“O elo familiar era voltado apenas para a coexistência, sendo imperioso para o “chefe” a manutenção da família como espelho de seu poder, como condutor ao êxito nas esferas política e econômica. O casamento e as filiações não se fundavam no afeto, mas na necessidade de exteriorização do poder, ao lado - e com a mesma conotação e relevância - da propriedade. O filho na família patriarcal era mais um elemento de força produtiva (SILVA, C. M., 2004, p. 128).”
Ao longo da história de nosso país, contudo, registrou-se gradual
transformação nos cenários político, social e econômico, o que afetou
substancialmente a tradicional configuração familiar.
“Esse quadro não resistiu à revolução industrial, que fez aumentar a necessidade de mão-de-obra, principalmente para desempenhar atividades terciárias. Foi assim que a mulher ingressou no mercado de trabalho, deixando o homem de ser a única fonte de subsistência da família, que se tornou nuclear, restrita ao casal e à prole. Acabou a prevalência do caráter produtivo e reprodutivo da família, que migrou do campo para as cidades e passou a conviver em espaços menores. Isso levou à aproximação de seus membros, sendo mais prestigiado o vínculo afetivo que envolve seus integrantes (DIAS, 2010, p. 28, grifo do autor).”
De fato, a admissão da mão de obra feminina foi o germe de uma
verdadeira revolução comportamental, seguida da invenção da pílula
contraceptiva, tornando a mulher não mais um ser totalmente submisso ao
homem. Ainda frise-se a lenta porém, significativa evolução legislativa
pátria que culminou com a do divórcio em 1.977, atendendo aos anseios de
uma sociedade que não desejava mais viver sob o dogma da necessidade de
formação do núcleo familiar somente a partir do primeiro matrimônio
(QUINTAS, 2010).
Outro fator se somaria a este cenário de transformações: o
reconhecimento das crianças e adolescentes como sujeito de direitos. Até
a Constituição Federal de 1988 a legislação que tratava de menores se
ocupava unicamente de disciplinar medidas repressivas em relação àqueles
que delinquiam e maneiras de se minimizar os índices de crianças e
jovens que estavam entregues ao abandono material e moral. Os juristas
concebiam em um primeiro momento que a situação jurídica infanto-juvenil
seria disciplinada pela Doutrina Penal do Menor, e a partir dos anos 20
pela Doutrina da Situação Irregular (QUINTANA, 2009).
Em ambos os casos o menor era considerado objeto da norma jurídica,
pois sobre sua pessoa recaíam leis de cunho assistencialista ou penal,
percebendo-se que, além de não ter direitos reconhecidos, não eram todos
os menores que mereciam ser alvo da legislação (DELFINO, 2009). Esta
situação foi sendo revertida, de início, no plano internacional, após a
Segunda Grande Guerra com a consolidação da Organização das Nações
Unidas, criada em 1948. Este órgão seria o responsável por editar
tratados normativos nos quais se reconheciam garantias às crianças e
adolescentes, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos da Criança
de 1959. Inaugurou-se uma nova maneira de legislar sobre infância e
adolescência, seguindo-se a Doutrina da Proteção Integral.
À época da promulgação da Carta Magna em 1988 o Brasil se encontrava em
meio a este panorama, do qual resultou uma nova concepção de família,
fundamentada desta vez em uma distribuição de prerrogativas menos
desigual entre homens e mulheres, a facilitação para que os casais não
permanecessem em matrimônios insatisfatórios e o prestígio que a
Doutrina da Proteção Integral alcançava a nível externo, influenciando a
legislação de vários países a reconhecerem em seus textos legais que
crianças e adolescentes não eram mais simples destinatários de ações
estatais ou objeto de uma autoridade paterna.
Em relação ao tratamento dispensado a homens e mulheres a Constituição
de 1988 inovou ao consagrar a igualdade jurídica, eliminando o papel
subsidiário feminino na direção da sociedade conjugal:
“Inicialmente, a Constituição Federal consagrou a igualdade entre o homem e a mulher como direito fundamental, no art. 5º, inc. I, nos seguintes termos: ‘homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações’. Depois, já de modo mais específico, no art. 226, § 5º, estabeleceu que ‘os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher’ (COMEL, 2003, p. 40).”
Em consonância com a mencionada inovação a lei civil de 1916 restou
obsoleta, dando lugar ao Código Civil de 2002 (CC/02), sem contar com o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que, juntos, consagraram o
equânime exercício do poder familiar por homens e mulheres, em relação
aos filhos menores de idade ou maiores incapazes. Vide o artigo 21 do
estatuto:
“Art. 21 O poder familiar será exercido em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência.”
Após a promulgação do novo texto constitucional a doutrina passou a
questionar o uso do termo “pátrio poder”. Era inevitável interpretar-se,
antes mesmo do advento do mencionado estatuto, que a partir de então o
poder conferido com supremacia ao pai seria igualmente outorgado à mãe.
Mas a manutenção do termo “pátrio” seria inadequada, por referir-se
exclusivamente à figura masculina (SILVA, C. M., 2004).
A mudança na expressão “pátrio poder” também ocorreu porque a
autoridade naturalmente exercida pelos pais passou a ser alvo de uma
nova compreensão, no tocante ao seu objetivo e ao seu exercício.
Atualmente, a finalidade consiste em proteger os interesses daqueles
sobre os quais os genitores exercerão sua autoridade, tornando-se,
assim, um instrumento a serviço da criança e do adolescente. Deve ser
“[...] exercido no proveito, interesse e proteção dos filhos menores,
advêm de uma necessidade natural de alguém que os crie, eduque, ampare,
defenda, guarde e cuide de seus interesses, regendo suas pessoas e seus
bens” (DINIZ, 2007, p. 515, v. 5).
Para corresponder de maneira exata ao novo conceito trazido pela CF/88
alguns autores defendem o uso de outro termo, no lugar de “poder
familiar”. Preferem uma segunda expressão (autoridade parental),
argumentando que a primeira tem uma carga implícita de “[...] supremacia
e comando que não se coaduna com o verdadeiro sentido” (SILVA, C. M.,
2004, p. 134). De fato, a lei não dispõe do poder familiar como se fosse
um direito subjetivo dos pais, mas sim o regula nos moldes de um
“poder-dever”. Aos titulares deste poder tão singular caberia somente o
direito de cumprir as próprias obrigações (BAPTISTA, 2000). Como
sintetiza Rachel Pacheco de Souza:
“Na esteira de tais alterações sociais, o direito cuidou de se adaptar aos novos modelos estabelecidos, alcançando à cogência constitucional várias alterações significativas, entre as quais a isonomia conjugal, que culminou por influenciar no surgimento de um instituto paritário de proteção dos filhos incapazes: o poder familiar. Em conformidade com o que dispõe o Código Civil, o poder familiar será exercido em igualdade de condições pelo pai e pela mãe [...] (2008, p. 09).”
Atualmente se concebe o poder familiar como instituto protetivo na
medida em que, ao conferir prerrogativas aos pais em relação à pessoa e
aos bens dos filhos menores, o faz para assegurar os direitos que estes
últimos possuem. Como foi anteriormente explicado, crianças e
adolescentes gradativamente passaram da condição de objetos da
legislação a sujeitos de direitos, no plano internacional e,
gradativamente, também no âmbito nacional dos países. Este
reconhecimento está no caput do artigo 227 da CF:
“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
Do exposto percebe-se que o poder familiar é um instrumento de
preservação dos direitos e garantias constitucionalmente assegurados aos
menores de idade, e deve ser exercido nos limites dispostos dentro da
lei, a exemplo do Novo Código Civil e do ECA. Do CC/02 extrai-se o
artigo 1.634:
“Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
I – dirigir-lhes a criação e a educação;
II – tê-los em sua companhia e guarda;
III – conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;
IV – nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;
V – representá-los, até os dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;
VI – reclamá-los de quem ilegalmente os detenha,;
VII – exigir-lhes que prestem obediência, respeito e serviços próprios de sua idade e condição.”
Maria Helena Diniz (2007, v.5) explica que a guarda diz respeito à
prerrogativa dada aos genitores de terem os filhos em seu poder, com
vistas ao cumprimento dos deveres de lhes prestar assistência material,
moral e educacional. Para Denise Comel, aos pais cabe a guarda dos
filhos para que seja formada uma
“[...] relação de tal proximidade que gere uma verdadeira comunidade de vida e interesses, em que haja constante troca de experiência, sentimentos e informações. Não fosse assim, não teria sentido algum a convivência dos filhos com os pais, posto que não é função com fim em si mesmo, se não que se constitui em meio para alcançar o objetivo maior de [...] assistir, criar e educar o filho que exige estreito relacionamento para troca de afetos, sentimentos, idéias, experiências e promover o desenvolvimento pleno e sadio do filho. Outrossim, a própria convivência familiar está alçada à categoria de direito fundamental da criança e do adolescente, conforme dispõe o art. 227 da CF, tão grande a sua importância na formação do filho (2003, p. 111).”
A prerrogativa de ter a guarda dos filhos, portanto, faz parte do poder
familiar, mas não serve aos interesses dos detentores deste poder,
muito pelo contrário: demonstra que estes possuem, no mínimo, a
responsabilidade de manutenção material dos filhos, e também a obrigação
de zelar por eles na esfera moral, propiciando assim o gozo do direito à
convivência familiar.
O artigo 227 consagra que crianças e adolescentes têm este direito
erigido à categoria de fundamental. A importância da família para a
formação biopsicossocial do ser humano é inconteste, à proporção em que
funciona como o primeiro espaço dentro do qual a criança e o adolescente
incorporarão os valores que fundamentarão, no futuro, suas atitudes em
relação à comunidade que o rodeia e a si próprio. No seio do grupo
familiar reside o locus nascendi de “[...] experiências afetivas,
representações, juízos e expectativas” (SILVA, C. M., 2004, p. 132).
“Realmente, a família é condição indispensável para que a vida se desenvolva, para que a alimentação seja assimilada pelo organismo e a saúde se manifeste. Desabrochar para o mundo inclui um movimento de dentro para fora, o que é garantido pelos impulsos vitais vinculados à hereditariedade e à energia próprias do ser vivo. [...] A família é o lugar normal e natural de se efetuar a educação, de se aprender o uso adequado da liberdade, e onde há a iniciação gradativa no mundo do trabalho. É onde o ser humano em desenvolvimento se sente protegido e de onde ele é lançado para a sociedade e para o universo (CINTRA, In: CURY, 2006, p. 100).”
Pode-se afirmar que a família representa o núcleo em que o indivíduo
primeiro descobrirá quais são as suas características e potencialidades,
através da convivência com outras pessoas que a ele se vinculam por
laços sanguíneos e/ou afetivos. Esses vínculos, exercitados no
dia-a-dia, mostrarão como o indivíduo deverá portar-se diante dos seus
semelhantes, ao ser lançado no meio social. Além de toda essa “herança
cultural”, não se pode olvidar que a família tem o papel de mantenedora e
transmissora de bens materiais e valores a eles referentes.
À primeira vista a convivência familiar estaria restrita ao contato
cotidiano que a criança e do adolescente manteria com seus genitores e
irmãos. Ainda hoje, o termo família “[...] traz à mente o modelo
convencional: um homem e uma mulher unidos pelo casamento e cercados de
filhos.” (DIAS, 2010, p. 40). Mas, em consonância com os ditames
constitucionais, tanto a doutrina como a jurisprudência entendem que a
criança e o adolescente devem ter assegurado o direito de conviver
também com parentes, vizinhos e amigos, observando-se o grau de
afetividade vivenciado pelo menor em relação a estes. Logo, aos
detentores da guarda cabe respeitar o direito de convivência a ser
usufruído por seus filhos. (NÓBREGA, 2008).
CLARINDO, Aniêgela Sampaio. Guarda unilateral e síndrome da alienação parental. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3583, 23 abr. 2013 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/24254>. Acesso em: 24 abr. 2013.
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