quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Questões polêmicas sobre a prisão civil por dívida alimentar

Por ério Cruz e Tucci
A primeira questão polêmica que veio a ser resolvida pelo Código de Processo Civil de 2015 concerne justamente à execução de prestações alimentares lastreada em título executivo extrajudicial.
Com base no artigo 784, extrai-se a possibilidade da celebração de inúmeros instrumentos particulares de transação contendo cláusulas que fixam obrigação alimentar, desde que referendados pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública, pela Advocacia Pública, pelos advogados dos transatores ou por conciliador ou mediador devidamente credenciado pelo tribunal. Ainda, o artigo 733 do novo diploma processual, repetindo a norma do artigo 1.124-A do código revogado (introduzido pela Lei 11.441/2007), possibilita a formalização extrajudicial da separação e do divórcio consensuais, e agora também a instrumentalização da dissolução consensual de união estável, de casais sem filhos incapazes e não havendo nascituros, admitindo-se, como é curial, a inclusão, no respectivo ato notarial, de disposições relativas à pensão alimentícia devida em favor de um dos cônjuges ou companheiros.
Em todas essas hipóteses, caso haja inadimplência da obrigação alimentar, o título executivo se consubstancia na própria escritura pública de transação, separação, divórcio ou dissolução de união estável.
Diante dessa evidência, o legislador de 2015 estruturou separadamente, de modo criterioso, o cumprimento de sentenças que impõem a obrigação de prestar alimentos, nos artigos 528 e seguintes; e reservou a disciplina da execução de alimentos, fundada em título extrajudicial, nos artigos 911 e seguintes do Código de Processo Civil.
Vale destacar, todavia, que a discrepância de tratamento entre o cumprimento de sentença e a execução de título extrajudicial revela-se apenas aparente. Apesar de a regulamentação de ambos encontrar-se em capítulos diferentes, receberam basicamente o mesmo regramento. E isso porque o parágrafo único do artigo 911 faz expressa alusão aos parágrafos 2º a 7º do artigo 528, tornando inequívoco o entendimento de que nas duas diversificadas situações é cabível a aplicação do meio coercitivo da prisão civil.
Não havia motivo para interpretação em sentido contrário. Mesmo sob a regência do velho código, doutrina e jurisprudência já haviam se posicionado, prevalentemente, no sentido de permitir a execução de alimentos sob pena de prisão, mesmo quando fundada em título executivo extrajudicial.
Se não fosse admitido o cumprimento do acordo que versa sobre alimentos, pelo procedimento contemplado nos parágrafos 2º a 7º do artigo 528 do Código de Processo Civil, estaria inteiramente desprestigiada a extinção extrajudicial dos casamentos e uniões estáveis, uma vez que a dissolução perante o Poder Judiciário produziria um instrumento muito mais eficaz do que o ato notarial equivalente. A distorção seria enorme e sem fundamento!
Assim, e por força da suprarreferida remissão expressa do artigo 911, é inarredável a conclusão de que todos os meios executivos pré-ordenados para o cumprimento de sentença que reconhece a obrigação de natureza alimentar são aplicáveis às obrigações decorrentes de títulos executivos extrajudiciais que imponham obrigação de pagar alimentos do Direito de Família.
No cumprimento de sentença ou decisão antecipatória, que tenha por objeto obrigação alimentar, sempre a requerimento do exequente, o juiz determinará a intimação pessoal do executado para, em três dias, pagar o débito, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuar o pagamento.
Para a execução de prestações alimentares, prevista no artigo 528 do Código de Processo Civil, com a possibilidade de ser decretada a prisão, exige-se a intimação pessoal do devedor, não bastando a mera intimação na pessoa de seu advogado. A observância dessa determinação é inafastável sempre que a execução de alimentos definitivos se der ex intervallo, com a prévia extinção do processo de conhecimento, ainda que não tenha transcorrido o prazo de um ano a contar do trânsito em julgado, de acordo com a previsão do artigo 513, parágrafo 4º. Fica, pois, excluída a aplicação da regra geral do artigo 513, parágrafo 2º, inciso I, que contempla a intimação pela imprensa oficial, na pessoa do advogado, para as execuções de alimentos definitivos, sob pena de prisão. A necessidade da intimação pessoal na situação em apreço, como é evidente, decorre da gravidade da imposição da restrição à liberdade física, que não pode surpreender o devedor em circunstância alguma. A intimação do devedor será feita por meio de carta com aviso de recebimento, encaminhada para o endereço constante dos autos, sendo ônus das partes mantê-lo atualizado (cf. artigo 274 do Código de Processo Civil).
Todavia, se o cumprimento não for de sentença, mas de decisão antecipatória de tutela, instaurado em autos suplementares, forçosamente perante o mesmo juízo no qual ainda tramita o processo, entendo que é dispensável a intimação pessoal do devedor que tem procurador constituído nos autos. É suficiente que a intimação se aperfeiçoe na pessoa do advogado que representa o executado, o que propicia enorme economia de esforços e garante maior celeridade ao processo, dispensando atos e termos desnecessários.
Caso o executado não cumpra o comando judicial, o respectivo ato decisório poderá ser levado a protesto, incumbindo ao exequente apresentar certidão de inteiro teor do provimento condenatório ao cartório de protesto (artigo 517). A previsão de protesto do pronunciamento judicial confere maior efetividade à execução de alimentos, sendo ainda possível a inscrição do nome de devedor de alimentos no cadastro de proteção ao crédito, segundo preceituam os parágrafos 3º e 5º do artigo 782 do Código de Processo Civil.
Consoante o disposto no artigo 517, parágrafos 1º e 2º, expressamente referido pelo parágrafo 1º do subsequente artigo 528, caberá ao exequente apresentar ao tabelionato de protesto a certidão que indicará o nome e a qualificação do exequente e do executado, o número do processo, o valor da dívida e a data de decurso do prazo para pagamento voluntário.
Independentemente do protesto, no cumprimento que se processa sob pena de prisão, a execução de alimentos não comporta o acréscimo da multa prevista no artigo 523.
Todavia, se o cumprimento de sentença se iniciar pelo procedimento do artigo 528, vale dizer, sob pena de prisão, mas se frustrar mesmo após a imposição da segregação física, o exequente poderá requerer o prosseguimento da execução por meio da sub-rogação de bens, nos termos do que dispõe o subsequente artigo 530. E, nesta hipótese, são perfeitamente cabíveis os acréscimos de multa e honorários previstos no parágrafo 1º do artigo 523.
Já sob outro enfoque, ex vi do parágrafo 7º do artigo 528, só é cabível a execução sob pena de prisão em relação às três prestações anteriores à instauração do cumprimento de sentença e a todas as demais que se vencerem no curso da execução. Trata-se da positivação de construção pretoriana, que já havia sido consolidada no enunciado da Súmula 309/STJ (“O débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo”), o que implica significativa distinção legislativa no tratamento concedido aos alimentos presentes e aos pretéritos. Diante da considerável efetividade advinda do receio da pena de prisão, verifica-se que, ao restringir a possibilidade do seu decreto às três últimas prestações, o legislador praticamente retira a natureza alimentar das dívidas mais antigas, que só podem ser exigidas como débito comum, pelo procedimento previsto no Livro II, Título II, Capítulo III, do novel diploma processual, com temperamento das demais regras aplicáveis à execução de alimentos (excetuando-se, obviamente, a possibilidade do decreto de prisão do devedor).
Se esse entendimento era questionável à vista do aludido enunciado sumulado, deixa de sê-lo a partir da entrada em vigor do Código de Processo Civil, a teor do disposto no parágrafo 7º do artigo 528.
Assim, tratando-se de prestações vencidas há menos de três meses, o exequente pode optar pelo procedimento previsto no artigo 528, requerendo que o cumprimento da sentença ou decisão antecipatória se faça sob pena de prisão. Alternativamente, o devedor pode requerer o cumprimento de sentença de conformidade com o artigo 523 e seguintes, também do Código de Processo Civil, caso em que não será admissível o pedido de prisão do executado. Os meios executórios, nessa hipótese, devem recair sobre o patrimônio do devedor, com a penhora de bens suficientes à satisfação do crédito alimentar e, se não houver o pagamento voluntário no prazo de 15 dias, a dívida pode sofrer acréscimos de multa e honorários.
Não cabe a fixação de honorários advocatícios se no prazo de três dias o devedor proceder ao pagamento do débito alimentar. Primeiramente, porque não poderia haver decreto de prisão por dívida diversa da alimentar. Mas, além disso, há de se outorgar tratamento simétrico à questão, seja no cumprimento processado pelo artigo 528, seja naquele disciplinado pelo artigo 523. E o parágrafo 1º do artigo 523 não deixa margem para dúvidas: só cabe a fixação de honorários advocatícios de sucumbência, na fase de cumprimento de sentença, se o devedor intimado não proceder ao pagamento da dívida, acrescida de custas, no prazo que para tanto lhe for assinado.
José Rogério Cruz e Tucci é professor titular e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP, além de membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.
Revista Consultor Jurídico, 31 de julho de 2018, 8h00
https://www.conjur.com.br/2018-jul-31/paradoxo-corte-questoes-polemicas-prisao-civil-divida-alimentar

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