quinta-feira, 24 de maio de 2018

Do reconhecimento tardio de paternidade

Os direitos mais caros às pessoas naturais são os direitos da personalidade, previstos de modo extenso na Constituição Federal – CF/88, bem como em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

O artigo 1º da CF/88 traz como fundamento da República a dignidade da pessoa humana, em seu inciso III[1], mostrando que o ser humano é o centro do próprio Estado Democrático de Direito, ratificado pelas disposições dos direitos fundamentais insculpidos no art. 5º da Norma Superior e diversos outros diplomas que tratam sobre os direitos da pessoa humana.

Fácil concluir que sem o reconhecimento de filiação não há dignidade.

Dentre as normas internas que dispõem sobre o tema está o Código Civil – CC, diploma que regula a vida civil em sociedade, e que abarca, dentre outros, os preceitos relativos à proteção das pessoas dos filhos (artigos 1.583 e seguintes), da filiação (artigos 1.596 e seguintes) e do reconhecimento dos filhos (artigos 1.607 e seguintes).

O Diploma Civil em comento traz regras sobre a presunção de paternidade, a exemplo da que diz respeito aos filhos nascidos ao menos cento e oitenta dias depois de estabelecida a convivência marital (Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;).

Assim, percebe-se que as disposições legais são presunções relativas de veracidade que podem ser elididas com prova em contrário, sendo o exame de DNA o método mais eficaz para se constatar a paternidade.

Ao contrário do que ocorre com os filhos havidos na constância do casamento, os filhos concebidos sem que haja união conjugal devem ser reconhecidos como tal por seu genitor, sendo que referido reconhecimento pode se dar a qualquer momento.

Sobre o reconhecimento dos filhos, o art. 1.607 do CC assim dispõe:
Art. 1.607. O filho havido fora do casamento pode ser reconhecido pelos pais, conjunta ou separadamente.

Da análise do dispositivo, certo que ambos os pais podem reconhecer os filhos isolada ou conjuntamente. Ademais, mais corriqueiro o reconhecimento realizado pelo pai, posto que a mãe, no mais das vezes, permanece com a criança desde seu nascimento, sendo mais difícil que tenha dúvida sobre a maternidade.

Relativo à questão, eis o que dispõe a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica):
Artigo 18 - Direito ao nome
Toda pessoa tem direito a um prenome e aos nomes de seus pais ou ao de um destes. A lei deve regular a forma de assegurar a todos esse direito, mediante nomes fictícios, se for necessário.

Artigo 19 - Direitos da criança
Toda criança terá direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer, por parte da sua família, da sociedade e do Estado.

Diante do ordenamento jurídico, constata-se a enorme importância de toda pessoa natural conhecer sua origem, ter acesso a seus genitores e sua história em si, motivo pelo qual a legislação e o Poder Judiciário empenham-se em possibilitar a facilitação do reconhecimento de paternidade eliminando burocracias e tornando mais acessível tal ato.

Com o fim de facilitação, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ[2] editou em 2012 o Provimento 16 que dispôs sobre o reconhecimento tardio de paternidade para aqueles que ainda não possuem o registro em sua certidão de nascimento, bem como criou o programa Pai Presente, que, desde 2010, possibilitou milhares de reconhecimentos de paternidade, com trâmite processual de 45 dias em média.

Assim, há a possibilidade de que o reconhecimento de paternidade tenha início fora do âmbito do Poder Judiciário, mas irremediavelmente será concluído pelo Juiz da localidade onde houve o registro de nascimento.

Desta forma, quando trata-se de filho menor ou maior de idade, a mãe e/ou o pai, podem dirigir-se conjunta ou isoladamente a qualquer Cartório de Registro Civil do Brasil a fim de dar início ao processo. Caso a mãe compareça sozinha, esta preencherá uma ficha onde indicará o suposto pai, momento em que é iniciado o processo de reconhecimento de paternidade oficiosa (sendo o filho maior, deverá concordar com o ato).

A Lei 8.560/1992 trata sobre esta modalidade de processo, sendo um procedimento obrigatório quando o registro de nascimento do menor tenha sido lavrado apenas com o nome da mãe.

Após a iniciativa da mãe com a indicação do suposto pai, o oficial do cartório encaminha ao Juiz competente os documentos que instruirão o processo, sendo estes a certidão de nascimento e os dados do suposto pai, e este será intimado a se manifestar em juízo sobre a paternidade.

Caso o suposto pai se recuse a se manifestar ou se persistir a dúvida o Ministério Público é acionado para abertura de ação judicial de investigação de paternidade e realização de exame de DNA.

Havendo negativa do suposto pai em realizar o exame poderá haver presunção de paternidade a ser avaliada junto a todas as provas colhidas no processo.

Por outro lado, sendo do pai a iniciativa de reconhecimento de paternidade, este deverá comparecer a qualquer Cartório de Registro Civil com a cópia da certidão de nascimento do filho que pretende seja reconhecido ou, caso não a possua, deve informar onde ele possa estar registrado. No cartório, o pai deve registrar o reconhecimento da paternidade, por qualquer meio, seja por declaração particular ou preenchendo formulário disponibilizado pelo cartório.

Posteriormente o pedido é encaminhado ao Juiz competente, que pedirá a concordância da mãe - caso o filho seja menor - ou do filho - se ele for maior de idade.

Por fim, a decisão do reconhecimento de paternidade pode vir do filho quando possua 18 anos completos (maioridade civil), sendo que ele deverá procurar o cartório de registro civil com sua certidão de nascimento, preencher o requerimento padronizado e indicar o nome do suposto pai. Igualmente o pedido será encaminhado ao Juiz competente da cidade onde houve o registro do nascimento, assim, o suposto pai será ouvido sobre a paternidade que lhe foi atribuída.

Ademais, caso o reconhecimento seja requerido pelo pai e pelo filho conjuntamente, quando já houver o estabelecimento da paternidade mesmo antes de buscar sua regularização, ambos podem requerer o reconhecimento tardio de paternidade em conjunto diretamente no Poder Judiciário, mesmo que também isso possa ser feito no Cartório de Registro Civil, pois uma opção não anula a outra, assim como disposto a seguir:

AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE CONSENSUAL. PAI E FILHA, MAIORES E CAPAZES, QUE EM COMUNHÃO, PRETENDEM O RECONHECIMENTO. POSSIBILIDADE DE PEDIDO NA VIA JUDICIAL. INTELIGÊNCIA DOS ARTIGOS 1º DA LEI N. 8.590/1992, 1.609 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 E 26 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. SENTENÇA CASSADA. ARTIGO 515, § 3º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. APELO CONHECIDO E PROVIDO. É incontroversa a possibilidade de o reconhecimento de paternidade ser feito administrativamente, pelo Cartório de Registro Civil. Todavia, alegando as partes que lhes foi negado o registro pelo Cartapácio Real, o sistema jurídico, por meio da Lei n. 8.560/92, do Código Civil de 2002 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, autoriza que o Poder Judiciário declare o reconhecimento de paternidade, especialmente diante da maioridade e da capacidade das partes que, em comunhão de vontades, manifestaram-se pelo reconhecimento. (TJSC. Processo: AC 149743 SC 2010.014974-3. Órgão Julgador: Sexta Câmara de Direito Civil. Relator: Jaime Luiz Vicari. Partes: Apelantes: P. E. R. E outro. Julgamento: 1 de Dezembro de 2011. Disponível em: https://tj-sc.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/20843924/apelacao-civel-ac-149743-sc-2010014974-3-tjsc (Grifei).

Deste modo, é certo que o reconhecimento tardio de paternidade no Cartório foi criado com o fim de facilitar o acesso à população em geral, pois o ingresso diretamente na Justiça pode ser um entrave aos mais carentes de informação e de acesso à Justiça.

Com o encerramento dos trâmites, reconhecida a paternidade, o cartório onde consta o registro civil do filho é oficiado para o registro do nome do pai e dos avós paternos na certidão de nascimento do reconhecido e, caso já seja casado, as informações serão incluídas também na certidão de casamento, suprindo-se a lacuna paterna.

NOTAS

[1] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
III - a dignidade da pessoa humana; (Grifei).
[2] “(...) instituição pública que visa aperfeiçoar o trabalho do sistema judiciário brasileiro, principalmente no que diz respeito ao controle e à transparência administrativa e processual”. Fonte: http://www.cnj.jus.br/sobreocnj/quem-somos-visitasecontatos.

DUARTE, Josiane Coelho. Do reconhecimento tardio de paternidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5287, 22dez. 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/62542>. Acesso em: 24 maio 2018.

Casados, erotizados, infantilizados e desprotegidos

Publicado por Renan Marins

Em 15 de agosto de 2017, o Portal do Observatório do Terceiro Setor veiculou uma reportagem sobre a questão do casamento infantil trazendo diversos dados, dentre os quais a informação de que o Brasil é o 4º país do mundo no ranking desse tipo de prática em números absolutos.

A definição de “casamento infantil” é formulada por pesquisadores e ativistas da área dos direitos de crianças e adolescentes a partir do parâmetro internacional fornecido pela Convenção dos Direitos da Criança da ONU (1989), que define como criança a pessoa com menos de 18 anos [nota 1] : entende-se por “casamento infantil” qualquer união conjugal formal ou informal em que ao menos um dos cônjuges tenha menos de dezoito anos. Mas além desse conceito fixado pelo critério etário, a noção de “casamento infantil” contém outras características, presentes no imaginário coletivo e que correspondem aos dados coletados e sistematizados por algumas pesquisas [nota 2]: é mais frequente em regiões de alta vulnerabilidade socioeconômica, e prevalecem as uniões entre meninas e homens mais velhos, a denotar a assimetria de gênero e geracional formada pela sobreposição de relações de poder, que estabelecem relacionamentos potencialmente desiguais e violadores de direitos dessas meninas.

Por outro lado, outros dados apresentam questões menos visibilizadas, que desconstroem outras noções estereotipadas, talvez pensadas a partir da notícia dos rituais de casamentos infantis em regiões da África e Ásia, que envolvem uniões forçadas entre homens cinquentenários e meninas impúberes.

Para compreender alguns aspectos próprios da realidade brasileira, lanço mão do relatório da pesquisa “Ela vai no meu barco – casamento na infância e na adolescência no Brasil”, em que foram pesquisados os Estados do Pará e do Maranhão, apontados no Censo de 2010 como os mais numerosos em casamentos infantis, em cotejo com a legislação brasileira sobre o tema, e sempre pensando a partir de uma perspectiva dos direitos sexuais e reprodutivos como uma dimensão dos Direitos Humanos.

A legislação brasileira não contempla de forma organizada os direitos sexuais e reprodutivos, em especial quando se trata do público adolescente. Estabelecem-se limites etários para o início da vida sexual – para o Direito Penal, é somente a partir dos catorze anos que se passa a considerar válido o consentimento para a prática de quaisquer atos sexuais [nota 3] – e para o casamento, permitido a partir dos dezesseis anos (tanto para as meninas quanto para os meninos), desde que com o consentimento dos pais ou responsáveis (ou com autorização do Juiz da Infância e Juventude à falta destes), sendo que a lei autoriza antecipar a idade núbil para permitir o casamento em qualquer idade se houver gravidez [nota 4] .

O pretexto da lei é proteger os adolescentes, a partir da compreensão infantilizante e equivocada de que estes não estão aptos a exercer de forma alguma sua sexualidade. Criminaliza-se a prática de atos sexuais com pessoas com menos de 14 anos – e para a lei penal tanto faz ser um homem de 40 anos mantendo relações sexuais com uma menina de 13 anos explorada sexualmente, ou se é um casal de adolescentes com idades entre 12 e 14 anos iniciando juntos sua vida sexual: para o Código Penal, ambas as situações estão sujeitas à lei penal/infracional. Aliás, vale lembrar que foi somente a partir de 2009 que o Código Penal passou a considerar crime manter relações sexuais com pessoas de idade entre 14 e 18 anos em situação de exploração sexual [nota 5] . E, ao mesmo tempo, a legislação permite o casamento em qualquer idade se a menina estiver grávida, pois não há uma idade mínima legal para gerar filhos.

Esses são os aspectos jurídico-legais brasileiros a respeito da idade mínima para praticar atos sexuais, casar-se e ter filhos, e esse modelo legal nos traz indicações importantes sobre a vigência de um determinado modelo de moral sexual que impacta a realidade dos casamentos infantis no Brasil. Que reflexões podemos extrair disso tudo? Afinal, se o casamento de pessoas com menos de dezoito anos não é necessariamente ilegal (desde que obedecidos os limites etários e regras acima citadas), há ou não problemas em uma adolescente relacionar-se e assumir uma vida de mulher adulta casada? Vale ressaltar que, de acordo com as pessoas ouvidas na pesquisa (as próprias meninas, seus maridos, pais e familiares), o casamento muitas vezes é realizado pela vontade delas, com o consentimento (e até incentivo) de seus pais. Se todos os envolvidos têm a idade que a lei prevê para exercer um direito, não seria o caso de deixar a liberdade individual de escolha solucionar a questão?

Poderíamos estar falando do direito de dirigir veículo automotor, ou de votar. Mas, no caso, estamos falando de direitos sexuais. E aí não tem como deixar de fora o debate sobre as diferenças construídas sobre os gêneros: é válido afirmar que, social e culturalmente, homens e mulheres são igualmente tratados a respeito de suas escolhas, em especial aquelas do campo da vida sexual?

Para que a escolha sobre qualquer coisa seja livre, é necessário que se disponibilizem todas as opções existentes a quem escolhe. Se, em uma mesma situação, uma pessoa tem à sua disposição mais opções de escolha do que outra, as pessoas envolvidas não estão em igualdade de condições: uma delas terá mais poder de escolha do que a outra. O universo dessas meninas é, frequentemente, de muito poucas escolhas em termos de aspirações de vida relacionadas a estudo e trabalho, combinada com um controle da sexualidade adolescente somente aceita se dentro de um casamento, que passa a ser visto como um caminho seguro para “uma menina direita”, tanto em relação à sua subsistência quanto à possibilidade de almejar aquilo que ela imagina ser a vida de uma “mulher adulta” longe do jugo dos pais.

Ainda neste século XXI recaem sobre as mulheres julgamentos morais sobre suas escolhas sexuais diferentes daqueles que recaem sobre homens. Isto implica uma assimetria de poder neste campo. Quando a esta assimetria se sobrepõe a inevitável experiência de vida cronológica que um adulto terá em superioridade em relação a um (a) adolescente, aumentam as chances de haver um exercício de poder. Se é verdade que este modelo de relação foi considerado normal – ou seja, adequado à norma”, inclusive jurídica – por muitas gerações, em que um sem-número de casamentos foi celebrado exatamente nesses termos, é importante refletirmos o que essa “normalidade” reproduz das relações de poder.

As leis penal e civil refletem uma mentalidade que ainda persiste no sentido de que adolescentes não podem ter vida sexual salvo se dentro do casamento, negando-se sua autonomia para exercer seus direitos individuais e personalíssimos à sexualidade de forma segura, o que envolve políticas educacionais e de saúde para que isso se dê em relacionamentos e experiências saudáveis e igualitárias. Mais do que a transformação da lei, é imperioso repensar as normas sociais que ao mesmo tempo infantilizam e retiram a autonomia de adolescentes enquanto os expõem a uma erotização precoce e conduzida a partir do olhar adulto.

Notas:
[nota 1] Vale ressaltar que, na legislação brasileira, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece a distinção entre crianças e adolescentes dividindo-os em dois grupos por faixa etária: de zero a doze anos incompletos, e de doze anos completos a dezoito anos incompletos.
[nota 2] No Brasil, ainda há poucas pesquisas sobre o tema. Para escrever este artigo, tomei como fonte o relatório da pesquisa “Ela vai no meu barco – casamento na infância e na adolescência no Brasil”(2015), disponível em: http://promundoglobal.org/wp-content/uploads/2015/07/SheGoesWithMeInMyBoat_ChildAdolescentMarriageBrazil_PT_web.pdf
[nota 3] Estupro de vulnerável, artigo 217-A, Código Penal.
[nota 4] Artigos 1517 e 1520 do Código Civil.
[nota 5] Artigo 218-B, § 1º, Código Penal.

Por Maíra Zapater

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