRODUÇÃO

Testamento é instituição oriunda do direito romano que consiste no ato pelo qual alguém dispõe de seus bens ou manifesta sua vontade acerca de determinadas situações de ordem moral ou pessoal para depois de sua morte. Em regra, o testamento tem caráter patrimonial, porém pode conter disposição de ordem não-patrimonial como, por exemplo, reconhecimento de filho.

A instituição testamento pode ser dividida em dois gêneros, a saber, o ordinário e o especial. O primeiro gênero, por sua vez, se subdivide em testamento público, cerrado e particular. O segundo em militar, marítimo e aeronáutico.

Para a elaboração de um testamento existem requisitos comuns a todos eles e formalidades específicas de cada um. Iremos nos ater, logo mais, às especificidades do testamento público, bem como ao entendimento doutrinário e jurisprudencial quanto ao cumprimento destas.

CAPACIDADE TESTAMENTÁRIA

O Código Civil trata de fixar quem tem capacidade testamentária passiva e ativa. A capacidade testamentária passiva é aquela que a pessoa natural ou jurídica precisa ter para estar apta a ser nomeada herdeira ou legatária em testamento, a regra geral está disposta no art. 1.798 do Código Civil[1].

Por sua vez, a capacidade testamentária ativa é aquela delineada no art. 1.857 do Código Civil, que assim preceitua:  Art. 1.857. Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte.
Art. 1.860. (...)
Parágrafo único. Podem testar os maiores de dezesseis anos.

Dessa forma, toda pessoa natural maior de dezesseis anos e capaz, ou seja, que esteja em pleno gozo de suas faculdades mentais, terá capacidade testamentária ativa. A capacidade é aferida no ato de feitura do testamento, portanto são irrelevantes a capacidade ou incapacidade superveniente. A enfermidade ou idade avançada desde que não afetem o pleno discernimento para o ato e permitam condições de entendê-lo em todo o seu alcance, não extirpam a capacidade.

Quanto aos absolutamente incapazes, elencados no art. 3º do CC[2], sem delongas, não podem testar. Todavia, em relação aos relativamente incapazes, é preciso certa cautela. Isso porque, como já visto, o maior de dezesseis e menor de dezoito anos (art. 4º, I), em matéria testamentária tem total capacidade para dispor de seus bens por testamento.

No caso dos incisos II e III do art. 4º do CC[3], se a pessoa estiver interditada, não haverá maiores dúvidas, porquanto os limites da incapacidade estarão definidos pelo juiz, na sentença (artigo 1.772 do CC). Todavia, diante da inexistência de interdição, segundo Orlando Gomes[4], deverá haver análise que possa estabelecer os limites da incapacidade natural gerada, a fim de se estabelecer se há ou não capacidade para o ato específico, isto é, a fim de estabelecer se a pessoa tem ou não condições de entender o ato que está praticando. Tal análise vale no que toca a todos os atos da vida civil, e também ao testamento em relação ao momento de sua feitura.

No tocante ao pródigo, há controvérsia doutrinária e algumas omissões. Porém, se se entender que o ato de testar vai além dos atos de mera administração dos bens, previsto no art. 1782 do código civil, então permitir ao pródigo testar, seria permitir o que se lhe quer vedar: dilapidar o seu patrimônio, ainda que com eficácia posterior à sua morte.

O TESTAMENTO PÚBLICO

Da classe dos testamentos ordinários, o testamento público é, seguramente, o mais utilizado. Em síntese, o testamento público é aquele testamento feito pelo Tabelião, em seu livro de notas, de acordo com a vontade manifestada pelo testador, e lido pelo mesmo tabelião ao testador e duas testemunhas, sendo por todos assinado.

REQUISITOS DO TESTAMENTO PÚBLICO

O testamento público, como espécie do gênero escritura pública, deve, no que couber, atender aos requisitos comuns aos testamentos em geral e às solenidades previstas para as escrituras públicas no art. 215 do Código Civil[5]. Além disso, existem os requisitos específicos do testamento público, expostos no art. 1.864 do código Civil, que passaremos a pormenorizar:

Art. 1.864. São requisitos essenciais do testamento público:
I - ser escrito por tabelião ou por seu substituto legal em seu livro de notas, de acordo com as declarações do testador, podendo este servir-se de minuta, notas ou apontamentos;
II - lavrado o instrumento, ser lido em voz alta pelo tabelião ao testador e a duas testemunhas, a um só tempo; ou pelo testador, se o quiser, na presença destas e do oficial;
III - ser o instrumento, em seguida à leitura, assinado pelo testador, pelas testemunhas e pelo tabelião.

De acordo com a lei 8935/94, tabelião ou notário é o profissional do direito, dotado de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial, após regular aprovação em concurso público de provas e títulos, e cuja atuação é fiscalizada pelo Poder Judiciário. O ato deve ser elaborado pelo titular do cartório. O escrevente só pode fazê-lo quando exerce função de chefia da serventia. Nada impede que o tabelião apenas presida os trabalhos, não precisando escrever de mão própria o ato notarial. Indo mais além, eis o entendimento do STJ, em julgado de 25/05/2010:


"Leve-se em conta que a realidade dos tabelionatos, nos dias atuais, é bastante diferente da longínqua época da promulgação do Código Civil, não podendo se exigir que o próprio titular, em todos os casos, com os inúmeros afazeres que tem, escreva, datilografe, ou melhor, na era da informática, digite as palavras ditadas ou declaradas pelo testador"[6].

Portanto, com o intuito de fazer prevalecer a última vontade do testador sobre a exigência de pessoalidade do tabelião, o Superior Tribunal de Justiça tem admitido que “substitutos eventuais, tais como o oficial maior ou o empregado juramentado, têm capacidade funcional cumulativa com a do tabelião para praticar os atos de competência deste”[7]. Este entendimento se coaduna com o de Zeno Veloso que entende que o código de 2002 revogou parte do § 4º, do art. 20, da lei 8.935 de 1994[8].

As autoridades consulares brasileiras também podem lavrar testamento público (art. 18 da lei 12.376 de 2010), naqueles casos em que brasileiro testa no exterior[9].

Em relação às testemunhas testamentárias, devem ser no mínimo duas, maiores de dezesseis anos, alfabetizadas, com capacidade para os atos da vida civil, que conheçam o testador (não precisam conhecê-lo de longa data. Por exemplo, uma enfermeira ou escrevente podem servir de testemunhas de testamento feito em hospital ou cartório), capazes de compreender a língua portuguesa.

Não pode ser testemunha testamentária: o surdo; o cego; o herdeiro ou legatário instituído no testamento, bem como seus descendentes, ascendentes, irmãos, cônjuges ou companheiros (art. 228 CC); Por fim, também não podem ser testemunhas os cônjuges, os descendentes, os ascendentes e os colaterais por consanguinidade, até o terceiro grau, das partes envolvidas. De acordo com jurisprudência do STJ, “As testemunhas impedidas de participarem do ato são as resultantes de parentesco por consanguinidade, não as por afinidade”.[10].

A leitura em voz alta pode ser feita pelo testador ou pelo oficial, sempre e inteiramente na presença das testemunhas. Entretanto, em acórdão do TJSP de 19/10/2009 temos: "Embora tenham dito, aquelas duas testemunhas (já decorridos quase vinte anos), que não ouviram a leitura em voz alta do conteúdo do testamento, confirmaram que foi o próprio testador que solicitou a presença delas no tabelionato para assinar o livro.
Por outro lado, nenhum indício existe a apontar para interferência direta da beneficiária do testamento, ou de terceiro interessado, na elaboração das declarações em registro. Nem se cogitou, na inicial, de eventual incapacidade do autor da herança de manifestar, na ocasião, a sua última vontade.
Ora, diante desse quadro, entendo que a mera dúvida (e apenas a isso poderia levar a prova dos autos) acerca do cumprimento da formalidade a que alude o art. 1.632, III, do Código Civil de 1916 não tem o condão de invalidar o testamento, elaborado, no mais, com expressa observância das solenidades exigidas (art. 1.634)".

No caso de testador surdo alfabetizado, este também deverá ler o documento. Para o caso de surdo analfabeto, deverá designar pessoa que leia o testamento na presença de duas testemunhas, segundo assevera Flávio Augusto Monteiro de Barros, o testamento público do surdo analfabeto, “é o único que exige três testemunhas”. Com o advento do Código Civil de 2002, extinta a exigência de expressão oral da vontade, é perfeitamente possível aos surdos, alfabetizados ou não, disporem de seus bens por testamento público, desde que manifestem essa vontade de forma inequívoca.

Por fim, as assinaturas, tabelião, testador e testemunhas devem assinar o documento. Se o testador, não souber assinar ou por algum motivo estiver impossibilitado de o fazer, o oficial declarará o fato e designará uma das testemunhas para assinar pelo testador. A assinatura a rogo só é deferida ao testador, não sendo estendida à testemunha analfabeta. Se o testador morre depois de assinar, mas antes das testemunhas, o testamento é válido[12].

É importante frisar que em decorrência do princípio da unidade do ato, juntos, o tabelião e as testemunhas devem assistir à manifestação da vontade do testador, ouvir a leitura do testamento, analisando sua conformidade com a vontade manifestada, e assinar o testamento, tudo em ato único, sem interrupções nem ausências.

Apesar de não ser princípio absoluto, sendo quebrada a unidade do ato de forma a colocar em risco a livre manifestação de vontade do testador, crivado de nulidade estará o testamento.

Todavia, neste ponto, de acordo com José da Silva Pacheco, parece desarrazoado "falar em nulidade do ato simplesmente porque se registraram rápidas ausências, quando da feitura do material do testamento, ora de uma, ora de outra testemunha desde que todas elas ouviram as declarações do testador, certificando-se, depois, presentes também à leitura do auto de que fielmente respeitada foi a vontade manifestada"[13].

Pois segundo leciona Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka: “Muito mais importantes, hoje, é a unidade de contexto do testamento do que a unidade do ato propriamente dita[14]”.

Gize-se também que o testamento público, como as demais escrituras públicas, deve ser redigido na Língua Portuguesa. Caso o Testador não consiga se expressar de forma inteligível no vernáculo deve optar por outra forma de testamento que não o público. Quanto ao horário e local de sua feitura, o testamento público poderá ser lavrado em qualquer lugar e hora onde se encontre o testador, as testemunhas e o tabelião, respeitado o inscrito no art. 9º da lei 8.935 de 1994[15].

Em relação à declaração de cumprimento das formalidades, o Notário está desobrigado de firmar o cumprimento das formalidades prescritas em lei, bastando observá-las. Isso porque, diferentemente do Código Civil de 1916 (art. 1634), o Código Civil hoje vigente é silente quanto à obrigação de certificar o cumprimento das formalidades. Ademais o tabelião é dotado de fé pública e a subscrição do ato, por este, deixa implícito que as formalidades foram cumpridas[16].
CONCLUSÃO

Assim, sem dúvida, o testamento público é um dos negócios jurídicos mais solenes encontrados no direito, cujas formalidades devem ser cumpridas tal qual determina a Lei, sob pena de nulidade do ato. Já que, no dizer de Sílvio de Salvo Venosa “Sob o manto da solenidade, o legislador protege a manifestação de vontade do testador, sua autonomia, diminuindo as possibilidades de pressões físicas ou psíquicas”[17].

Entretanto, é necessário ter atenção ao fato de que, conforme leciona José da Silva Pacheco, “da observância das formalidades do testamento não se deve ir ao ponto de, sob pretexto de cumprir rigorosamente a lei, destruir a vontade do testador[18]”.

Nesse mesmo sentido, dentre outros, Pontes de Miranda alerta que "O fim dos preceitos do Código Civil não é restringir o direito individual, mas determinar que sigam certos caminhos, observem certas normas, para que melhor se garantam. No interpretá-los, não se pode esquecer que é este o fim que eles têm"[19].

Outrossim, é desnecessário dizer que, hodiernamente, na sociedade dita moderna, cresce a demanda por dinamismo e celeridade, transformando o exagerado apego à formalidades em empecilho e anacronismo.

Por fim, é salutar que a conclusão deste singelo trabalho se dê com um trecho de acórdão exarado pelo Superior Tribunal de Justiça em 2010, com o seguinte teor em relação às formalidades do testamento público: "Inclina-se a jurisprudência do STJ pelo aproveitamento do testamento quando, não obstante a existência de certos vícios formais, a essência do ato se mantém íntegra, reconhecida pelo Tribunal estadual, soberano no exame da prova, a fidelidade da manifestação de vontade da testadora, sua capacidade mental e livre expressão"[20].

Portanto, social, doutrinária e jurisprudencialmente falando, parece haver convergência quanto à tendência de abandonar os excessos de formalidade naqueles atos outrora sagrados[21]. Dessa forma, o desafio que se apresenta, atualmente, aos operadores do direito é o de harmonizar a forma prescrita em lei à vontade do testador, buscando atender à finalidade social do testamento com eficiência e segurança jurídica.

NOTAS

[1] Art. 1.798. Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão.
[2] Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I - os menores de dezesseis anos; II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.
[3] Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: (...) II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo;
[4] Orlando gomes, Introdução ao direito civil, p. 171.
[5] Art. 215. A escritura pública, lavrada em notas de tabelião, é documento dotado de fé pública, fazendo prova plena.
§ 1º Salvo quando exigidos por lei outros requisitos, a escritura pública deve conter:
I - data e local de sua realização;
II - reconhecimento da identidade e capacidade das partes e de quantos hajam comparecido ao ato, por si, como representantes, intervenientes ou testemunhas;
III - nome, nacionalidade, estado civil, profissão, domicílio e residência das partes e demais comparecentes, com a indicação, quando necessário, do regime de bens do casamento, nome do outro cônjuge e filiação;
IV - manifestação clara da vontade das partes e dos intervenientes;
V - referência ao cumprimento das exigências legais e fiscais inerentes à legitimidade do ato;
VI - declaração de ter sido lida na presença das partes e demais comparecentes, ou de que todos a leram;
VII - assinatura das partes e dos demais comparecentes, bem como a do tabelião ou seu substituto legal, encerrando o ato.
§ 2º Se algum comparecente não puder ou não souber escrever, outra pessoa capaz assinará por ele, a seu rogo.
§ 3º A escritura será redigida na língua nacional.
§ 4º Se qualquer dos comparecentes não souber a língua nacional e o tabelião não entender o idioma em que se expressa, deverá comparecer tradutor público para servir de intérprete, ou, não o havendo na localidade, outra pessoa capaz que, a juízo do tabelião, tenha idoneidade e conhecimento bastantes.
§ 5º Se algum dos comparecentes não for conhecido do tabelião, nem puder identificar-se por documento, deverão participar do ato pelo menos duas testemunhas que o conheçam e atestem sua identidade.
[6] REsp. Nº 600.746 - PR (2003/0188859-4) Relator: Ministro Aldir Passarinho Junior. Julgado em 20 de maio de 2010.
[7] Ibdem.
[8] Art. 20. - § 4º Os substitutos poderão, simultaneamente com o notário ou o oficial de registro, praticar todos os atos que lhe sejam próprios exceto, nos tabelionatos de notas, lavrar testamentos.
[9] Caio Mário da Silva Pereira p. 213.
[10] Resp. 7.197-0 Relator: Ministro Bueno de Souza. Julgado em 07 de junho de 1995.
[11] TJSP – Apelação Cível com Revisão nº 0117319-14.2008.8.26.0000 – Santo André – 1ª Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Elliot Akel – DJ 19.10.2009.
[12] Carlos Maximiliano (1950, v. 1: 462) apud Sílvio de Salvo Venosa p. 230.
[13] José da Silva Pacheco, Op. cit., p. 371-3. Apud Leonardo Brandelli, Alguns apontamentos acerca do testamento público no novo Código Civil. Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/8994-8993-1-PB.pdf
[14] In Francisco José Cahali e Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Curso avançado de direito civil: direito das sucessões, p.277.
“Art. 9º O tabelião de notas não poderá praticar atos de seu ofício fora do Município para o qual recebeu delegação”.
[16] Veja-se nesse sentido José da Silva Pacheco, op. cit., p. 371.
[17] Sílvio de Salvo Venosa, Direito das Sucessões. 14 ed. São Paulo: Atlas – 2014. V. 7, p. 224.
[18] Op. cit., p. 373. Apud Leonardo Brandelli, Alguns apontamentos acerca do testamento público no novo Código Civil. Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/8994-8993-1-PB.pdf
[19] Tratado dos testamentos, v. I, p. 239-40.
[20]REsp. Nº 600.746 - PR (2003/0188859-4) Relator: Ministro Aldir Passarinho Junior. Julgado em 20 de maio de 2010.
[21] “A ordem jurídica torna-o soleníssimo rodeando-o de exigências que na Antiguidade eram sacramentais, e no direito moderno assumem a qualificação de requisitos ad substantiam,”

CARAFUNIM, Walcleber. As formalidades do testamento público e a vontade do testador. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4315, 25 abr. 2015. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/32769>. Acesso em: 6 set. 2017.

Herança: conheça 6 características do Testamento

Principais características da sucessão testamentária.

Publicado por EBRADI

A sucessão testamentária é fruto da expressa manifestação de última vontade do de cujus, pois a lei confere a este a liberdade de testar a quem bem entender, dentro dos limites legais.

Nesse sentido, o direito de testar resta limitado quando da existência de herdeiros necessários (cônjuge, ascendente e descendentes), uma vez que - nessa hipótese - 50% do patrimônio é legalmente destinado a estes (legítima).

Logo, nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves, o testamento expressa a livre manifestação de última vontade do falecido, pelo qual o autor da herança dispõe de seus bens para depois da morte.

Analisemos as principais características do testamento:

1. Ato personalíssimo: o testamento é um ato personalíssimo, pois somente o autor da herança pode fazê-lo, inadmitindo-se a delegação a procurador.

2. Negócio jurídico unilateral: o testamento traduz-se declaração não receptícia de vontade, de modo que é constituído e aperfeiçoado tão e somente com a vontade do testador, independentemente de aceite do beneficiário.

3. Solenidade: o testamento para ser válido deve observar todas as formalidades essenciais previstas na lei.

4. Ato gratuito: o negócio jurídico realizado pelo testador não tem por fim qualquer obtenção de vantagem para este. Ademais, a estipulação de encargos ao beneficiário não retira a natureza gratuita do negócio.

5. Revogabilidade: a possibilidade de revogação é intrínseca ao testamento, sendo nula qualquer cláusula que visa retirar tal faculdade do testador.

6. Ato causa mortis: o testamento somente produzirá os efeitos desejados pelo testador após sua morte, de modo que a qualquer momento em vida, poderá ser alterado ou revogado.

Estas são as 6 principais características do Testamento.

Consultamos: Gonçalves, Carlos Roberto – Direito das Sucessões : São Paulo : Saraiva : 2011 : Coleção Sinopses Jurídicas – Vol. 4.

Quais são os limites constitucionais da liberdade artística?

Por 
A liberdade artística é um espectro da liberdade de expressão que, como esta, gera discussões acerca de seus reais limites. Não apenas no Brasil, mas também no Direito Comparado, trata-se de tema complexo, para o qual as cortes constitucionais, quando demandadas, em diversos casos precisam estabelecer critérios para separar o conceito de arte da prática de ato que configure algum ilícito ou agressão a terceiros.
Justamente esse ponto — a muitas vezes tênue linha entre arte e ato ilícito — é um dos temas mais debatidos no momento. Em Porto Alegre, a mostra Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira foi cancelada após protestos que a associavam à promoção da blasfêmia, da pedofilia e da zoofilia[1]. Em Jundiaí (SP), a exibição da peça O Evangelho segundo Jesus, rainha do céu, que retrata Jesus Cristo como uma mulher transgênero, foi proibida por decisão judicial[2]. Em Campo Grande, quadro denominado Pedofilia, que integrava desde junho a exposição Cadafalso, no Museu de Arte Contemporânea local, foi apreendido pela polícia[3]. Em São Paulo, interação de criança com artista nu em performance artística no Museu de Arte Moderna viralizou na internet e gerou polêmica por eventual prática do crime de pedofilia[4].
É bem verdade que arte como fenômeno social envolve uma teia de relações, que reclamam “condições de segurança, de liberdade e de justiça para o seu desenvolvimento”[5]. Entre nós, a liberdade artística está assegurada na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º, IX, que prescreve ser “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”[6].
O texto constitucional brasileiro também estabelece que diversões e espetáculos públicos ficam sujeitos a regulamentações especiais[7]. No caso, interferência do poder público para informar sobre sua natureza e faixa etária[8], além de locais ou horários em que sua apresentação seria inadequada. Não há, em princípio, o ato de censura, comum no regime pré-1988.
Ainda que “tentativas de definir materialmente arte, para além de se revelarem pouco frutíferas, parecem tornar o artista refém da qualidade que terceiros possam encontrar na sua obra”[9], a delimitação constitucional do conceito de arte e de artista, para daí apreciar seus limites, não é questão muito debatida no Brasil. Sua análise acaba por ser genérica, limitando-se a incluí-la como integrante da liberdade de expressão.
No Direito Comparado, a doutrina alemã — da qual a autora se vale, por seu histórico acadêmico — reporta ser praticamente em vão as tentativas de se desenvolver definição de arte universalmente aceita[10]. Todavia, estabelece critérios que podem ter validade entre nós.
Algumas considerações foram traçadas pelo Tribunal Constitucional Federal alemão no famoso caso Mephisto, de 24/2/1971, relacionado à publicação de romance de Klaus Mann, cuja personagem principal foi flagrantemente inspirada no falecido ator e diretor de teatro Gustaf Gründgen[11]. Nesse julgamento, a corte entendeu que:
“O essencial da atividade artística é a livre conformação criadora, na qual as impressões, experiências e vivências do artista são trazidas para a contemplação direta, por meio de uma determinada linguagem das formas. Toda a atividade artística é um entrelaçamento de processos conscientes e inconscientes que não podem ser dissolvidos racionalmente. Na criação artística atuam conjuntamente intuição, fantasia e compreensão da arte; não é primariamente comunicação, mas expressão, a expressão mais direta da personalidade individual do artista”[12].
Ainda que arte seja, substancialmente, liberdade, o direito à liberdade artística não pode ser ilimitado e encontra balizas em outros valores constitucionalmente assegurados[13]. No caso, a semelhança era tanta que não se podia distinguir realidade da liberdade de criação artística.
A doutrina alemã frisa ainda a importância do denominado critério de reconhecimento por terceiros, isto é, se a obra tem condições de ser vista como tal. Além disso, indica que, por haver amplo conceito de “arte”, há consenso de que esta deve ser interpretada “de maneira aberta e de também abranger formas expressivas fora do comum e surpreendentes”[14]. Do mesmo modo, o fato de a obra ter procurado um fim político ou religioso não altera sua classificação como “obra”[15].
Ressalte-se que a proteção não alcança apenas o artista, mas também todos os seus mediadores e destinatários. No caso Mephisto, a corte especificou que a “liberdade artística abrange não apenas a atividade artística, mas também a apresentação e divulgação da obra de arte”[16]. Aí estaria incluída a propaganda, a crítica, a mídia para divulgação e inclusive os espaços da instalação, ou seja, a “extensão fática” (tatsächlichen Verbreitung) da obra.
A liberdade artística não se restringe aos conhecidos publicamente por ter a arte como sua profissão, mas é garantida também ao particular, quando por meio dela queira se expressar[17]. Algumas limitações são claras. Para proteção à criança e ao adolescente, o direito à liberdade artística pode ser limitado para evitar a divulgação de obras que tenham material perigoso à juventude. Em feriados religiosos, apresentações artísticas nas ruas podem ser canceladas[18]. De qualquer forma, a arte sempre se reinventa e se concretiza inclusive a ponto de alterar os limites do que não é considerado arte[19].
Entre nós, poucos são os julgados do Supremo Tribunal Federal em que a liberdade artística foi apreciada. Em 1968, a 2ª Turma, em caso sobre apreensão de revistas consideradas pornográficas ao público infanto-juvenil, teceu considerações sobre a caracterização da obscenidade em razão do público-alvo.
Nas palavras do redator para o acórdão, ministro Aliomar Baleeiro, “o conceito de obsceno, imoral e contrário aos bons costumes é condicionado ao local e à época. Inúmeras atitudes aceitas no passado são repudiadas hoje, do mesmo modo que aceitamos sem pestanejar procedimentos repugnantes às gerações anteriores”. No mesmo sentido, ministro Evandro Lins e Silva, para quem o “conceito de obscenidade é variável no tempo e no espaço. O que era considerado obsceno, há bem pouco tempo, deixou de o ser, com a mudança de costumes e o conhecimento que a juventude passou a ter de problema que lhe eram proibidos estudar e conhecer, até recentemente”[20].
O caso restou assim ementado, no que interessa:
“II - À falta de conceito legal do que é pornográfico, obsceno ou contrário aos bons costumes, a autoridade deverá guiar-se pela consciência de homem médio de seu tempo, perscrutando os propósitos dos autores do material suspeito, notadamente a ausência, neles, de qualquer valor literário, artístico, educacional ou científico que o redima de seus aspectos mais crus e chocantes.
III- A apreensão de periódicos obscenos cometida ao juiz de Menores pela Lei de Imprensa visa à proteção de crianças e adolescentes contra o que é impróprio à sua formação moral e psicológica, o que não importa em vedação absoluta do acesso de adultos que o queiram ler. Nesse sentido, o Juiz poderá adotar medidas razoáveis que impeçam a venda aos menores até o limite de idade que julgar conveniente, desses materiais, ou a consulta dos mesmos por parte deles”[21].
Essas considerações foram reproduzidas pelo ministro Gilmar Mendes em Habeas Corpus de decisão que denegara a ordem para trancamento de ação penal, requerida sob justificativa de atipicidade da conduta praticada pelo réu. No caso, em questão estava atitude de teatrólogo que, ao ser vaiado ao final da apresentação de sua peça, mostrou as nádegas para o público e simulou ato de masturbação. A denúncia então oferecida contra o paciente tipificava sua conduta como ato obsceno, nos termos do artigo 233 do Código Penal[22].
Em seu voto-vista, o ministro Gilmar Mendes refutou os argumentos até então utilizados e indicou que, “em razão da evolução cultural, a nudez humana tem-se apresentado constantemente nos veículos de comunicação, mas nem por isso pode ser considerada ofensiva ao público”. Ressaltou que o local e as circunstâncias em que o ato foi praticado — dentro de um teatro, às duas horas da manhã, para um público adulto — evidenciam que a plateia não deve ter ficado chocada com a atitude do artista.
Discordou da ocorrência do crime descrito na conduta e asseverou que, “ainda que se cuide, talvez, de manifestação deseducada e de extremo mau gosto, tudo está a indicar um protesto ou uma reação — provavelmente grosseira — contra o público”. Apontou que jornal de grande circulação descrevera a situação como uma forma de protesto: “Fazendo graça, o Diretor gesticulava para a audiência, pedindo mais. Para mostrar desprezo, fingiu que se masturbava, e saiu de cena”.
O ministro Gilmar Mendes apontou que o gesto não estaria completamente fora do contexto da peça teatral então objeto da vaia. No próprio espetáculo, uma das atrizes, durante a apresentação, simulou masturbar-se. Com isso, “não se pode olvidar o contexto no qual se verificou o ato incriminado, além de que um exame objetivo da querela há de indicar que a discussão está integralmente inserida no contexto da liberdade de expressão, ainda que inadequada ou deseducada”. Ademais, lembrou que a sociedade moderna dispõe de “mecanismos próprios e adequados para esse tipo de situação, como a própria crítica”, o que tornaria dispensável o enquadramento penal.
Com isso, concluiu, na mesma linha do ministro Aliomar Baleeiro, que o conceito de obsceno, imoral, contrário aos bons costumes é condicionado ao local e à época. Votou, então, pela concessão do Habeas Corpus, para determinar o trancamento da ação penal, no que foi acompanhado pelo ministro Celso de Mello, e, com empate, a ordem acabou sendo concedida[23].
Já em caso sobre a necessidade de inscrição de músicos em conselho nacional como pressuposto de exercício profissional[24], o Plenário entendeu pela não obrigatoriedade de tal cadastro. Nessa hipótese, aventaram-se quais qualificações profissionais seriam exigidas para a manifestação do talento artístico. Chegou-se então a comentar que em breve poderia ser organizado concurso para músico com seleção a partir de critérios estatais, em flagrante tom jocoso.
Como alerta, o ministro Celso de Mello ressaltou que “a excessivaintervenção do Estado no âmbito das atividades profissionais, notadamentedaquelas de natureza intelectual e artística, além do perigo que essa intrusão governamental significa para as liberdades do pensamento, também pode constituir indício revelador de preocupante tendência autocrática em curso no interior do próprio aparelho estatal”.
Com especial enfoque na censura, o STF, ao analisar a obrigatoriedade de prévia autorização de pessoas cujas vidas são biografadas por terceiros, ponderou valores relacionados à liberdade de criação intelectual e artística do autor da obra (biógrafo); à liberdade de expressão do público, que inclui o interesse na história narrada, bem como a proteção da memória e da história nacional; e, claro, ao direito à esfera privada do biografado[25]. Tratava-se de ação direta de inconstitucionalidade para dar interpretação conforme a Constituição aos artigos 20 e 21 do Código Civil[26], relativos à divulgação de escritos, à transmissão da palavra, à produção, à publicação, à exposição ou à utilização da imagem[27].
O pedido acabou julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade sem redução de texto, no sentido de não ser necessário pedido de prévia autorização à pessoa biografada relativa a obras literárias ou audiovisuais sobre sua vida. Levou-se em consideração, portanto, a observância aos direitos fundamentais à liberdade de pensamento e de sua expressão, afastando-se a censura prévia, mas não a possibilidade de buscar-se eventual reparação posterior.
A liberdade artística também foi mencionada em ação que declarou inconstitucional a proibição de veiculação ou produção, pelas emissoras de rádio e de televisão, a partir de 1º de julho do ano de eleição, de “truncagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem o candidato, partido ou coligação” (artigo 45, II, Lei 9504/97)[28].
O receio então era que programas humorísticos, charges ou caricaturas pudessem ser eventualmente proibidos. Ao deferir a cautelar, confirmada pelo Plenário, para suspender os efeitos desse dispositivo, o relator, ministro Ayres Britto, consignou a ideia de que “humor jornalístico” inclui o conceito de pensamento crítico, de informação e de criação artística.
Como visto, o conceito de liberdade artística é extremamente amplo e variável. A adequação da conduta ao tempo, ao local e ao contexto em que praticada é essencial para sua caracterização. Ainda assim, há de se proteger manifestações que hoje podem ser consideradas chocantes pela maioria, uma vez que a liberdade artística, como liberdade de expressão, é um dos instrumentos utilizados pelo ser humano como forma de manifestação para própria evolução de ideias. Afinal, o sentido e a razão do direito fundamental de liberdade de expressão é “assegurar o combate intelectual de opiniões” (den geistigen Kampf der Meinung zu gewährleisten)[29].
Daí a perceber-se que a linha interpretativa dos limites da liberdade artística é bastante tênue. Os julgadores precisam ponderar e valer-se do princípio da proporcionalidade nas hipóteses em que esse direito colida com outros, constitucionalmente garantidos, sem deixar de considerar a flexibilidade conceitual inerente à atividade artística, em constante desenvolvimento.


[1] Conferir: www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/09/1917269-apos-protesto-mostra-com-tematica-lgbt-em-porto-alegre-e-cancelada.shtml
[2] www.conjur.com.br/2017-set-16/juiz-proibe-peca-representa-jesus-mulher-transgenero
[3] Conferir: veja.abril.com.br/entretenimento/obra-que-denuncia-pedofilia-e-tirada-de-museu-acusada-de-incita-la/
[4] Conferir: www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/09/1922810-na-internet-museu-e-acusado-de-pedofilia-apos-performance-com-nudez.shtml
[5] FERREIRA, Eduardo André Folque. "Liberdade de criação artística, liberdade de expressão e sentimentos religiosos". In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coimbra Editora, vol. XLII, n.1, 2001, p. 229. Este mesmo autor elenca sete finalidades principais que levam o Direito, em geral, e o Estado, em especial, a interessarem-se pela Arte, ora como limitação desse mesmo poder, ora como instrumento de regulação, ora como enquadramento institucional de fomento e expansão do fenómeno artístico: a) político-ideológicas; b) filosóficas e religiosas; c) económicas e sociais; d) técnico-funcionais; e) científicas e educativas; f) estéticas; e, g) de desenvolvimento da personalidade. FERREIRA, Eduardo André Folque. Liberdade de criação artística, liberdade de expressão e sentimentos religiosos. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coimbra Editora, vol. XLII, n.1, 2001, p. 231. A atividade artística é considerada o principal elemento do chamado Estado Cultural. Sobre o tema: SILVA, José Afonso da. Liberdade de expressão cultural. In: Revista Latino-americana de Estudos Constitucionais, p. 38. HÄBERLE, Peter. Verfassungsrechtliche Aspekte der Kulturellen Identität. In: Revista latino-americana de estudos constitucionais, n. 6, p. 637-648, jul./dez. 2005. HÄBERLE, Peter. Verfassungslehre als Kulturwissenschaft. In: Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, n. 4, p. 99-115, jul./dez. 2004. FERREIRA, Eduardo André Folque. Liberdade de criação artística, liberdade de expressão e sentimentos religiosos. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coimbra Editora, vol. XLII, n.1, 2001.
[6] A liberdade de expressão, essencial a qualquer regime democrático, não é entre nós adotada como gênero que englobe a livre manifestação de pensamento, a liberdade de consciência e de crença, a livre expressão de consciência, e outras manifestações similares. De qualquer forma, é inevitável que, pelo caráter de tais liberdades, elas sejam tratadas em conjunto (SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 435).
[7] Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. § 3º - Compete à lei federal: I - regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada; II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.
[8] Conforme discutido na ADI 2.404, rel. min. Dias Toffoli, julg. em 31/8/2016.
[9] FERREIRA, Eduardo André Folque. "Liberdade de criação artística, liberdade de expressão e sentimentos religiosos". In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coimbra Editora, vol. XLII, n.1, 2001, p. 255.
[10] PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 293. PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Grundrechte Staatsrecht II. Heidelberg: C.F. Müller, 2008, p. 153.
[11] BVerfGE 30, 173 – de 24.2.1971.
[12] BVerfGE 30, 173 – de 24.2.1971. SCHWABE, Jürgen. Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. Montevidéu: Konrad-Adenauer-Stiftung E.V., p. 481.
[13] Conferir MENDES, Gilmar Ferreira. "Colisão de direitos fundamentais: liberdade de expressão e de comunicação e direito à honra e à imagem". Revista dos Tribunais, nº 5 out/dez de 1993.
[14] PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 298. PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Grundrechte Staatsrecht II. Heidelberg: C.F. Müller, 2008, p. 155.
[15] JARASS, Hans D.; PIEROTH, Bodo. Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland. Munique: C.H. Beck, p. 208.
[16] BVerfGE 30, 173 – de 24.2.1971. SCHWABE, Jürgen. Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. Montevidéu: Konrad-Adenauer-Stiftung E.V., p. 496.
[17] JARASS, Hans D.; PIEROTH, Bodo. Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland. Munique: C.H. Beck, p. 209.
[18] JARASS, Hans D.; PIEROTH, Bodo. Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland. Munique: C.H. Beck, p. 211.
[19] MICHAEL, Lothar; MORLOK, Martin. Grundrechte. Baden-Baden: Nomos, 2008, p.140.
[20] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RMS 18.534, min. Aliomar Baleeiro, j. em 1º/10/1968 – 2ª Turma.
[21] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RMS 18.534, min. Aliomar Baleeiro, j. em 1º/10/1968 – 2º Turma.
[22] Art. 233, Código Penal: Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
[23] A ministra Ellen Gracie, que seguiu o voto do relator, asseverou, todavia, que o ato pareceu demonstrar um desprezo pela opinião desse público, que é a única e maior razão da existência das artes cênicas. Figuras bem mais qualificadas — refiro-me apenas a Victor Hugo na estreia do Ernani, onde houve inclusive uma batalha campal — adotaram postura de humildade diante daqueles que não compreenderam, na época, as inovações introduzidas em suas criações. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 83.996, rel. min. Carlos Velloso, redator para acórdão min. Gilmar Mendes, j. em 17/8/2004.
[24] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 414.426, rel. min. Ellen Gracie, julgamento em 1º/8/2011.
[25] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4.815, rel. min. Cármen Lúcia, julgamento em 10/6/2015.
[26] Código Civil, “Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes. Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.
[27] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4.815, rel. min. Cármen Lúcia, julgamento em 10/6/2015.
[28] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4.451-MC, rel. min. Ayres Britto, julgamento em 2/9/2010.
[29] PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Grundrechte Staatsrecht II. Heidelberg: C.F. Müller, 2007, p. 137.
Beatriz Bastide Horbach é assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal, mestre em Direito pela Eberhard- Karls Universität Tübingen, Alemanha e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.
Revista Consultor Jurídico, 7 de outubro de 2017, 8h00
https://www.conjur.com.br/2017-out-07/observatorio-constitucional-quais-limites-constitucionais-liberdade-artistica

Abuso de direito e culpa na responsabilidade civil

Por Guilherme Henrique Lima Reinig e Daniel Amaral Carnaúba

Afirma-se com frequência que a responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe de culpa. Em sede doutrinária, é recorrente a tese de que o art. 186 do Código Civil conteria uma cláusula geral de responsabilidade por culpa, enquanto o art. 187 ofereceria uma cláusula geral de ilicitude de natureza objetiva[1]. De certa forma, é também o que propõe o Enunciado 37 na 1a Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal: “A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”.

Alçada ao patamar de consenso na literatura, a tese não tardou a ser acolhida também pelos tribunais. Assim, a 7a Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, por mais de uma vez, invocou o referido enunciado como justificativa para responsabilizar objetivamente operadoras de planos de saúde pelo defeito na prestação de serviços de assistência médica e hospitalar.[2] No mesmo tribunal, o verbete também já foi empregado para responsabilizar a faturizadora que protestou indevidamente duplicada sem lastro comercial[3]; ou para condenar os proprietários que retiraram e danificaram outdoors instalados em seu imóvel por terceiros.[4]

A mesma fundamentação é encontrada em julgados de outras cortes estaduais, como, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que decidiu ser abusivo o corte unilateral de fornecimento de água como retaliação do locador pelo inadimplemento dos débitos locatícios.[5] O TJRS também recorreu ao Enunciado 37 quando responsabilizou um sujeito que forjou provas para impugnar a candidatura de um desafeto político.[6]

A despeito de sua aceitação, tanto na literatura, quanto nos tribunais, a tese de que a responsabilidade decorrente do abuso de direito é objetiva comporta maior reflexão.

Em artigo que aborda a influência da doutrina francesa sobre o atual Código Civil brasileiro, Véra Jacob de Fradera cita o referido enunciado como um exemplo da importância da doutrina finalista de Josserand e de sua Escola no pensamento jurídico brasileiro.[7] De fato, o verbete ilustra perfeitamente essa concepção, pois deixa claro que a configuração do abuso de direito não pressupõe a intenção de lesar. Conforme a redação do enunciado, o critério é objetivo-finalístico: o jornalista que extrapola o seu direito de informar, segundo os critérios do fim econômico ou social do seu direito, da boa-fé ou dos bons costumes, incorre em abuso de direito, nos termos do art. 187 do Código Civil, independentemente de eventual reprovabilidade subjetiva de sua conduta.

Todavia, não há no Código Civil nenhum ponto de apoio para a conclusão de que a responsabilidade por abuso de direito seria independe de culpa. É nesse aspecto que o Enunciado 37 da 1a Jornada se equivoca. A responsabilidade em caso de abuso de direito pode ou não prescindir de culpa, a depender do suporte fático da pretensão indenizatória. O fornecedor de produtos e serviços que abusa de seu direito responde objetivamente pelos danos sofridos pelo consumidor; mas isso decorre, não tanto do regime do abuso, mas, antes, porque a responsabilidade do fornecedor está fundada no defeito do produto ou do serviço, para o qual a culpa é irrelevante. A empresa jornalística que abusa de seu direito pode, eventualmente, ser responsabilizada independentemente de culpa, com fundamento na cláusula geral do art. 927, parágrafo único, do Código Civil, desde que se considere que sua atividade implica, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. De qualquer forma, o abuso de direito, por si só, não torna objetiva a sua responsabilidade.

Nesse ponto, é necessário fazer duas observações.

A primeira delas é de ordem formal. Ao tratar da obrigação de indenizar, o art. 927 estabelece duas cláusulas gerais de responsabilidade. O seu caput foi reservado à responsabilidade por ato ilícito; o seu parágrafo único, à responsabilidade independente de culpa. Ora, se o legislador houvesse considerado o abuso de direito uma hipótese de responsabilidade objetiva, não o teria mencionado expressamente no caput do dispositivo, ao lado do art. 186: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Seu lugar natural seria junto às demais hipóteses de responsabilidade sem culpa, reguladas no parágrafo único.

A segunda, de ordem conceitual, diz respeito à definição de culpa. Como se extrai dos próprios termos adotados pelo Enunciado 37, o que levou a doutrina a extirpar a culpa do âmbito do abuso de direito é a crença de que o propugnado “critério objetivo-finalístico” seria inconciliável com a qualquer análise da culpa do agente. Essa crença, contudo, é equivocada. Não há incompatibilidade alguma entre os dois critérios; ou, ao menos, se adotada a chamada concepção normativa da culpa.

Nesse ponto, os manuais e tratados de direito penal prestam um excelente auxílio aos civilistas. Para a teoria psicológica da culpa, outrora em voga na doutrina penal, a culpabilidade seria o vínculo psicológico que une o autor ao resultado produzido por sua ação. Suas únicas espécies seriam o dolo e a culpa, sendo a imputabilidade (capacidade de ser culpável) um pressuposto da culpabilidade. Essa concepção, todavia, foi progressivamente superada pela ciência penal. Nas palavras de Cezar Roberto Bitencourt, “era absolutamente incoerente visualizar a culpabilidade com algo puramente psicológico, quando uma de suas formas de manifestação – a culposa – não tinha caráter psicológico. [...]. Enfim, a culpa não consiste em algo psicológico, mas em algo normativo: a infração do dever objetivo de cuidado”.[8] Com o finalismo de Hans Welzel, eliminou-se, inclusive, todo e qualquer elemento subjetivo da culpabilidade: o dolo e a culpa foram transferidos para a tipicidade, resumindo-se a culpabilidade a um “juízo acerca do processo de motivação do autor da conduta típica e antijurídica”.[9]

O referido juízo subjetivo, consistente, em síntese, em decidir acerca da possibilidade concreta de o autor do ilícito agir de modo distinto, é imprescindível no Direito Penal, dado o princípio nullum crimen sine culpa. Tal não ocorre no Direito Civil, onde a reprovabilidade subjetiva não é necessária, nem mesmo no regime de responsabilidade por ato ilícito. Na obra clássica Culpa e risco, Agostinho Alvim já concluía, quanto ao Direito Civil, que “todo movimento se acentua no sentido de se objetivar, de se concretizar a noção de culpa. Afasta-se a imputabilidade moral para se apreciar tão-somente o erro de conduta em face do comportamento do homem normal, excluindo-se, porém, as circunstâncias internas, pessoais, do agente e assim se proclama com fundamento na própria culpa dos que agem sem discernimento”.[10]

Opõe-se, assim, a culpa subjetiva à culpa objetiva, e, nesse sentido, define-se culpa simplesmente como “a violação de uma norma ou de um dever que se impõe ao agente”,[11] nas palavras de Geniviève Viney, Patrice Jourdain e Suzanne Carval. Na Alemanha, a negligência (Fahrlässigkeit) é definida no § 276 II do BGB como a violação do cuidado exigido no tráfego (relações sociais), tratando-se, segundo a doutrina majoritária daquele país, de um critério objetivo: deve-se agir com o cuidado que se espera de um ser humano normal, prudente e dotado de competências e habilidades de um homem médio.[12]

No Brasil também se afirma que “a noção de culpa é normativa” e que, “não havendo normas legais ou regulamentares específicas, o conteúdo do dever objetivo de cuidado só pode ser determinado por intermédio de um princípio metodológico – comparação do fato concreto com o comportamento que teria adotado, no lugar do agente, um homem comum, capaz e prudente”.[13] Ora, a adoção desse conceito normativo da culpa exclui a pretensa incompatibilidade entre essa noção e o mencionado critério objetivo-finalístico do abuso de direito. Aliás, o próprio Josserand, ferrenho defensor do critério funcional ou finalístico[14], jamais negou que o abuso fosse uma aplicação concreta da ideia de culpa no exercício de certos direitos[15].

É claro que a adoção de um conceito objetivo de culpa dificulta a distinção deste elemento em relação à ilicitude ou à antijuridicidade. Talvez essa oposição sequer seja necessária para o Direito Civil, mas é uma questão irrelevante para a conclusão deste breve artigo: o Enunciado 37 da 1a Jornada de Direito Civil deve ser repensado.[16] Em sua atual redação, o verbete prejudica a compreensão das questões práticas enfrentadas pelos tribunais. Além disso, ele é desnecessário nos casos em que é invocado, seja porque já existe um fundamento jurídico para uma responsabilidade objetiva, como ocorre, por exemplo, nos casos envolvendo planos de saúde, citados acima, nos quais se aplicam as regras do CDC, seja porque a culpa ou o dolo são patentes, como, por exemplo, no caso do corte unilateral de fornecimento de água e no da impugnação da candidatura com provas forjadas, decididos pelo TJ-RS.

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).

[1] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB, 13 ed. São Paulo: Atlas, 2015. vol. 1, p. 587.
[2] TJSP, 7a Câm. de Direito Privado, Apelação 1025050-49.2016.8.26.0002, Rel. Des. Rômolo Russo, j. em 10/05/2017, v.u.; Apelação nº 1000669-23.2014.8.26.0462, Rel. Des. Rômolo Russo, j. em 04/05/2017, v.u.; dentre outros.
[3] TJSP, 13a Câm. de Direito Privado, Apelação 0001932-06.2010.8.26.0444, Rel. Des. Ana de Lourdes Coutinho Silva da Fonseca, j. em 09/03/2014, v.u.
[4] TJSP, 35a Câm. de Direito Privado, Apelação 0221569-30.2010.8.26.0000, Rel. Des. José Malerbi, j. em 18/03/2013.
[5] TJRS, 9a Câm. de Direito Civil, Apelação Cível 0180860-35.2013.8.21.7000, Des. Miguel Ângelo da Silva, j. em 25/09/2013.
[6] TJRS, 9a Câm. Cível, Apelação Cível 0192035-26.2013.8.21.7000, Des. Miguel Ângelo da Silva, j. em 24/06/2014, v.u.
[7] FRADERA, Véra Jacob de. L’influence de la doctrine française dans l’actuel code civil brésilien. In Mélanges Camille Joffret-Spinosi. Paris: Dalloz, 2014, p. 664.
[8] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, 23 ed. São Paulo: Saraiva, 2017. v. 1, p. 453. Itálico no original.
[9] Ibidem, p. 464.
[10] ALVIM, Agostinho. Culpa e risco, 2 ed. rev. e atual. por Ovídio Rocha Barros Sandoval. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 108-109. Itálico no original.
[11] VINEY, Geneviève; JOURDAIN, Patrice; CARVAL, Suzanne. Les conditions de la responsabilité, 4 ed. Paris: LGDJ, 2013, p. 445 (= n. 443)
[12] KÖTZ, Hein; WAGNER, Gerhard. Deliktsrecht, 11 ed. Munique: Franz Vahlen, 2010, p. 54 (= n. 113).
[13] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil, 9 ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 34.
[14] JOSSERAND, Louis. De l’esprit des droits et de leur relativité: théorie dite de l’abus des droits. 2 ed. Paris: Dalloz, 1939, pp. 394-400 (= n. 291 e s.).
[15] Ibidem, p. 382 (= n. 283).
[16] Outras críticas ao Enunciado 37 são encontradas em REINIG, Guilherme Henrique Lima; CARNAÚBA, Daniel Amaral. Abuso de direito e responsabilidade por ato ilícito: críticas ao Enunciado 37 da 1a Jornada de Direito Civil. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 7, ano 3, p. 63-94, São Paulo, abr.-jun. 2016.


Guilherme Henrique Lima Reinig é professor adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina, mestre e doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

Daniel Amaral Carnaúba é professor Adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora (campus Governador Valadares). Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo e mestre em Direito Privado pela Université Panthéon-Sorbonne (Paris 1). Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo


Revista Consultor Jurídico, 16 de outubro de 2017, 8h00

https://www.conjur.com.br/2017-out-16/direito-civil-atual-abuso-direito-culpa-responsabilidade-civil