quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

A pessoa com deficiência pode se casar? Análise do casamento da pessoa com deficiência à luz da Lei n.º 13.146/15.

Publicado por Uilson Pacheco

A lei 13.146, de 6 de julho de 2015, institui o Estatuto da Pessoa com Deficiência, inovado no campo da capacidade civil das pessoas, têm seus defensores e críticos. A referida lei outorga às pessoas com deficiência, irrestritamente, capacidade civil plena, inclusive para casar-se e constituir família, revogando em parte os primeiros artigos do Código Civil de 2002.

Dessa forma, o Estatuto da Pessoa com Deficiência preceitua em seu artigo 6º que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para casar-se e constituir união estável, exercer direitos sexuais e reprodutivos, exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar, conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória, exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária, além de exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

Ademais, a lei ao originar tais direitos, efetivou segundo a doutrina efetivou o princípio da dignidade da pessoa humana. Vislumbra na historia de Rosana[1], deficiente de 20 anos de idade, o qual seu sonho sempre foi o de se casar. Em contrapartida, há críticos, afirmando que a lei terá efeitos desastrosos, por exemplo, Tomazette e Araújo (2015), que afirma que as mudanças introduzidas pela Lei nº 13.146/2015, embora muito bem intencionadas, podem ter impactos desastrosos sobre a segurança jurídica esperada.

Primeiramente, a terminologia usada para designar uma pessoa com deficiência, certo que a cultura e a época têm sua parcela de influência sobre o termo adotado, todavia, alguns, senão todos têm cunho pejorativo, convém um breve esboço evolução destes termos.

Nos primórdios pelo Decreto federal nº 60.501, de 14 de março de 1967, que deu nova redação ao Decreto nº 48.959-A, de 19 de setembro de 1960, os deficientes eram chamados de inválidos, tidos pela sociedade como inúteis. Incapacitados era o termo usado em meados dos anos 60, considerado um avanço, visto que, agora a sociedade os reconhecia. Dos anos 60 aos 80 o termo variou para os defeituosos, evidenciado naqueles que tinham deformidades físicas. Na mesma época surgiu o termo, os excepcionais, dirigidos àqueles com algum retardo mental. Por fim, a partir dos anos 90 adveio o termo “pessoas com deficiência”, que foi aceita pela maioria das próprias pessoas com deficiência (SASSAKI, 2016).

Recentemente, houve a promulgação da lei nº 13.146 de 6 de julho de 2015 trás inovações quanto ao crivo da capacidade civil das pessoas. Em seu artigo 114, a referida lei expressamente revoga os inciso II do artigo e inciso I do artigo 1.548, ambos do Código Civil. Introduzindo o parágrafo 2º ao artigo 1.550 do Código Civil, dispondo que “a pessoa com deficiência mental ou intelectual, em idade núbil, poderá contrair matrimônio, expressando sua vontade diretamente ou por meio de seu responsável ou curador” (BRASIL. 2015, online).

Assim o artigo 1.548, inciso I, do Código Civil de 2002, dispusera que “é nulo o casamento contraído pelo enfermo mental sem o necessário discernimento para os atos da vida civil”, da mesma forma o artigo 1550, inciso I do Código Civil, preceitua "é anulável o casamento do incapaz de consentir ou manifestar, de modo inequívoco, o consentimento". (BRASIL. 2002, online)

O embasamento legal para o Estatuto foi o Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que ratificada, incorporou ao nosso ordenamento jurídico, abrindo possibilidade a afirmar que deficiência mental não é quer dizer enfermidade com força suficiente para impedir o casamento, ou seja, não constitui proibição legal de contrair casamento ou união estável.

Segundo Alves (2016), em hipótese alguma o deficiente mental ou doente mental pode ser considerado “menos humano”, a proibição imposta ao doente mental é inadmitida frete a um dos pilares do Estado democrático de Direito, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, conciso no artigo , inciso III, da Constituição Federal de 1988.

Uma das modificações feita pelo Estatuto da Pessoa Deficiência é a redução da abrangência dos absolutamente incapazes, que somente são considerados os menores de 16 anos. Outra alteração, foi a de que por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade, agora passam a ser relativamente incapazes.

Notável mudança se reflete naquela que por deficiência mental, aqueles tenham o discernimento reduzido deixa de ser incapaz, agora adquirirem capacidade plena. Tomazette e Araújo (2015), por outro lado, defendem que a teoria das incapacidades deve ser encarada como um sistema de proteção e não como mera limitação de cunho preconceituoso.

A rigor, é impossível falar do casamento da pessoa com deficiência sem discutir sobre a instituição de sua capacidade para exercer tal ato, portanto, conclui-se por duas correntes divergentes.

Por um lado a modificação da capacidade civil dos deficientes considerada como um direito humano adquirido, como denota a explanação de Alves (2016), que como observado, o casamento é aspecto relevante no processo de inserção social que portadores de doenças e deficiências mentais devem obter. Mais que simples exercício de um direito, constitui uma afirmação de suas individualidades.

Em equivalência adversa, Tomazette e Araújo (2015, p. 01), asseveram que, “o afastamento das pessoas com deficiência do regime das incapacidades, na forma das alterações inseridas pelo Estatuto, sem considerar as peculiaridades do caso concreto, não é uma garantia de proteção às pessoas com deficiência”.

Em suma, o presente escrito pugna-se pelos direitos estabelecidos na lei 13.146 de 2015, onde a dignidade humana e a possibilidade de se ter uma vida normal se efetiva, sendo crucial para todo ser humano constituir sua família.

REFERENCIAS

ALVES, Jones Figueirêdo. Casamento do Incapaz é mais que Simples Exercício de um Direito. Consultor Jurídico, 2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-ago-20/jones-figueiredo-casamento-incapaz-simples-direito >. Acessado em 3 Abr 2016.

BRASIL. Código Civil Brasileiro. Lei nº 10.406 de 10 de Janeiro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm> Acessado em: 3 abr 2016.

_______. Estatuto da Pessoa com Deficiência. Lei nº 13.146 de 6 de Julho de 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm> Acessado em: 3 abr 2016.

G1. “Sempre sonhei casar”, diz 1ª noiva com deficiência intelectual do país. Disponível em: http://g1.globo .com/sp/campinas-regiao/noticia/2016/02/sempre-sonhei-casar-diz-1-noiva-com-deficiencia-intelectual-do-pais.html > Acessado em: 3 Abr 2016.

SASSAKI, Romeu Kazumi. Como chamar as pessoas que têm deficiência? São Paulo, 2005. Disponível em: http://teleduc.proinesp.ufrgs.br/cursos/diretorio/tmp/376/portfolio/i tem/40/Como_chamar_as_pessoas_que_tem_deficiencia.pdf > Acessado em: 3 Abr 2016.

TOMAZETTE, Marlon; ARAÚJO, Rogério Andrade Cavalcanti. Estatuto da Pessoa com Deficiência: crítica à incapacidade de fato. Revista Jus Navigandi, Teresina, 2015. Disponível em: < https://jus.com.br/artigos/42271>. Acesso em: 3 Abr 2016.

https://uilsonpacheco1.jusbrasil.com.br/artigos/544796085/a-pessoa-com-deficiencia-pode-se-casar?utm_campaign=newsletter-daily_20180214_6680&utm_medium=email&utm_source=newsletter

Entenda como funciona o Regime da Comunhão Parcial de Bens

Publicado por Cristiane Gulyas Piquet Souto Maior

Olá Pessoal! O tema de hoje é Regime da Comunhão Parcial de bens.

Vou explicar de modo bem simples, e sem entrar muito em detalhes, como funciona e o que será partilhado, em vida e na morte!!

Este tipo de Regime de Bens é importante porque é a “regra” em nosso ordenamento jurídico. Assim, quando um casal não escolher o Regime de bens, o que irá vigorar será o do Comunhão Parcial[1].

Porém, todas as regras têm exceção, não é mesmo? Haverá casos em que não se aplicará este tipo de regime, como no caso de casamento ou de início de união estável, de pessoa com idade maior de setenta anos.

Lembrando, ainda, que se o casal optar por outro tipo de regime deverá fazer um Pacto Antenupcial antes de se casar. Se viver em União Estável, deverá fazer uma escritura pública de União Estável, definindo expressamente o regime escolhido.

E, para aqueles que já casaram ou são "unidos", mas, não optaram por um regime específico e querem mudar... Saiba que é possível alterar o Regime de bens durante o relacionamento. Para saber como, leia meu artigo “É possível alterar o regime de bens durante o casamento?”.

Bom, vamos ao que interessa!

Primeiramente, deve-se entender que Regime de bens é o conjunto de regras que vai estabelecer como será a administração e a propriedade dos bens do casal e de cada cônjuge/companheiro.

A depender de cada regime, será necessário, ou não, o consentimento do seu parceiro para poder alienar (vender, trocar, doar...) bem imóvel, para prestar fiança ou aval e etc.

Além disso, esse conjunto de regras também vai definir como e quais os bens serão partilhados, na vida e na morte.

Acredito que a maneira mais didática de se entender esse tema é imaginar que quando duas pessoas se unem para formar uma família, vão surgir duas “espécies” de bens: os particulares e os comuns.

Os bens particulares são aqueles que pertencem a cada um dos cônjuges/companheiros. O Código Civil traz uma lista de bens considerados particulares[2].

Em regra, são bens que cada um já possuía antes de iniciar a relação familiar e os bens de uso pessoal como celular, notebook, livros e os instrumentos para exercer a profissão.

Além desses, há bens particulares que podem ser adquiridos durante a união, como os recebidos em herança ou doação e aqueles adquiridos em sub-rogação, ou seja, bens substituídos por outros, exemplo: antes de me casar eu tinha um lote, durante o casamento troquei esse lote por um apartamento, sendo, portanto um bem sub-rogado.

Já os bens comuns[3], em geral, são aqueles que foram adquiridos, onerosamente, durante o casamento ou a união estável.

Também serão considerados bens comuns, aqueles que forem recebidos em herança ou doação em favor do casal, os bens conquistados por um “fato eventual” e os "frutos" recebidos durante a união familiar.

Para entender melhor o que é fato eventual, tente substituir essa locução pela palavra “sorte”. Quer um exemplo? Se durante a relação você acertar na Megasena, vai receber um prêmio, não é mesmo? Esse prêmio será considerado um bem comum.

Frutos são alguma coisa produzida periodicamente, como os rendimentos do aluguel de um imóvel. Nesse caso, tanto faz se o imóvel pertence ao marido, à esposa ou ao casal, o aluguel será de ambos.

Outro exemplo de frutos são os valores depositados nas contas vinculadas ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) do trabalhador, e deverão ser repartidos aqueles que forem depositados durante o relacionamento.

Isso porque o Supremo Tribunal Federal entendeu, em julgamento que tratou sobre sua natureza jurídica, que o FGTS é considerado fruto civil do trabalho[4].

Entendido o que são bens particulares e bens comuns, agora vai ficar mais fácil de entender como se dará a divisão desses bens.

Com a dissolução do casamento ou da União Estável, que pode ser em vida ou na morte, a partilha se dará da seguinte forma:

No caso de rompimento em vida, apenas os bens comuns serão partilhados de modo igualitário.

É importante frisar que não importa em nome de quem o bem esteja, se em nome dos dois ou de apenas um dos cônjuges/companheiros, cada um terá direito a receber metade do patrimônio comum, é o que em “juridiquês”chamamos de meação.

Além disso, em recente julgado[5], os ministros do Superior Tribunal de Justiça decidiram que não há necessidade de comprovação da contribuição financeira na aquisição do bem para ter direito à meação. Pois, consideraram que o suporte emocional e apoio afetivo também são formas de contribuição para a aquisição do patrimônio comum do casal.

Outro ponto importante é que para alienar (vender, trocar, doar) um bem imóvel adquirido durante a relação será necessária autorização do outro, a famosa “outorga uxória”[6].

Se essa autorização não for concedida, o cônjuge prejudicado poderá ajuizar ação na justiça pedindo a anulação do negócio realizado.

Porém, para os casais que vivem em União Estável, apesar de se sujeitarem às regras da Comunhão Parcial de bens[7], e de ser necessária, igualmente, a autorização, se um dos companheiros vender, trocar, doar, sem o consentimento do outro, aquele que não concordar com a alienação e se sentir prejudicado, não terá direito de pedir a anulação desse negócio, mas, tão somente o pedido de perdas e danos contra o companheiro que alienou sem o seu consentimento.

Parece injusto? Esse foi o entendimento dos ministros do STJ, em recente julgado[8], pois, consideraram que o adquirente de boa-fé não tem como saber sobre a existência de uma União Estável, visto que é uma situação de fato e não ato solene como o casamento, portanto, deve ser protegido.

Nesses casos, sugiro, como forma de proteger o patrimônio comum do casal, fazer um registro imobiliário no Cartório quanto à existência da União Estável.

E, no caso de morte, como fica a partilha dos bens?

Além da meação dos bens comuns que foram adquiridos onerosamente, dos recebidos em herança ou doação feita ao casal e dos adquiridos por "sorte" , o viúvo (a) ainda terá direito a dividir a herança dos bens particulares juntamente com os herdeiros do falecido: os descendentes (filhos, netos) ou ascendentes (pais, avós).

Por isso, é importante escolher bem o marido, quer dizer, o regime de bens!

É isso pessoal! Espero que tenham gostado do tema.

Referências:

BRASIL, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui Código Civil. DOU 11.01.2002
BRASIL, Lei nº 9.278, de 13 de maio de 1996. Regula o § 3º do art. 226 da Constituição Federal.
BRASIL, Constituição (1988). Constituição da Republica Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Organização de texto: Juarez de Oliveira. 4.ed.São Paulo: Saraiva, 2017.
FARIAS, Cristiano Chaves de: ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. 3.ed.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
NERY JUNIOR, Nelson. Código Civil comentado, 10.ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013
AGRAVO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO nº 709.212/DF – Relator: Min. Gilmar Mendes
RECURSO ESPECIAL nº 1.485.014/MA – Relator: Min. Moura Ribeiro
RECURSO ESPECIAL Nº 1.592.072/PR – Relator: Min. Marco Aurélio Bellize
[1] Art. 1.640 do Código Civil.
[2]Art. 1.659 do Código Civil.
[3]Art. 1.660 do Código Civil.
[4] ARE nº 709.212/DF
[5] Resp nº 1.485.014/MA
[6]Art. 1.647 do Código Civil.
[7]Art. 1.725 do Código Civil.
[8] Resp nº 1.592.072/PR

https://crisgpsmaior.jusbrasil.com.br/artigos/544794336/entenda-como-funciona-o-regime-da-comunhao-parcial-de-bens?utm_campaign=newsletter-daily_20180214_6680&utm_medium=email&utm_source=newsletter

Separação obrigatória com pacto antenupcial? Sim, é possível.

Publicado por Flávio Tartuce

Artigo do Professor José Fernando Simão - Livre-docente, Doutor e Mestre em Direito Civil pela USP. Professor Associado do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP. Advogado e Consultor Jurídico. Diretor Nacional e Estadual do IBDFAM.

Fonte: Consultor Jurídico.

Dedico essas linhas a Flavio Tartuce, que por meio de seus escritos muda e tem mudado o Direito de Família no Brasil1.

1. Heitor e Ana Lucia. A sua estória

Conheci Heitor quando ele, amigo de meu pai de longa data, procurou nosso escritório para promover uma ação contra a Prefeitura de São Paulo. Era um senhor com mais de 70 anos, casado há quase 50 com Ana Lucia.

A relação profissional se aprofundou, e uma grande confiança surgiu. Após algum tempo, com a demanda contra a prefeitura já proposta, Heitor me procura para uma conversa e revela que se apaixonara perdidamente por Iara, uma senhora deslumbrante com 30 anos a menos que ele.

Em decisão súbita, Heitor comunica Ana Lucia que queria o divórcio e, em poucos dias, sai de casa, passando a morar com Iara. Ana Lucia, respeitando a decisão do marido, concorda não só com o divórcio, como também com a partilha de bens. Heitor fica com todos os bens imóveis do casal, à exceção do apartamento residencial onde Ana Lucia residia, e passa a pagar 1/3 do valor de sua aposentadoria a título de pensão.

Iara convence Heitor a se mudar com ela para Santa Catarina, onde ela tinha família. Sob as súplicas de Iara, Heitor vende boa parte de seus bens e transfere os demais a Iara, por quem Heitor se declarava irremediavelmente apaixonado2.

Acabando de doar os bens, já sem dinheiro, Heitor passa a ser vítima de violência, apanhando de Iara e seu filho. Iara o expulsa de casa, e Heitor volta a São Paulo para residir em um flat. Iara propõe uma ação de alimentos contra Heitor, afirma que foi abandonada e a ele pede pensão. A questão se agrava quando ela o acusa de estupro perante a juíza.

Em suma, após muito debate, Heitor faz um acordo: pagará a Iara um valor a título de alimentos em uma única parcela. Sendo essa quitada, o acordo declarava o fim da dependência econômica de Iara quanto a Heitor.

Contudo, por artes do destino, Heitor fica doente e precisa de cuidados. Ana Lucia, mãe de seus filhos e avó de seus netos, resolve cuidar de Heitor. Apesar de não mais querer morar com ela, há carinho e cuidado que se revelam.

Heitor, sem bens, mas ainda recebendo a pensão decorrente de sua aposentadoria, me pergunta: como faço para evitar que Iara, maliciosamente, peça uma parte de minha pensão quando de minha morte? Dei a solução: se case novamente com Ana Lucia!

Ambos aceitaram a ideia, e o regime de bens, em razão da idade, seria o de separação obrigatória. Contudo, alertei o casal que, em razão da Súmula 377 do STF, os bens que viessem a ser comprados após o casamento seriam comuns3. Isso Ana Lucia não aceitava. A história do casal fora suficientemente tumultuada para tanto.

Sugeri eu: vamos então elaborar um pacto antenupcial adotando o regime de separação total de bens! O problema foi achar um tabelionato de notas que aceitasse lavrar a escritura.

2. Pacto antenupcial e o Recurso Administrativo 1065469-74.2017.8.26.0100 da Corregedoria Geral de Justiça do TJ-SP

A discussão sobre a possibilidade de pacto antenupcial para as hipóteses em que a lei impõe separação obrigatória, mormente para os maiores de 70 anos (artigo 1.641, inciso II do CC), é bastante interessante, pois normalmente passa por uma sedutora a simplificação de raciocínio que leva à conclusão equivocada (mas também sedutora).

A premissa da qual partem alguns é a seguinte: se a separação é obrigatória, a lei retirou a faculdade de escolha do regime de bens, logo o pacto é nulo por fraude à lei cogente.

Esse raciocínio linear e incorreto padece de um vício: a ausência de compreensão da teleologia, ou finalidade, da norma.

Por que a lei impõe o regime de separação de bens a certas pessoas? Porque ela pretende proteger certas pessoas de si próprias, pois entende que o casamento pode ser fonte de prejuízos. Entende que a pessoa pode ser vítima de “golpe do baú”, em que o casamento tenha finalidade argentária e não afetiva.

A separação é almejada de maneira cogente. A separação de bens implica a não comunhão, a ausência de meação e que todos os bens do casal sejam particulares (só dele ou só dela).

A Súmula 377 do STF perverteu o sistema. Criou comunhão parcial em um regime dito de separação, em um regime cujo objetivo era proteger os nubentes. Assim dispõe:

“No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”.

O STJ entende que, mesmo com a revogação do artigo 259 do Código Civil de 1916, a Súmula 377 produz seus efeitos:

“COMPANHEIRO SEXAGENÁRIO. SÚMULA 377 DO STF. BENS ADQUIRIDOS NA CONSTÂNCIA DA UNIÃO ESTÁVEL QUE DEVEM SER PARTILHADOS DE FORMA IGUALITÁRIA. A ratio legis foi a de proteger o idoso e seus herdeiros necessários dos casamentos realizados por interesse estritamente econômico, evitando que este seja o principal fator a mover o consorte para o enlace”4.

Então surge uma pergunta: se a ratio legis é a proteção daquele que se casa e a súmula acaba por desproteger tais pessoas, pois gera uma comunhão dos aquestos, por que não se admitir um pacto antenupcial que estabeleça a separação total de bens?

Se o pacto gerar comunhão quando a lei quer evitá-la, o pacto será nulo. Assim, se a avença por um regime de comunhão universal, parcial de bens ou participação final nos aquestos for estabelecida por pacto antenupcial, este será nulo. Em outras palavras, se os nubentes adotarem um regime misto, criando comunhão em hipótese que a lei proíbe, o pacto será nulo.

Se, contudo, estabelecerem a separação total de bens, o espírito do Código Civil será observado. É por isso que a lei deve ser interpretada de acordo com sua finalidade. É válido e possível o pacto antenupcial que estabeleça separação mais radical que a obrigatória.

Esse tema foi solucionado em Pernambuco por iniciativa do amigo desembargador Jones Figueiredo Alves, por meio do Provimento 8 de 2016 da Corregedoria Geral de Justiça. Os “considerandos” merecem transcrição:

“CONSIDERANDO que é possível, por convenção dos nubentes e em escritura pública, o afastamento da aplicação da Súmula 377 do STF, 'por não ser o seu conteúdo de ordem pública mas, sim, de matéria afeita à disponibilidade de direitos' (ZENO VELOSO);

CONSIDERANDO que enquanto a imposição do regime de separação obrigatória de bens, para os nubentes maiores de setenta anos, é norma de ordem pública (artigo 1.641, II, do Código Civil), não podendo ser afastada por pacto antenupcial que contravenha a disposição de lei (art. 1.655 do Código Civil); poderão eles, todavia, por convenção, ampliar os efeitos do referido regime de separação obrigatória, 'passando esse a ser uma verdadeira separação absoluta, onde nada se comunica' (JOSÉ FERNANDO SIMÃO);

CONSIDERANDO que podem os nubentes, atingidos pelo artigo 1.641, inciso II do Código Civil, afastar por escritura pública, a incidência da Súmula 377 do STF, estipulando nesse ponto e na forma do que dispõe o artigo 1.639, caput,do Código Civil, quanto aos seus bens futuros o que melhor lhes aprouver (MÁRIO LUIZ DELGADO);

CONSIDERANDO que o afastamento da Súmula 377 do STF, 'constitui um correto exercício de autonomia privada, admitido pelo nosso Direito, que conduz a um eficaz mecanismo de planejamento familiar, perfeitamente exercitável por força de ato público, no caso de um pacto antenupcial (artigo 1.653 do Código Civil)'; conforme a melhor doutrina pontificada por FLÁVIO TARTUCE".

Conclui o provimento:

"Art. 664-A. No regime de separação legal ou obrigatória de bens, na hipótese do artigo 1.641, inciso II, do Código Civil, deverá o oficial do registro civil cientificar os nubentes da possibilidade de afastamento da incidência da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, por meio de pacto antenupcial. Parágrafo Único. O oficial do registro esclarecerá sobre os exatos limites dos efeitos do regime de separação obrigatória de bens, onde comunicam-se os bens adquiridos onerosamente na constância do casamento".

Em São Paulo, decisao de dezembro de 2017, da Corregedoria-Geral de Justiça, seguiu linha idêntica e deu perfeita interpretação ao Código Civil.

“REGISTRO CIVIL DE PESSOAS NATURAIS – CASAMENTO – PACTO ANTENUPCIAL – SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA – ESTIPULAÇÃO DE AFASTAMENTO DA SÚMULA 377 DO STF – POSSIBILIDADE. Nas hipóteses em que se impõe o regime de separação obrigatória de bens (art. 1641 do CC), é dado aos nubentes, por pacto antenupcial, prever a incomunicabilidade absoluta dos aquestos, afastando a incidência da súmula 377 do Excelso Pretório, desde que mantidas todas as demais regras do regime de separação obrigatória”.5

Na realidade, algo deve ser frisado: o casal não se casa por separação convencional de bens após fazer o pacto. Casa-se por separação obrigatória com pacto antenupcial de separação de bens.

Isso resolve a questão sucessória decorrente do artigo 1.829, inciso I. O regime não é de separação convencional com a decorrente concorrência sucessória entre cônjuge e descendentes. É de separação obrigatória com pacto antenupcial e, portanto, em matéria sucessória, prevalece a não concorrência. Portanto, com a morte de um dos cônjuges, todos os bens do falecido pertencerão aos descendentes.

Uma segunda questão que surge é a seguinte: aqueles que estão casados por separação obrigatória sem pacto antenupcial (afinal não conseguiam sequer celebrar o pacto por resistência dos tabelionatos e ausência de regra da Corregedoria) podem se beneficiar da nova decisão do TJ-SP?

A resposta é afirmativa. Cabem se utilizar do procedimento de mudança do regime de bens para que o juiz autorize essa nota: que o regime é de separação obrigatória, mas sem comunicação dos aquestos.

Se a mudança não fosse possível, os casais poderiam se divorciar, casar novamente e então celebrar o pacto, somente agora autorizado pelo sistema jurídico de maneira clara e evidente. Razão não há para se exigir um divórcio, se o problema se resolve com a “mudança” de regime para exclusão dos aquestos da comunhão.

Isso atende ao espírito da lei.

Surge uma última questão interessante. Se o casal não quiser afastar a Súmula 377 totalmente, mas apenas parcialmente, por meio de pacto antenupcial, isso é possível? A resposta é afirmativa e explico o porquê.

Se a lei não pretende que haja comunicação alguma (interpretação teleológica) e a Súmula 377 permite a comunhão de todos os aquestos (afasta-se do espírito do Código Civil), podem os nubentes, por pacto, afastar parcialmente a incidência da súmula para que haja comunhão de alguns, mas não de todos os aquestos. O pacto pode prever separação total com relação aos imóveis apenas. Ao contrário, pode prever a separação apenas quanto aos móveis.

Em suma, a leitura feita pela CGJ/TJ-SP merece aplausos. Fica melhor compreendido e aplicado o Direito de Família no estado de São Paulo.

1 http://www.migalhas.com.br/FamiliaeSucessoes/104,MI239721,61044-Da+possibilidade+de+afastamento+da+sumula+377+do+STF+por+pacto
2 As matrículas dos imóveis comprovam as doações.
3 Sobre o desacerto da aplicação da Súmula 377 e suas controvérsias já publiquei diversos textos. Assim: http://professorsimao.com.br/artigos_simao_regime_separacao.html
4 REsp 1689152/SC, rel. ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 24/10/2017, DJe 22/11/2017.
5 Recurso Administrativo 1065469-74.2017.8.26.0100, parecer de Iberê de Castro Dias, juiz assessor da Corregedoria, aprovado por Manoel de Queiroz Pereira Calças, corregedor-geral da Justiça, em 6 de dezembro de 2017, publicado em 23.01.2018.

Fontes: https://www.26notas.com.br/blog/?p=14166e https://www.extrajudicial.tjsp.jus.br/pexPtl/visualizarDetalhesPublicacao.do?cdTipopublicacao=5&nuSeqpublicacao=6184.

https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/544810807/separacao-obrigatoria-com-pacto-antenupcial-sim-e-possivel?utm_campaign=newsletter-daily_20180214_6680&utm_medium=email&utm_source=newsletter